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Posso ir à casa de banho? (Parte I)



A pergunta poder-vos-á parecer estranha, mas vamos fazê-la na mesma: será possível passar um dia perfeito, a limpar casas de banho? Não nos referimos a umas casas de banho quaisquer, mas sim às públicas, ou seja, aquelas que qualquer um indo pela rua afora pode frequentar.

É bem possível que cada um de nós se lembre de milhares de formas de se passar um dia perfeito, e que nenhumas delas inclua ter a seu cargo a higiene de WC’s, ainda para mais, desses que todos usam. Por assim ser, a que propósito virá então a questão inicial deste texto, ou seja, se é possível passarmos um dia perfeito, a limpar casas de banho.

A questão vem a propósito de um recente filme de Wim Wenders cujo título é “Perfect Days”. A película acompanha o quotidiano de Hirayama, um homem já maduro, cuja profissão consiste em limpar as casas de banho públicas de Tóquio. Hirayama sente-se completamente feliz com o seu dia-a-dia, esmera-se na realização do seu trabalho e é meticuloso naquilo que faz.

Todas as manhãs se levanta de madrugada. A caminho do emprego ouve uma cassete com as suas músicas favoritas enquanto conduz, mais tarde sai do trabalho e lava-se nuns banhos públicos. Come sempre no mesmo local, num pequeno restaurante, e logo após regressa a casa, onde antes de adormecer, lê.

Nos breves momentos livres que tem ao longo da jornada, observa as árvores, o modo como a luz perpassa por as suas densas copas e como o vento abana os seus ramos e folhagem. Não raras vezes, Hirayama fotografa esses momentos de pausa.


Wim Wenders não é um cineasta qualquer, devemos-lhe filmes belos, daqueles destinados a tornarem-se clássicos. Destacamos três, entre outros possíveis, que são autênticas obras-primas. Wenders é alguém que ama os espaços e os seus profundos significados e isso é muito visível nos três filmes de que de seguida falaremos.

O primeiro é “As Asas do Desejo (Der Himmel über Berlin)” de 1987. Nessa película Wim Wenders filma uma Berlim ainda dividida pelo muro. Esse filme foi até premonitório, pois de algum um modo, anunciou ao mundo que o muro cairia e em breve Berlim voltaria a estar unida, e a ser como antes era, uma só cidade.

Uma das cenas mais comoventes do filme, é aquela em que um velho homem regressa décadas depois, ao espaço que antes da guerra tinha sido o centro de Berlim, a Potsdamer Platz. Diante se si há ruínas da antiga e vibrante praça, mas nada mais dela resta, que tão-somente um espaço vazio, um descampado. Restam também memórias de outrora.



O segundo filme de Wim Wenders que queremos destacar é “Paris Texas” de 1984. A história é simples. Travis andou quatro anos desaparecido, mas o seu irmão Walt reencontra-o num deserto do Texas e leva-o para sua casa em Los Angeles. Travis reencontra na casa do irmão o seu filho de sete anos, Hunter, que foi abandonado pela mãe, Jane. Travis e Hunter aproximam-se e partem em busca de Jane, para tentarem reconstruir a família.

A história de Travis, Hunter e Jane é o que é, ou seja, é igual a tantas outras, todavia, o que faz com que “Paris Texas” seja um filme absolutamente icónico, é o modo como os grandes espaços americanos se estendem diante do nosso olhar. Pela nossa frente, “on the road”, vemos a essência do que é a América.

O velho oeste, os enormes desertos, a Route 66, os neons, os motéis à beira da estrada, tudo isso dá-nos a sensação de estarmos a ver o espaço da América mítica. Contribui também para essa sensação, a guitarra de Ry Cooder que pontua todo o filme. Aqui fica “the opening scene”:



O terceiro filme de Wim Wenders que destacamos é “O Estado das Coisas (Der Stand der Ding)" de 1982. Perto de Sintra, uma equipa de cinema filma, porém, o produtor desaparece, a película e o dinheiro acabam e todos ficam à espera, num hotel à beira-mar, sem nada para fazer. