Hoje estamos em cima da fugaz atualidade, pois Alain Delon morreu e daí podemos concluir que nada dura para sempre, nem sequer o mais belo olhar ou o mais encantador rosto, conclusão que só nos pode deixar tristonhos e mal-dispostos. Ainda assim, o certo é que, mesmo tendo Delon falecido, são eternos alguns dos personagens que interpretou.
O homem, enquanto tal, parecia não ser a mais simpática das pessoas, pois recaíram sobre si constantes acusações de ser racista, homofóbico e misógino, os conflitos com os próprios filhos foram mais que muitos e públicos, apoiou convictamente forças políticas radicais de extrema-direita e sempre teve uma grande proximidade ao submundo da criminalidade, sendo que, entre os seus amigos contavam-se alguns perigosos gangsters.
Feito o elogio fúnebre, vamos ao que nos interessa, não ao homem, não à figura pública e nem sequer ao ator, mas sim e simplesmente a três personagens eternos, a cuja tristeza Alain Delon deu corpo, rosto e alma.
Comecemos por Rocco, personagem que Delon interpretou no filme “Rocco e i suoi fratelli (Rocco e os seus irmãos)”, película realizada em 1960 por Luchino Visconti. Nesses tempos, foram muitas as famílias que tiveram de fugir à miséria que grassava pelo sul de Itália, para ir à procura de uma vida melhor no rico e industrializado norte.
O mesmo faz Rosaria que traz os seus quatro filhos, Simone, Rocco, Ciro e Luca, da provinciana e pobre Lucânia, no Sul, para a cosmopolita e próspera Milão, a norte. Vão-se juntar ao filho mais velho, Vicenzo, que tinha partido uns anos antes. Aqui os vemos à chegada.
Após terem encontrado um sítio onde morar, a pouco e pouco os irmãos vão-se instalando. Os anos passam, Vicenzo casa com Ginetta e têm um filho, Ciro consegue um trabalho na Alfa Romeo e está noivo. Simone, por seu lado, torna-se pugilista profissional e começa a ganhar dinheiro a sério, gasta-o com Nadia, uma rapariga da zona, pensando num futuro casamento, uma perspectiva que a ela não lhe agrada nada. Entre combates, jogo e bebida, Simone começa a perder as estribeiras, o que lhe vale o abandono definitivo por parte de Nadia.
E Rocco (Alain Delon), que é feito dele? Primeiro arranjou um emprego estável e bem pago numa lavandaria, uns anos depois vai cumprir o serviço militar em Bellagio e é aí que reencontra Nadia, a ex-namorada do seu irmão Simone. Mais tarde, quando ambos regressam a Milão, Rocco procura Nadia, apaixonam-se, e os dois parecem viver um grande amor.
Tudo estava bem até os amigos de Simone descobrirem o caso de Nádia e Rocco e lhe contarem. Embora já tivessem passado dois anos, Simone deixa os seus ciúmes transformarem-se em ódio e, com a ajuda dos amigos, cercam o casal.
Simone viola Nadia e espanca Rocco. No dia seguinte, Rocco decide terminar a relação com Nadia, pois sente-se culpado, e entende que o irmão, Simone, precisa mais dela do que ele.
Sobem ao topo da catedral de Milão e é aí que Rocco comunica a Nadia a sua decisão de abdicar dela em favor do irmão. É nesta cena que Alain Delon, que ontem desapareceu, torna pela primeira vez um personagem por si encarnado eterno. Delon consegue que o seu rosto, o seu corpo e seu olhar expressem nesse momento toda a tristeza do mundo:
Em 1962 é Piero, o personagem que Alain Delon interpreta no filme de Michelangelo Antonioni “L’eclisse (O eclipse). Piero é um jovem investidor na bolsa, alguém que trabalha com números e com valores abstratos. Um dia conhece Vittoria, interpretada pela bela Monica Vitti. Os dois começam a encontrar-se e a ir passear pelos modernos, vazios e tristes bairros da cidade de Roma. Abaixo, vemos Monica Vitti, num desses momentos.
