Neste décimo quarto capítulo da nossa série de verão “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto”, vamos prestar um serviço à nação. Com efeito, vamos falar-vos de como o país se pode livrar de uma sua inconsciente obsessão, que no verão se manifesta com particular intensidade, podendo-se mesmo afirmar, que estamos perante uma patologia mental, uma epidemia de âmbito nacional. Mas nada temais, que nós dispomos de uma infalível vacina.
Claro que uma vez ficando livres dessa inconsciente obsessão, toda a gente vai estar mais tristonha e mal-disposta, pois não raras vezes uma obsessão, ainda para mais inconsciente, é fonte de secretos prazeres e de imensos deleites.
Todavia, a nossa intenção é colocar a claro o que subliminarmente atravessa a nossa mente coletiva, a portuguesa, e libertar-nos de tais gozos. Em resumo, o objetivo a que nos propomos é que abdiquemos de certas delícias em prol de uma mente coletiva mais limpa e sadia.
Vamos fazê-lo em duas partes, hoje será a primeira, num próximo dia, como é fácil de deduzir, a segunda. Para iniciarmos esse longo caminho, anunciamos desde já que a nossa inconsciente obsessão coletiva é com comida. Não sabiam pois não? É por isso que é inconsciente, se soubessem era consciente.
Nós por aqui damos muito valor ao rigor dos termos científicos que usamos, e não confundimos o consciente com o inconsciente, como já todos terão constatado.
Não vamos aqui falar-vos de alta gastronomia e de “nouvelle cuisine”, e também não de petiscos tradicionais servidos numa qualquer tasca de esquina. O nosso ponto é a obsessão nacional com a alimentação, coisa que como já dissemos, claramente se intensifica no verão.
Digamos que essa obsessão habita no inconsciente coletivo da nação, sendo portanto, e por isso mesmo, uma obsessão inconsciente. Nos lugares mais recônditos da alma lusitana, agitam-se voluptuosos apetites, latentes desejos por comer, e libidinosos anseios por uma farta refeição.
Mas o que é intrigante, é que quase ninguém fala disso. Mas nós estamos atentos e prontos para prestar um serviço ao país, assim sendo, vamos pôr este assunto a nu, retirá-lo dos sítios obscuros do nosso espírito e trazê-lo à luz.
Tal inconsciente obsessão com a comida, é bastante visível quando se assiste aos noticiários das TV’s durante o verão. É coisa que dura já há largos anos, tanto faz que seja à hora de almoço como à de jantar, não importa se estamos sintonizados na RTP, na SIC ou na TVI, o certo é que, durante os noticiários estivais, vamos ter uma extensa reportagem sobre as iguarias que se manjam em Idanha-a-Nova, em Cacela Velha, em Trás-os-Montes, no Alentejo, nas Beiras, no Minho ou na região do Douro, já para não falar da Madeira e dos Açores.
Com certeza já todos hão de ter reparado, que durante todo o mês de agosto, logo a seguir às notícias sobre a guerra na Ucrânia, a invasão de Gaza e um ou outro apontamento de reportagem sobre as urgências dos hospitais fechados, lá nos surge no ecrã de TV um casal de repórteres que se passeia alegremente pelas cidades, vilas e aldeias deste país, com o intuito de nos recomendar uma visita a locais do território português onde se come bem e à grande.
Na nossa análise científica psico-emocional, esse é um sintoma óbvio de que o inconsciente coletivo português, aloja em si uma tremenda obsessão com banquetes e repastos.
Porventura já se puseram a assistir a noticiários de outros países? Pois façam a experiência e vão imediatamente descobrir, que em nenhum lado do mundo, nem de perto nem de longe, se gasta tanto tempo com reportagens de festins e rega-bofes culinários como na nossa amada pátria.
Em tais reportagens, os repórteres vão inevitavelmente a um restaurante típico, ou em alternativa a um que esteja integrado numa pequena unidade hoteleira, tipo turismo rural ou isso.
