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Matera: da cultura à miséria, da miséria à cultura





No texto anterior falámos de algumas aldeias e localidades distantes do mundo, situadas em sítios longínquos, e que parecem ter sido completamente abandonadas ao seu próprio destino. Um lugar que em tempos correspondeu a essa descrição é Matera, que fica no remoto sul de Itália, na província de Basilicata.

 

Hoje em dia, Matera saiu da extrema miséria em que vivia, sendo que em 2019 foi até elevada à condição de Capital Europeia da Cultura. Em meados do século XX, mais concretamente no início da década de 50, Matera foi declarada uma vergonha para a nação transalpina, pelo à época Presidente de Itália, Alcide de Gasperi.

 

Nesse período, em Matera vivia-se em condições paupérrimas. Muitas das casas de habitação eram grutas escavadas na pedra, onde não havia ar fresco nem luz do sol, e sem electricidade ou água potável. Era comum nas famílias haver uma enormidade de filhos, sendo que, todos eles partilhavam os já de si estreitos e acanhados espaços domésticos, com burros, porcos e galinhas.

 

O escritor italiano Carlo Levi, no seu célebre livro “Cristo parou em Eboli”, escreveu a propósito de toda essa região esquecida do afastado sul de Itália o seguinte: “Em toda a minha vida nunca vi semelhante quadro de pobreza.”

 


Apesar de Matera ter vivido na miséria, o sítio desde há milénios que é habitado. Foi aí que surgiu uma civilização rupestre, que na rocha esculpiu uma cidade. Existem em Matera cavernas com rústicas pinturas de há nove mil anos, capelas em estilo românico e também belos frescos medievais, arcos e portais da Renascença, bem como refinados palácios barrocos do século XVIII.

 


Matera foi atravessada ao longo de muitos séculos por múltiplas culturas, todavia, com o advento da modernidade e a chegada da industrialização entrou em decadência, tendo ficado ensimesmada, presa aos seus ancestrais costumes e rituais, e incapaz de acompanhar os novos tempos.

 

Até 1990 o seu centro da localidade estava praticamente deserto, completamente abandonado e já bastante arruinado. No seguimento das já referidas declarações do Presidente de Itália na década de 50, as autoridades tomaram medidas e os seus habitantes foram evacuados do centro e instalados em casas modernas situadas nas imediações de Matera, que foram propositadamente construídas para tal efeito. A histórica Matera parecia portanto condenada ao desaparecimento.

 

Alguns anos antes, mais concretamente em 1964, o grande cineasta Pier Paolo Pasolini vislumbrou Matera como uma espécie de sítio místico, como se Matera tivesse saído diretamente das páginas da Bíblia.

 

Por essa razão, decidiu-se a aí rodar um filme, “O Evangelho segundo São Mateus”. Nessa película, o intento de Pasolini era dar a ver Jesus Cristo como um homem de verdade, para tal, ao invés de usar atores profissionais, preferiu antes que amadores e pessoas do povo encarnassem os personagens bíblicos.

 

Abaixo um momento de “O Evangelho segundo São Mateus”.

 


Pasolini estava extremamente descontente com a sociedade consumista e capitalista que se ia instalando por Itália em meados do século XX. Segundo ele, esse mundo em que o lucro se sobrepõe ao resto e em que tudo homogeneizado e preparado para o consumo imediato, iria inevitavelmente acabar por destruir a espiritualidade, a diversidade e a profundidade da cultura italiana.

 

“O Evangelho segundo São Mateus” é uma obra que vai contra-corrente, indo no sentido oposto ao desse mundo da superficialidade e do consumo. Pasolini utiliza no seu filme elementos profundamente poéticos e recorre a fundamentos míticos da cultura ancestral, tendo Matera por pano fundo ideal, como se esse local fosse equivalente à Jerusalém do tempo de Cristo.

