Em Portugal há muito festival, mas são quase todos de âmbito musical e com patrocínio comercial. Ele há o Rock in Rio, o Super Bock Super Rock, o Nos Alive, o Meo Marés Vivas, o Summol Summer Fest, o, EDP Vilar de Mouros e mais uns outros que tal.
Há também bastantes festivais de comida com patrocínio das autarquias locais. Há o da sardinha, o do marisco, o de enchidos e todos os de demais petiscos. Disto isto, festivais de outras coisas, que não sejam de cantigas ou de géneros alimentícios, é que há poucos.
Há um ou outro festival de teatro, quase nenhum literário e, dedicados às artes, tão-pouco há vários. Mas do que não há mesmo nem um único festival em Portugal, é um que seja devotado às ideias. Um evento festivo que celebre ideias, é coisa que por cá não existe: zero, niente, nicht.
As ideias são fenómenos mentais, não particularmente apreciados pelas gentes nacionais, têm inclusivamente fama de ser responsáveis por um ou outro drama. Tal facto pode ser atestado pelo abundante uso que por cá se faz de expressões como “não me venhas com ideias”, “lá estás tu com ideias”, “deixa-te de ideias” e outras locuções do mesmo género.
Todo este intróito vem a propósito, de por estes dias se estar a celebrar o “Festival de las Ideias” na capital do país vizinho, ou seja, Madrid.
Em Madrid as estrelas do festival não são as bandas de rock do antigamente, nem se fez um evento para se ingerirem iguarias culinárias e snacks, o que lá se celebra é o pensamento, e quem sobe ao palco e recebe aplausos são os filósofos, os estudiosos e os pensadores.
Não se pense que o “Festival de las Ideias” é um acontecimento restrito, destinado a alguns intelectuais, onde tudo sucede em circunscritos auditórios institucionais, nada disso. A maior parte das conferências, debates e comunicações é mesmo no meio da rua, nas principais praças da cidade. Não por acaso, o mote que inspira o festival é “El pensamiento sale a la calle”.
Duas das nossas estrelas favoritas do pensamento atual estiveram em Madrid, uma delas é Eva Illouz, nós gostamos muito de tudo o que ela diz. Tanto quanto sabemos apenas um dos seus livros foi editado em Portugal, “A ditadura da felicidade”.
Transcrevemos um excerto dessa excelente obra: “A indústria da felicidade, que movimenta milhões de euros, garante transformar os indivíduos em pessoas capazes de dominarem os seus sentimentos negativos, e de tirarem o melhor partido de si próprias por meio do controlo completo dos desejos improdutivos e dos pensamentos derrotistas. Porém, não estaremos perante um novo ardil que visa convencer-nos, uma vez mais, de que a riqueza e a pobreza, o êxito e o falhanço, a saúde e a doença são única e exclusivamente da nossa responsabilidade? E se o propósito da chamada «ciência da felicidade» for a criação de um modelo social individualista que renega qualquer ideia de comunidade?”
Que não haja confusões, Eva Illouz não argumenta no seu livro contra a felicidade, mas sim contra a indústria da felicidade e ao individualismo que esta pressupõe. Com efeito, a indústria da felicidade tem no seu centro a crença de que a felicidade de cada indivíduo isolado é o que de mais importante existe. Em síntese, felicidade e indústria da felicidade são duas coisas distintas, e em certo sentido, são até opostas.
Eva Illouz é franco-israelita, nasceu em 1961 em Marrocos, na bela cidade de Fez, cresceu em Paris e é judia. É professora da Universidade Hebraica de Jerusalém e também da Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais de Paris.
Só pelos títulos dos livros de Eva Illouz, adivinhamos imediatamente ao que vem. Vejamos uns quantos, que aguardam por uma edição portuguesa: “Pourquoi l'amour fait mal, L'expérience amoureuse dans la modernité”, “Le Capital sexuel” e “La Fin de l'amour: Enquête sur un désarroi contemporain”.
Em resumo, pelos títulos dos livros percebe-se logo que as reflexões de Eva Illouz são em torno das relações sentimentais e, em particular, sobre como a lógica capitalista, que nos vende a todos através das tecnologias digitais e não só uma felicidade artificial, individual e fantasiosa, acaba por inevitavelmente nos conduzir ao isolamento e ao desamor.