Entram velozmente pela cozinha adentro, conversam com a cozinheira de serviço, que, também inevitavelmente, é sempre uma senhora já de uma certa idade, e que certamente responderá por um dos seguintes nomes: D. Adozinda, D. Felisberta, D. Clementina, D. Hermínia e, mais raramente mas não infrequentemente, por Ti Maria.
Curiosamente, quando quem está encarregue da cozinha é um homem ou uma senhora ainda jovem, tudo muda. Aí já não há cá Donas Adozindas nem tias Marias, nessas ocasiões, estamos perante um, ou uma, chef.
Algo que vale a pena destacar são os nomes próprios dos, ou das, chefs. Logo por aí se percebe que fazem comida sofisticada e de qualidade, mas que têm em consideração as nossas tradições, costumes e raízes.
No caso deles, é quase certo, que o nome é idêntico a um dos reis de Portugal, como por exemplo, Afonso, Duarte, Dinis ou Sebastião. Henrique também é muito usado, mas neste caso é por via do conde do mesmo nome, que governou o Condado Portucalense, mas que não era rei. No caso delas, os nomes preferidos são os das princesas e posteriormente rainhas, que ficaram na história, como por exemplo, Filipa, Catarina, Constança, Isabel ou Leonor.
Dito isto, nós estamos cá desconfiados no nosso rigor científico, que as mais lúbricas fantasias gastronómicas da psique lusitana, não são protagonizadas por jovens e sofisticados(as) chefs, mas sim por cozinheiras rústicas e já entradotas, as tais Donas Adozindas e Ti(s) Marias, que nos trazem doces recordações de apetências de outros tempos, ocultas na nossa mente, em que não havia finezas e era tudo a comer à bruta.
Essas típicas senhoras cozinheiras, são sempre muito simpáticas e dadas. São já de uma certa idade, um tanto ou quanto rústicas, mais ou menos anafadas e, por vezes, apresentam um leve buço a adornar o rosto, ali mesmo por debaixo do nariz.
Tudo características que ninguém leva em conta, pois toda a gente se sente imediatamente reconfortado e feliz só de as ver. Essa aparência é um sinal evidente, de que estamos perante o Portugal de sempre, o nosso. Ou seja, um país onde se come bem e à farta, e onde na cozinha há alguém que vela por nós e pelos nossos apetites. No fundo, é essa a imagem mental que temos no nosso inconsciente coletivo, a nossa secreta obsessão nacional.
Dir-se-ia que no inconsciente coletivo lusitano, a mulher que preenche os nossos sonhos, é a que cozinha belos petiscos tradicionais e que os complementa com as características físicas e psíquicas que acima descrevemos.
Todo o ser português, mesmo que de modo inconsciente, sente subir por si acima calores ao ver uma qualquer D. Adozinda de volta dos tachos e das panelas a preparar uns pezinhos de coentrada de entrada, ou um cabrito assado de conduto, sobretudo no verão, período em que os noticiários insistem em todos os dias acordar esses lascivos desejos na psique portuguesa.
Ponhamos um exemplo, neste caso no masculino, mas não por razões relacionadas com o machismo, que disso ninguém nos acuse, mas sim por motivos de cariz estritamente científico.
Imagine-se um vulgar e maduro homem português, que casou com uma senhora de formas perfeitas, elegante e sofisticada. A imaginada esposa é conforme os atuais padrões em voga nas revistas de moda. Nisto, o homem põe-se a ver as notícias na TV e no ecrã aparece-lhe uma Dona Adozinda ou Ti Maria, que lida com despacho com utensílios de cozinha e trata dos víveres e dos temperos de um modo exímio.
