E com este vigésimo capítulo, chegamos hoje ao fim desta nossa série de verão “Como andar tristonho e mal-disposto em agosto”. Foi uma pequena viagem por muitos e diversos assuntos, sendo que, o último tema, só poderia ser o fim.
A vida é toda ela feita de fins. Há uns bons, uns maus e outros assim-assim, sendo que, também há aqueles que nem sequer damos por eles: “O quê, já acabou?!”
Um fim é importante, enfim, tem alguma importância, também não vale a pena dar a um fim mais relevância do que a necessária. Há quem faça grandes dramas com os fins, e não é que por vezes não haja fins dramáticos, mas em muitas ocasiões o que há é bastante exagero. Também há quem festeje fins a despropósito, por exemplo, a nós parece-nos sempre um tanto ou quanto prematuro, haver festas de finalistas de crianças de creche, por este caminho, ainda um dia vai haver festas de finalistas de bebés recém-nascidos à saída do berçário.
Que haja fins dramáticos e fins com festa, menos mal, que sempre assim o foi e sempre assim o será, seja qual for a história. Olhe-se para os filmes, uns acabam mal, outros com um “happy end”, é assim desde que o cinema existe. Já as telenovelas acabam sempre bem e as tragédias teatrais sempre mal, sejam as dos gregos antigos, sejam as de Shakespeare.
Em resumo, um fim feliz ou um fim triste são as duas opções habituais desde os tempos ancestrais em que Homero escreveu “A Odisseia” e os profetas escreveram a Bíblia. Já agora um aparte, a propósito de como começam e de como acabam as histórias. Já porventura alguém reparou que a Bíblia se inicia com um homem e uma mulher no paraíso e termina com um apocalipse? Não sabemos se há nisto alguma mensagem divina subliminar, mas seria interessante as autoridades eclesiásticas pronunciarem-se a este respeito.
Voltando ao assunto, dizíamos nós que todas as histórias ou terminam bem ou terminam mal, contudo, surgiu aqui há uns anos uma moda que muito nos irrita, o “plot twist”, que consiste em dar uma reviravolta a toda a narrativa mesmo no final.
É particularmente irritante observar aquela gente que diante de um “plot twist” diz assim: “Ah eu já sabia, desconfiei logo por causa de quando…”. Depois continuam por aí afora a explicar-nos porque são tão perspicazes e davam para detectives, enfim, uma maçada.
Nós somos contra os “plot twists”, e quando sabemos antecipadamente que vai haver um, tornamo-nos “spoilers” para dar logo cabo da história. Já agora, e para quem eventualmente não saiba, um “spoiler” é alguém que nos conta no início qual vai ser o final da história.
Mas qual é o problema de se saber o fim da história? Nos bons romances policiais ingleses de antigamente sabia-se desde o princípio que a culpa era do mordomo, e, nos livros de mistério franceses de dantes, também ninguém ficava contrariado por saber desde o início como descobrir qual a origem do imbróglio, a resposta era simples: “cherchez la femme”.
Aqui chegados, e tendo nós já manifestado o nosso desdém por “plot twists”, vamos contar-vos quais são os fins que mais nos marcaram. Não vamos dizer-vos quais os fins de que mais gostámos, não é isso, vamos sim falar-vos dos para nós mais marcantes, sejam eles felizes ou infelizes. Escolhemos quatro.
Começamos por falar do fim de um filme de Woody Allen, e o melhor é começarmos pelo princípio. O título original é “Whatever Works”, sendo que o tradutor decidiu que em português a película se intitularia “Tudo pode dar certo”. A nosso ver, a tradução deu errado.
A história é simples, um homem já maduro, Boris, é um intelectual e um cínico. É muito culto e tem uma imensa falta de fé na humanidade. Para além disso, impacienta-se facilmente. Nisto encontra uma jovem e ingénua moça da província acabada de chegar a Nova Iorque e sem saber para onde ir, o seu nome é Melody. A princípio Boris não quer saber dela, mas depois acaba por a ajudar dando-lhe abrigo. Ela lá vai ficando, abrigada, e a coisa acaba em casamento.
Mas antes de continuarmos a narrativa, vejamos a cena inicial do filme em que Boris discute religião com uns amigos num café, para em seguida se dirigir diretamente aos espectadores, que somos nós, e se apresentar. A visão absolutamente pessimista que tem da vida e do mundo, é uma das coisas mais cómicas que já vimos num filme:
Boris mostra a Melody todo um outro mundo que ela desconhecia, leva-a exposições, a ver filmes, a concertos, dá-lhe livros a ler e fala-lhe de ciência e filosofia. Melody fica fascinada e com o passar do tempo fica também com os horizontes muito mais alargados. Todavia, um dia encontra Randy, um fotógrafo, um rapaz novo, talentoso e bem-parecido. A partir daí sabemos que Boris já era, e de facto, mais tarde, ela diz-lhe que está apaixonada por Randy.
Boris reage mal e atira-se da janela, era um 1° andar. Parte um perna, mas aterra em cima de uma senhora que ia a passar, Helena. Dias depois, Helena visita Boris no hospital e a partir de então nasce um romance.
No final do filme há uma festa de passagem de ano, estão presentes todos os principais personagens da história, Boris dirige-se então novamente aos espectadores, que somos nós, e faz um breve resumo acerca das suas ideias sobre a vida, uma reflexão cínica e divertida. Em síntese, um dos melhores “happy ends” que alguma vez vimos:
Um outro fim que nos marcou foi o de Beatles. Claro que esse fim só nos marcou muitos anos após essa separação, ou seja, marcou-nos à posteriori, pois à data dos acontecimentos que levaram à separação da banda nem sequer éramos nascidos.
Sempre vimos os Beatles como um grupo de rapazes que se conheceram nas ruas de Liverpool e decidiram divertir-se juntos. Podiam ter-se dedicado exclusivamente a ir para os copos ou coisa do género, mas não, puseram-se a escrever e a gravar discos e canções.
Tudo lhes correu bem e viviam com leveza e alegria. Mesmo após terem casado, os quatro continuaram unidos e a andar numa grande farra, enquanto percorriam os quatro cantos do mundo em concertos e tournées.
Quiseram alargar os seus horizontes musicais e viajaram longamente pela Índia, estudando a sua cultura e ancestral espiritualidade. Daí nasceu o que é provavelmente o melhor LP de sempre, “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band”. Nesse álbum misturam sons Pop, tons indianos, música erudita e experimental, o que resulta num disco altamente conceptual, mas ao mesmo tempo muito divertido.
Em resumo, tudo ia bem, até que apareceu Yoko Ono. A rapariga era uma artista, e por acaso conceptual, só que era também muito séria e compenetrada. Num dia mal-fadado, John Lennon entrou numa galeria, e deu de caras com uma obra de Yoko Ono, a partir daí ficou tudo estragado.
A referida obra, é esta abaixo:
John Lennon subiu a escada para ter um melhor entendimento da obra, depois conheceu pessoalmente a artista, Yoko Ono, e casaram-se. Lennon tornou-se um homem sério, com vincadas convicções políticas e com altas pretensões artísticas. Está visto que os Beatles já não lhe serviam, pelo menos era isso que Yoko lhe dizia.
A mulher ia para as gravações e punha-se a comentar e a dar sugestões de coisas, que só serviram para aumentar a tensão entre todos. A presença de Ono foi considerada invasiva e foi num instantinho que cada um dos quatro Beatles seguiu o seu caminho.
Influenciado por Yoko, Lennon deu-lhe para salvar o mundo, tendo então gravado uma das mais melosas e patéticas músicas de sempre, “Imagine”. Quando por ocasião dos concursos Miss Universo, as raparigas dizem que o que mais desejam é que acabem as guerras e haja paz no mundo, não há quem não comente que isso são tão-somente banalidades, o nosso desafio é aplique-se o mesmo critério a “Imagine”. Qual “imagine”, qual carapuça, como dizia o outro, se cá nevasse fazia-se cá ski.
Foi um fim triste, o dos Beatles e como se viu e se vê, as guerras ainda não acabaram, mesmo havendo tanta gente a querer o contrário. Enfim, Lennon foi ingénuo, deixou-se levar pela Yoko, uma artista.
Não queremos terminar a nossa conversa sobre o fim dos Beatles, com a foto acima e o ar carrancudo de Lennon e Yoko, esse ar que têm sempre os que julgam ir salvar o mundo. Terminemos antes com o início do filme “A Hard Day's Night”, no qual se vê os quatro rapazes alegres e divertidos, ainda que perseguidos por um monte de raparigas. Finalmente entram num comboio e lá conseguem escapar:
Continuemos com comboios e cinema. Nós gostamos de filmes românticos, não de xaropadas nem de lamechices, mas se for assim uma coisa “cool” e bem-disposta, porque não?
Nesse contexto, um filme de que muito gostámos foi de “Antes do amanhecer” de 1995. Jesse é um jovem norte-americano que anda num Inter-Rail pela Europa. No último dia antes de regressar à América vai num comboio para Viena onde encontra Céline cujo destino é Paris, onde reside.
Jesse mete conversa e convence-a a ir com ele até Viena para passarem juntos esse derradeiro dia, antes de Jesse voltar à América. Ela hesita, pondera, mas acaba por se deixar convencer.
Andam de um lado para o outro à conversa pelas ruas e avenidas de Viena. A dado momento sentam-se num café (foto acima) e Céline faz um teste a Jesse. Ela faz de conta que telefona a uma amiga e lhe relata o sucedido, ou seja, que encontrou um rapaz americano e que impulsivamente decidiu passar o dia com ele em Viena. O teste de Jesse é imaginar o que diria a amiga de Céline. Depois é ele que finge telefonar a um amigo, aqui fica:
As horas vão passando, ao dia segue-se a noite e depois o amanhecer. Antes de se separarem combinam reencontrar-se, onde, como e quando, contudo, houve um mal-entendido qualquer, e um tempo mais tarde, quando era suposto dar-se o reencontro, desencontram-se, e o filme acaba assim. É bom recordar que naquele tempo ainda não havia telemóveis, ou se havia, Jesse e Céline não os tinham.
No entanto, anos depois, dado o tremendo sucesso do filme, os estúdios decidiram fazer uma sequela, e ainda uma outra, assim sendo, ficámos com uma trilogia. Na primeira das sequelas, Jesse e Céline reencontram-se anos depois, estão ambos casados, mas não um com outro. Passam um dia juntos em Paris e separam-se novamente. Como na altura do reencontro já havia e-mails, no terceiro episódio já os encontrámos casados um com outro, com filhos e a viver numa ilha grega, almoçando com amigos à beira-mar e contando-lhes a sua história, com um fim feliz.
Nós não temos nada contra “happy ends”, muito pelo contrário, contudo, gostámos mais do fim do primeiro filme, em que tudo ficou incerto, não se sabendo bem se o dia de Viena seria para sempre uma memória ou em algum momento teria prolongamento.
A propósito do que fica apenas na memória até ao fim, aqui fica um excerto de um poema de T.S. Elliot:
What might have been is an abstraction
Remaining a perpetual possibility
Only in a world of speculation.
What might have been and what has been
Point to one end, which is always present.
Footfalls echo in the memory
Down the passage which we did not take
Towards the door we never opened
Into the rose-garden.
My words echo
Thus, in your mind.
Por fim, o nosso quarto fim, o do romance de Julio Cortázar, “O jogo do mundo”. O título português é péssimo, pois o original é “La Rayuela”, nome que designa em castelhano o jogo da macaca.
O livro “O jogo do mundo” tem centenas de capítulos, sendo que podem ser lidos em muitas e diversas sequências diferentes. O autor pensou em escrever um livro em que conforme a sequência fosse lido tivesse uma distinta história e um distinto fim. O próprio Julio Cortázar sugere algumas sequências e fins possíveis, todavia, cada leitor pode escolher a sua, pois a narrativa, qualquer que seja a ordem por que se lê os capítulos faz sempre sentido e um fim.
A ideia de Cortázar é de génio e a sua escrita também, muito melhor que um “plot-twist”.
E agora sim, chegamos igualmente ao fim da nossa série de verão “Como andar tristonho e mal-dispostos em agosto”. Como era expectável, terminamos com um “plot-twist”, só que não vos vamos dizer qual é, cada um vai ter de descobrir por si a chave para resolver o mistério.
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