 

No filme, as pedras e os campos de Matera são Jerusalém. As gentes de Matera são os discípulos, a Maria, o José, o São João Baptista, os anjos, os hereges, os romanos, os vendilhões do templo e todos os restantes que tomaram parte na bíblica história de Cristo. Para além disso, há a autenticidade e a pureza dos rostos, a rudeza das rochas e escarpas, a aspereza dos terrenos e a simplicidade de uma divindade que se fez carne.

 

Uma coisa é certa, tendo Matera como cenário, nunca ninguém nos mostrou em filme a vida de Cristo com tanta genuinidade, como Pasolini o fez.

 


Foi só em 1990 que todos começaram a acordar e a reparar na beleza e na riqueza cultural de Matera e quão lamentável era que estivesse quase arruinada e totalmente abandonada.

 

Apenas a título de exemplo das coisas belas que há em Matera, repare-se na imagem abaixo, que retrata aquela que é considerada a Capela Sistina da arte rupestre: a Cripta do Pecado Original.

 


Se porventura houver quem queira ver outras belas imagens da Cripta do Pecado Original em Matera, pode fazê-lo através do seguinte link:

 

https://bari.repubblica.it/cronaca/2020/05/13/foto/chiese_rupestri-256521715/1/

 

Uma vez tendo-se os olhares voltado para Matera, logo em 1993 foi elevada à categoria de Património Mundial da Humanidade, sendo que a partir daí iniciou-se a sua recuperação, que dura até hoje.

Em síntese, Matera salvou-se da ruína completa, através da cultura. Foi de tal maneira, que um sítio longínquo, que ainda há umas poucas décadas era miserável, em 2019 foi escolhido como próprio para ser a Capital Europeia da Cultura, e aí ser apresentado o que de melhor se faz pelo mundo no capítulo das artes e cenas contemporâneas.

 


Matera reciclou-se e ao invés de como antes ser um local de pobres gentes resignadas à pobreza, à ruralidade e à perpetuação das crenças e crendices dos seus antepassados, e inevitavelmente condenada à ruína, metamorfoseou-se numa localidade viva e moderna, um local que acompanha a cultura do nosso tempo, não anulando com isso o seu passado e identidade.

 

Algo que por vezes nem sempre se compreende, é que os sítios, as suas culturas e comunidades renovam-se não através da preservação eterna das suas tradições e costumes, mas sim por se abrirem à modernidade e à atualidade, e assim procurarem caminhos para rejuvenescerem a sua identidade.

 

Há quem acredite que os rituais, tradições e costumes devem ser conservados tal e qual como sempre foram, que é desse modo que a identidade de um lugar se preserva, nós acreditamos no contrário, no caminho seguido por Matera, ou seja, que é a contínua renovação e a aproximação à contemporaneidade, que mantém viva uma comunidade.

 

Matera foi nas rochas esculpida ao longo de muitos séculos, fazendo tal parte da sua mais profunda essência, é portanto natural que transforme e renove essa tradição, acolhendo em si o MUSMA - Museo della Scultura Contemporanea Matera.

 

O MUSMA apresenta-se a si próprio como “L’unico Museo in grotta al mondo e il più importante museo italiano interamente dedicato alla scultura.”

 


O que o MUSMA, bem como a recuperação de Matera nos mostram, é que o antigo não necessita de ser abandonado em prol do moderno, mas que também não precisa de ser arcaicamente conservado “em formol”, ou seja, pode continuar vivo, mantendo a sua identidade e aberto à contemporaneidade.

 

O escultor português Rui Chafes foi convidado a expor em Matera. Catorze das esculturas ocuparam grutas, ruas, locais religiosos e, inclusivamente, espaços a céu aberto em pleno campo. É este o caso da obra na imagem abaixo, intitulada “L’ oggi cosi lento e lo ieri cosi breve”.

 


Como se percebe pelo seu título, esta obra de Rui Chafes é um exercício de escuta do outro, uma espécie de prática espiritual, em que de algures do tempo, nos vêm vozes do antigamente para nos dizer que querem reviver no tempo presente.


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