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Nós já não sonhamos como há cem anos, temos outros fetiches



Há 100 anos os sonhos eram desiguais, e por isso, em 1914, inventaram o surrealismo. Precisamente há um século, um punhado de gente decidiu que iria realizar algo de radicalmente diferente. Algo que desse a ver, a escutar e a ler, o que antes nunca ninguém tinha visto, escutado ou lido, a saber, aquilo que anda pelo nosso inconsciente.

O inconsciente, como se sabe, é um lugar profundo dentro de nós donde nascem as paixões, os desejos, os anseios, os traumas e os medos. Em muitos milénios, esse fundo mundo, só nos era acessível pelos sonhos, no entanto, com a invenção do surrealismo, essa galáxia submersa na nossa mente, passou também a ser penetrável através da arte.

O inconsciente passou a poder ler-se em incompreensíveis romances e em extravagantes poesias, assim como a vislumbrar-se em bizarros filmes, e ainda a contemplar-se em paradoxais esculturas, em estapafúrdias fotografias e em incongruentes pinturas.

Abaixo “Canto d’amore”, uma pintura surrealista de 1914, obra da autoria de Giorgio de Chirico.



Como todos sabemos, o inconsciente não se pauta propriamente pela racionalidade, antes pelo contrário. Para o constatarmos, basta vermos que nos sonhos, tudo acontece sem uma lógica aparente, e segundo uma inverosímil sequência. No inconsciente onírico, é onde a ordem cronológica, ou para o caso qualquer outra, está absolutamente ausente.

No universo onírico, nada tem a mesma razão de ser, do que quando estamos despertos. Sendo que, qualquer relação causa-efeito é inexistente. Num sonho conseguimos identificar pessoas, factos e lugares, contudo, tudo isso parece estar desconjuntado e totalmente fora do seu contexto habitual.

Foram todos esses acontecimentos sem nexo, e todas essas imagens sem sentido, ou seja, tudo o que desde sempre baila no nosso inconsciente, aquilo que os surrealistas quiseram dar a ver. Para o conseguirem, transformaram todos esses incongruentes oníricos eventos, e essas múltiplas incoerentes imagens sonhadas, em arte.

Abaixo uma foto de 1932, de Herbert Bayer: “Lonely Metropolitan”.



Antes do surrealismo ter sido inventado, faz agora 100 anos, já Sigmund Freud tinha dito que os sonhos tinham significados. Quer isto dizer, que o velho Sigmund, foi um dos primeiros a aventurar-se cientificamente por esse vasto sub-mundo, que é o inconsciente humano.

Antes de Freud, há milénios que a humanidade sonhava, todavia, os sonhos eram vistos como sinais divinos, premonições, avisos, maldições ou indícios de algo diabólico.
Fossem os sonhos obra de deuses ou de demónios, avisos de que algo de mau estava para chegar ou anúncios que um evento feliz se iria dar, o certo é que os sonhos eram sempre interpretados como uma espécie de mensagem, isto é, como se fossem pressentimentos ou presságios.
Com Sigmund Freud tudo mudou, pois os sonhos passaram a ser interpretados como sintomas das mais veladas paixões humanas, dos mais escondidos desejos terrestres, dos mais secretos anseios mundanos, dos mais encobertos medos e dos mais camuflados traumas terrenos.

Em resumo, a partir de Freud, os sonhos são manifestações do que anda entranhado e submerso lá mesmo pelo fundo do inconsciente humano, e já não sinais de deuses e demónios.
Rene Magritte, “Les amoureux, 1928”:



Pelo que até agora foi dito, percebe-se que há nos sonhos algo de oculto, ou seja, há neles sentires encobertos e mudos, cuja origem se situa no inconsciente, e aos quais antes, durante milénios, só acedíamos quando sonhávamos. Após os surrealistas, esse mundo de abismos, passou a estar acessível a qualquer um, desde que frequente uma galeria ou um museu de arte moderna e contemporânea, leia literatura esdrúxula ou vá ver um filme estrambólico.

Sendo os sonhos provenientes desse mundo profundo que é o inconsciente, o seu significado nunca nos é completamente revelado, pois temos tão-somente indícios de como havemos de os interpretar, ou seja, quando muito possuímos vestígios e vislumbres do que eventualmente poderão significar.

Em 1929, Luis Buñuel, em colaboração com Salvador Dali, realizou o clássico dos clássicos do cinema surrealista: “Un chien andalou”. Trata-se de uma curta-metragem em que a narrativa não tem qualquer lógica, em que só podemos tentar adivinhar o que move os personagens, que sem qualquer razão aparente vão aparecendo e desaparecendo ao longo da película. Aparte isso, há saltos temporais incompreensíveis e ações cujo sentido e intenção desconhecemos totalmente. Para mais, há súbitas mudanças de cenários, sem que nada do que vemos o justifique.
Aqui fica um excelente excerto de cinco minutos, como aperitivo ao cinema surrealista:



Aqui chegados, o que sabemos é que os sonhos se formam no inconsciente, e que, ao contrário do que durante milénios se acreditou, eles não são premonições, augúrios ou presságios enviados por deuses ou demónios, mas antes sim sintomas das nossas mais intensas e ocultas emoções, e dos mais intrínsecos e íntimos sentires.

Todavia, sabemos também, que o que mora no nosso inconsciente, se revela sempre de forma velada. Deixa-se ver para logo se esconder, e o que mostra tem sempre um significado incerto.

O surrealismo foi isso, uma tentativa romântica de dar a ver que incertos sonhos tinham os humanos há cem anos. Depois, tudo mudou. Umas poucas décadas após, o surrealismo era uma miragem, o consumismo estava instalado.

Ali pelo ultimo quartel do século XX, já ninguém queria saber dos surrealismos para nada. O tempo era então, como o é agora, de comprar. Os sonhos já pouco ou nada têm a ver com o inconsciente, ou seja, com paixões, desejos, anseios, traumas e medos.
Os sonhos de agora, têm sim a ver com a capacidade para adquirir opulentos produtos, sejam eles rápidos carros, caras casas, requintados relógios, faustosas roupas, smartphones ultra tecnológicos ou férias em sítios de luxo.

Em resumo, as aventuras oníricas de hoje em dia deixaram de ser passeios pelas profundezas do inconsciente, e passaram a ver com a capacidade de se consumir, nem que seja a crédito. Atualmente, os sonhos têm preços.

Richard Hamilton (1922-2011) foi um dos últimos herdeiros do surrealismo, muito embora seja considerado um dos primeiros, se não mesmo o primeiro, de todos os Pop-Artists. É com ele que terminamos, pois o que nos mostrou já há mais de meio século, continua atualmente em vigor.

Abaixo uma obra de 1956 de Richard Hamilton, um surrealista de coração, mas que por equívoco acabou por entrar para a história como um ícone Pop, logo após ter feito uma ode irónica ao consumo: “Just What is It That Makes Today’s Homes So Different, So Appealing?”

Se observarem bem a icónica obra de Richard Hamilton, verão que por todo lado há paixões, desejos e anseios inconscientes, e traumas e medos subliminares, contudo, tudo isso está submergido num lírico hino ao consumo.

Como profetizou Karl Marx em 1867 no seu livro “Das Kapital”, estes são os tempos do fetiche da mercadoria.

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