Esta semana iniciam-se as aulas na maior parte das escolas do país, é portanto o momento perfeito para falarmos de um artista, que também foi professor, mas que acabou por ser despedido: Joseph Beuys.
No despedimento de Beuys houve desacatos, ajuntamentos e a coisa meteu polícia e tudo. Tais acontecimentos deram-se no ano de 1971 na cidade alemã de Düsseldorf.
Quem é que nunca teve medo de falhar num teste? Provavelmente já todos sentimos esse receio, o mesmo se passaria em 1971 com os muitos alunos que tentavam ingressar na muito exigente Escola de Belas-Artes de Düsseldorf. Era sabido que muitos deles não conseguiriam o que pretendiam, pois que os critérios de admissão dessa instituição eram bastante rigorosos.
Todavia, o que aconteceu foi o seguinte, Beuys era professor na Escola de Belas-Artes de Düsseldorf e em julho de 1971, no preciso momento em que estavam a ser feitas as provas de admissão dos novos alunos, proclamou ao mundo que todos somos artistas, ou seja, que em cada homem há um artista.
Se todos somos artistas, porquê admitirem-se uns na Escola de Belas-Artes e excluírem-se outros? Para Beuys tal não fazia sentido, assim sendo, anunciou que quem quer que quisesse participar nas suas aulas, só tinha de lhe dizer. Com ele não haveria numerus clausus nenhuns, nem testes, nem portefólios, nem nada.
Desse modo, ficou com uma “turma” de 142 alunos, sendo que a muitos deles tinha sido anteriormente recusada a entrada na Escola de Belas-Artes, por terem falhado nas provas de admissão.
Houve uma série de confusões, pois as autoridades oficiais não levaram a bem que Beuys tivesse nas suas aulas quem por lá aparecesse, assim sem mais. Disseram-lhe que não podia ser, que não era desse modo que as coisas funcionavam, mas ele não lhes ligou e continuou.
Até que tudo azedou e ele e os alunos barricaram-se dentro da escola, dizendo que dali não saiam, que dali ninguém os tirava. No fim a polícia entrou pelo edifício adentro e retirou-os a todos à força do interior da Escola de Belas-Artes de Düsseldorf.
Acabou aí essa grande iniciativa inclusiva. Beuys foi despedido, mas esse acontecimento correu mundo e o artista passou a ser convidado para dar aulas e seminários nas melhores universidades do planeta. Abaixo uma foto de Beuys numa universidade norte-americana.
Todos são artistas, ser-se mais inclusivo do que isto, é impossível. Até o Zé Manel é artista, mesmo que aos oito anos já tenha ouvido o seu professor dizer-lhe dezenas de vezes que não tem jeito nenhum para o desenho. Também é artista a Ti Maria da mercearia, que não quer saber dessas conversas, pois tem de se apressar para despachar os fregueses. É inclusivamente artista o recepcionista da repartição de finanças, bem como o funcionário que está ao guichet. É ainda artista, o Doutor Vasconcelos, que é gestor.
O que Joseph Beuys quis dizer com a frase “todos somos artistas”, é que cada um de nós possui em si a capacidade de ser criativo. Numa entrevista Beuys disse assim: “A criatividade não é monopólio das artes. Quando eu digo que todos somos artistas, quero dizer que cada um pode concentrar a sua vida nessa perspectiva: pode cultivar a artisticidade tanto na pintura como na música, na técnica, na cura de doenças, na economia ou em qualquer outro domínio...”
O que Beuys aqui reafirma é a sua vontade inclusiva, ou seja, que todos podem ser criativos, pois a criatividade não é uma característica exclusiva de alguns génios, o Zé Manel, a Ti Maria, o recepcionista, o funcionário do guichet e o doutor gestor também possuem essa capacidade, podem é já se ter esquecido que a têm, pois neles adormeceu, quase morreu.
É muito fácil fazer com que as pessoas se vão com o tempo esquecendo, que possuem em si a capacidade de ser criativas, basta que logo de pequenos se lhes vá dizendo que não têm jeito nenhum para o desenho, que mais tarde se lhes vá lembrando que têm de pensar na vida a sério, que isso de se ser artista não é futuro, que o melhor é montar uma mercearia, arranjar um emprego seguro numa repartição do estado ou então ir para doutor de algo com boas perspectivas de se fazer carreira.