Não se passeiam pela esplendorosa e alegre Roma barroca, nem pela elegante e distinta Roma renascentista, nem sequer pelas magnificentes ruínas do tempo do Império Romano, escolhem antes ruas e bairros recentes, onde se pressente a alienação, a tristeza e a incomunicabilidade inerentes à sociedade moderna, isto segundo palavras do próprio realizador, Michelangelo Antonioni.
Que a ninguém lhe ocorra a ideia, que Piero e Vittoria andavam à procura de casa num sítio moderno e de construção recente, não é de nada disso que se trata. A beleza juvenil de Alain Delon, tal e qual como a de Monica Vitti, tem qualquer coisa de frio e de distante, dir-se-ia até que é uma beleza triste, geométrica e abstracta..
O mesmo se pode dizer da beleza dos modernos bairros de Roma, nada nesses lugares faz lembrar os excessos dos palácios barrocos, as imponentes ruínas imperiais ou as harmoniosas igrejas renascentistas, é um novo tipo de beleza que nessa Roma se edificou, abstrata, fria e distante, algo tristonha e mal-disposta.
Quem quiser perceber aquilo de que falamos, é ver o final do filme “O Eclipse”. A beleza do que aí se vê é gélida e altamente geometrizada, digamos que reflete perfeitamente a alienação e a triste incomunicabilidade da vida moderna. Em certo sentido, o filme de 1962, como que antecipa o mundo atual, o do século XXI, em que apesar de possuirmos as mais sofisticadas tecnologias de comunicação, nunca se comunicou tão pouco e mal.
É uma cena de génio de Michelangelo Antonioni, que tendo no elenco do seu filme dois dos atores mais populares daquela época, opta por terminar a história com quatro minutos em que nenhum deles aparece, só casas e ruas vazias e gente sozinha que chega e que parte:
Numa outra cena, vemos os dois, Piero e Monica, num desses passeios por entre prédios de habitação em bairros periféricos, é o momento do seu primeiro beijo. Tal beijo nada tem de espontâneo, e Alain Delon encarna aqui um outro personagem eterno, o frio, racional, geométrico, distante e abstrato Piero, que para além disso tudo, é simultaneamente belo.
A dado momento, Piero anuncia a Vittoria, que uma vez chegados a um determinado ponto da rua, lhe dará um beijo, tudo está medido, controlado e previamente determinado. Um pouco mais à frente, Vittoria diz-lhe que chegaram a metade do percurso onde o beijo será dado. Mais uma vez, tudo está medido e controlado.
Enfim, é verem a cena para se perceber que na sociedade moderna, até a beleza de um primeiro beijo pode ser quantificada e tornada abstrata, tal como a pode ser a dos modernos bairros, das recentes casas e das novas cidades.
O distante e frio rigor geométrico e abstrato de Alain Delon, servir-lhe-á para interpretar um terceiro e último personagem eterno. Fê-lo num filme de 1967 de Jean-Pierre Melville “Le Samouraï (O Samurai)”.
Alain Delon interpreta nessa película Jef Costello, um assassino frio e calculista, que mata não por razões pessoais, mas sim porque para isso é contratado. Jef preparara meticulosamente os seus álibis e executa os seus crimes com uma exatidão geométrica.
Apesar de ter uma namorada, amigos e cúmplices, Jef é um solitário. Tal como um samurai, Jef sabe que por mais acompanhado que esteja, está sempre só. Não que isso o incomode minimamente, pelo contrário, parece até fazer disso uma espécie de culto e ter criado os seus respetivos rituais.
Numa cena clássica, Jef rouba um automóvel. Tem consigo um molhe de chaves, que uma a uma experimenta na ignição até o motor do carro começar a trabalhar. Os gestos com que executa esse procedimento são precisos, exatos, cuidados e rigorosos, tal e qual os de um samurai. A sua concentração é total, equivalente à de um exímio xadrezista. Por fim, arranca, com toda a calma, e um pouco depois, fuma um cigarro. É um exemplo extremo de delicadeza e frieza e, no fundo, de uma contida mas enorme tristeza.
E pronto, em breve neste blog, num outro dia, seguir-se-á o décimo quarto capítulo desta série de verão, “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto…”
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