O teor das ideias de Eva Illouz é de que o amor em algum momento implica dor e infelicidade, sendo que isso não nos deve assustar, pois tal dor e infelicidade significa que estamos vivos, que resistimos, que não existimos somente num sonho anestesiado, numa fantasia artificial de auto-suficiência tecnológica, ou seja, que existe a possibilidade de uma verdadeira felicidade. O mesmo é dizer, que a dor emocional implica a existência de outros seres humanos em nosso redor, que tanto nos podem trazer carradas de alegria, como podem fazer com que derramemos lágrimas de tristeza.
Feitas as contas, a infelicidade indica-nos que não estamos sozinhos, “felizes” e amorfos diante de um ecrã. No fundo, sentirmo-nos infelizes é sempre um sinal de esperança.
Anteontem em Madrid, no “Festival de las Ideias”, Eva Illouz apresentou o seu mais recente livro, que já está traduzido em espanhol, e que nesse idioma se intitula “La vida emocional del populismo”.
Na rua, em plena Plaza de España, mesmo no centro de Madrid, Eva Illouz participou numa conversa cujo tema foi “Las emociones contra la democracia”. Aí se debateu o uso e o impacto que emoções como o medo, o asco, o ressentimento e o amor têm na política contemporânea. Um dos tópicos discutidos, foi o de tentar perceber se as emoções são realmente inimigas da democracia, ou são-no somente quando usadas pelos populismos conservadores.
“El miedo, tanto imaginado como real, es una potente herramienta política. Triunfa y anula otra emoción y consideración. Arrasa con el campo político en su conjunto y justifica la suspensión de derechos y libertades básicos. Es el comandante en jefe de todas las emociones. Por lo tanto, quien domina el miedo con credibilidad será capaz de dominar la arena política.”
Antes de passarmos a uma nossa outra estrela favorita do pensamento contemporâneo, que também esteve em Madrid, aqui fica um vídeo de uns poucos minutos em que Eva Illouz explicita o modo como entende o amor e a dor, e em que, já no fim, recusa a existência de receitas para se ser feliz. A indústria da felicidade, a ela não lhe interessa:
A nossa segunda estrela é o alemão Peter Sloterdijk. Neste caso, são muitos os seus livros que estão traduzidos em Portugal, e ainda bem. A sua obra mais conhecida é “Crítica da Razão Cínica (Kritik der Vernunft zynischen)”, que foi publicada em 1983 e bateu o recorde de vendas de um livro de filosofia escrito em alemão. Foi traduzido em trinta e dois outros idiomas.
Para Peter Sloterdijk, o cinismo contemporâneo resulta da perda de ilusões de progresso, prosperidade e cultura para todos, vindas do tempo do Iluminismo. Hoje poucos são o que verdadeiramente acreditam que podemos mudar o mundo para melhor, ou seja, que o trabalho nas escolas faz com que a sociedade e as comunidades se aperfeiçoem, que a ciência, as artes e as letras contribuem para que todos sejamos mais conscientes de quem somos, de quem são os outros e que sitio é este em que vivemos, e que, com a dedicação de todos e o esforço conjunto, o mundo progride, prospera e avança.
Genericamente, neste nosso tempo, ou estamos cansados, desiludidos, desmotivados e já não acreditamos em nada, limitamo-nos cinicamente a sobreviver o melhor que podemos. Ou então, e em alternativa, acreditamos cinicamente na nossa habilidade para levarmos a melhor, para nos safarmos bem e quantos aos outros que nos rodeiam, que se arranjem como conseguirem e puderem.
Na realidade, no mundo atual ou bem que se está exausto e já não se quer saber de nada que não tenha a ver connosco, ou bem que se está exclusivamente motivado por interesses pessoais e projetos individuais, e do resto e dos restante também não se quer saber para nada.
Ainda que por diferentes razões, ambas as atitudes são cínicas e enraízam-se na perda das ilusões vindas do Iluminismo, de que com o contínuo trabalho e o esforço de todos e para todos, o progresso, a prosperidade, o conhecimento e a cultura serão os faróis que nortearão o caminho da humanidade.
O fundador da escola filosófica cínica foi Diógenes, um grande estudioso, que viveu na Grécia antiga entre 400 a.C. e 325 a.C.