Perante tal visão, o homem olha para o que tem dentro de casa, e vê que o jantar vai ser uma comida fresca, leve, saudável e apropriada para o verão. Constata que na mesa há uma salada com sementes de girassol, que acompanha com um sumo natural à base de frutos tropicais. Consequentemente, entra num desespero emocional interior. Recorda-se então da sua avó, de uma tia distante ou até da própria mãe, e nisto desfaz-se em lágrimas. Ou quando não tanto, pelo menos fica subitamente tristonho e mal-disposto.
Do seu inconsciente emergem imagens de antigamente, em que a comida à sua frente era farta, o vinho jorrava abundantemente e ninguém queria cá saber de saladas e de sumos naturais.
Para que a sua tristeza e má-disposição ainda mais se agravem, vê no final da reportagem televisiva imensos doces, daqueles que engordam e causam diabetes, isto enquanto diante de si tem como sobremesa uma granola à base de aveia, cujo recheio consiste em dois abacates, óleo de coco e essência de baunilha.
É ou não do homem ficar desalentado e descrente na vida e no futuro? É sim senhor!
Abaixo uma pintura de Edward Munch, o célebre autor de “O Grito”. Na imagem vê-se um pobre homem, à beira-mar, num local de veraneio, após ao jantar ter ingerido uma leve salada com produtos naturais e uma sobremesa saudável, também ela confeccionada com produtos naturais. Como é natural, o homem está tristonho e mal-disposto.
Sabendo as TV’s que atualmente já não se pode comer e beber como antigamente por causa do colesterol, do açúcar no sangue, das transaminases e sabemos lá de que mais, por qual razão insistem em torturar os telespectadores portugueses, trazendo para o campo do explícito e visível, mas sem qualquer explicação científica, a nossa inconsciente obsessão com comida? Não sabem que assim só nos fazem sofrer?
Que tortura as TV’s nos fazem passar no verão, pondo quotidianamente a nossa nacional obsessão com comezainas no ecrã. Dadas as circunstâncias, é muito natural que em setembro parte da população se sinta deprimida e que em agosto os conflitos familiares aumentem consideravelmente.
O mal é que as TV’s trazem essa inconsciente obsessão para o nosso quotidiano, mas não explicam aos telespectadores que estão afetados por uma patologia mental nacional. Por assim ser, as gentes de Portugal olham para a televisão, contemplam grandes petiscos e começam a sentir uma enorme agitação na sua psique e um desejo incontrolável de se atirarem a uma travessa cheia de alimentos para deglutir.
Sendo este o contexto, nós, os deste blog, sentimos a obrigação de intervir. A solução é simples, como mais à frente verificarão. A grande responsabilidade de toda esta situação é das TV’s, que não fazem por mal, pois querem dar-nos a conhecer os mais lindos e interessantes recantos deste nosso país, e a forma como escolhem levar a cabo tal tarefa, é aliciar-nos para irmos lá manjar belas paparocas.
Na verdade, a situação é pior ainda, pois as autarquias de todas as regiões do país fazem o mesmo que as TV’s. Vai daí, para que nós vamos passear a essas terras, durante o verão os municípios organizam festivais da sardinha (Portimão e Leiria), do marisco (Olhão e Ílhavo), da conquilha (Vila Real de Santo António), do leitão (Águeda e Sintra), do caldo de peixe (Rabo de Peixe), do fumeiro (Montalegre e Vinhais), da ostra (Setúbal), das francesinhas (Figueira da Foz) e de todos os mais petiscos que conseguirmos imaginar.
Mas nós temos a solução para que autarquias e televisões arrepiem caminho. Não há qualquer necessidade de promover os destinos turísticos nacionais, unicamente com comida. Não há qualquer necessidade de alimentar essa inconsciente obsessão portuguesa com constantes reportagens de TV e inúmeros festivais durante o verão, nós temos uma outra solução, que só iremos revelar no nosso próximo texto.
E pronto, em breve neste blog, num outro dia, seguir-se-á o décimo quinto capítulo desta série de verão, “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto”.
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