Abaixo uma imagem de um desenho de Joseph Beuys.
Em síntese, ao contrário de Beuys, que queria a todos incluir no mundo da arte e da criatividade, a vida do dia-a-dia parece estar concebida para excluir dessa esfera a maior parte de nós. Tudo rola de modo a que sejamos práticos e sérios e façamos a vida que todos fazem, nada de aventuras artísticas e criativas, pois o mais seguro é fazer como sempre se fez.
Significa isto que o modo funcionário de viver, no qual a arte e criatividade é excluída das nossas vidas quotidianas, é o mais comum. Faz como vires fazer e deixa-te de ideias é o mote a seguir, consequentemente, é perfeitamente normal que a maior parte das gentes reaja mal ao que sai do normal. O que não é igual ao restante, por norma causa desconfiança e até mesmo repúdio. Tal é muito patente, por exemplo, em museus de arte contemporânea.
Não raras vezes, quando diante de uma obra de arte moderna ou contemporânea, há muito quem diga imediatamente com algum desdém, “O que é isto? Isto é arte? Isto também eu fazia.”
Voltemos a Joseph Beuys, que, não nos esqueçamos disso, para além de artista era também professor e defendia uma pedagogia totalmente inclusiva em que todos são artistas. Se todos temos em nós o gene da criatividade, por consequência lógica temos igualmente connosco a capacidade de o reconhecer nos outros.
Quando a maior parte das pessoas admira obras de arte antiga, o que nela admira é a habilidade e a técnica do pintor ou escultor, e não tanto a sua criatividade. Ora nas obras de arte contemporânea, a habilidade e a técnica não são o ponto em questão, sendo precisamente essa a razão, pela qual muito reagem mal e desdenhosamente dizem: “O que é isto? Isto é arte? Isto também eu fazia.”
O ponto principal da arte contemporânea é a criatividade, sendo essa a que muitos não conseguem reconhecer, porque apesar de em todos ela existir, em muitos há muito que ela está completamente adormecida. Em resumo, é difícil reconhecer e aceitar nos outros, aquilo que em nós já só existe adormecido, quase morto.
Sabendo Beuys tudo isto, e tendo uma forte tendência para ser pedagogo, um dia realizou uma performance que intitulou “Como explicar arte a uma lebre morta”. A performance consistia no seguinte: Beuys cobriu seu rosto com mel e folhas de ouro e caminhou por um museu explicando as obras que aí estavam expostas a uma lebre.
“Para mim a lebre é um símbolo da encarnação, algo que ela realmente representa, algo que um ser humano só pode ser na imaginação. A lebre cava construindo a sua própria casa na terra, e assim ela reencarna na própria terra. O mel na minha cabeça tem a ver com o pensamento. Os humanos não têm a capacidade de produzir mel, mas têm a capacidade de pensar, de criar ideias. O mel é uma substância viva, os pensamentos humanos também podem ter vida, que pode ser levada a outras mentes quase mortas…”
No fundo, o que Beuys nos diz, é que a sua performance é um acto de fé na capacidade da arte e da criatividade despertar todas as mentes, mesmo aquelas que de tão adormecidas, parecem quase mortas. Por consequência, acredita que nesse despertar, todos tomem consciência da sua própria capacidade de serem artistas e criativos.
Um dia, o Beuys saiu de Düsseldorf e apanhou um avião para Nova Iorque. Uma vez lá chegado, foi imediatamente enfiado, ainda no aeroporto, numa ambulância, tendo de seguida atravessado a grande cidade, e sendo logo depois instalado no interior de uma conceituada galeria de arte.
Lá dentro, na galeria, havia uma jaula com um coiote, animal que é um símbolo da América desde o tempo dos índios. Lá ficaram ambos uns quantos dias, para toda a gente os ir ver. Sendo que, essa obra de arte performativa ficou instantaneamente na história. O seu título é “I Like America and America Likes Me”.
Deixamos-vos o vídeo desse momento, para que apelando à vossa criatividade, esteja ela desperta ou adormecida, procurem em vós qual o seu significado:
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