Um dia, Diógenes, por opção própria, decidiu viver como um cão vadio. Deambulava por Atenas e conta a lenda que teria habitado num grande barril. Perambulava pelas ruas levando consigo uma lamparina acesa durante o dia, alegando andar em busca de um único homem virtuoso. Era comum vê-lo por Atenas a dizer “Procuro um homem”.
Ter escolhido viver como um cão vadio e andar pelas ruas com uma lamparina acesa, eram provocações irónicas que Diógenes fazia às gentes de Atenas. Ria-se dos habitantes da cidade e da sua azáfama, com todos tentando levar a melhor sobre os restantes. Ria-se também dos que se diziam cansados e derrotados e se diziam desiludidos.
Diógenes usava o humor para criticar os transeuntes, e segundo as suas próprias palavras “latia verdades". Diógenes costumava entrar no teatro, caminhando contra o fluxo de pessoas que saíam. Quando questionado sobre o motivo para tal, respondia: "É o curso de ação que segui durante toda a minha vida".
A quem lhe perguntava quando se devia almoçar, dizia: "Se for rico, quando quiser, se for pobre, quando puder." Para explicar por que as pessoas davam esmolas a mendigos, mas não a filósofos, disse assim: "Porque as pessoas acham que podem um dia, ficar cegas ou coxas, mas sabem que nunca se tornarão filósofos."
A atual palavra cinismo veio do grego kynismós, nome de uma escola filosófica da antiguidade clássica, termo que por sua vez, derivou de kynós, cuja tradução para português é “cão”.
Abaixo uma pintura de Jean-Léon Gérôme de 1860, “Diógenes”.
Como resposta ao cinismo atual, e para que ele possa ser ultrapassado, Peter Sloterdijk sugere-nos a redescoberta das virtudes do antigo cinismo clássico ou, mais exatamente, propõe-nos que usemos o humor, a insolência e a jocosidade para falarmos de coisas sérias.
Num mundo em que poucos acreditam no que nos une, e em que até as mais pequenas comunidades parecem já não acreditar no esforço em prol de um projeto comum, o facto é que ainda nos conseguimos rir juntos. Talvez seja portanto o riso, como diz Sloterdijk, a base sobre a qual possamos voltar a pensar num destino juntos.
Temos de nos rir de quem só se esforça para tratar dos seus exclusivos interesses e, mais do que isso, fazer com que esses se riam de si próprios e vejam o quão ridículos e risíveis são. Temos que nos rir dos desiludidos e cansados, que se arrastam por repartições, escritórios, escolas, tribunais e hospitais, permanentemente ostentando um semblante estafado, mas que na realidade só vão tentando chegar ao próximo fim-de-semana, às férias ou à aposentação. Temos que deles nos rir e fazer que connosco riam de si próprios e, também, porque não, de nós.
E pronto, com o riso como base comum para a construção de um mundo melhor em que possamos encontrar outros projetos juntos, terminamos. A conclusão final é a de que se nos rirmos na companhia uns dos outros, certamente que também conseguiremos fazer coisas mais sérias.
Mesmo para finalizar, queremos voltar ao início deste texto para vos dizer que nós não frequentamos os habituais festivais nacionais dedicados a bandas musicais ou a comezainas. Mas que piada terá estarmos no meio de multidões de indivíduos, em que para se comer qualquer coisa, beber uma cerveja ou ir ao WC tem de se estar em filas intermináveis, em que, seja no automóvel próprio ou de transporte público, se perde um tempo imenso para se lá chegar ou para de lá se vir, e em que, o altíssimo volume dos decibéis nos dá cabo dos tímpanos?
Para além disso, de todos esses incómodos, o que aí temos é uma multidão de indivíduos, não uma comunidade. Tais festivais são apenas um modo artificial de fazermos uma catarse e termos a sensação de que estamos todos juntos, e por vezes nem isso, pois mesmo a dançar e aos saltos, cada um isolado filma o que vê no seu ecrã.
Tal como Diógenes gostamos de fazer as nossas catarses com coisas simples e em que se ponha em comum o que se diz e pensa, assim tipo um “Festival de las Ideias”. Aguardemos então que haja um num futuro próximo, na nossa amada pátria.
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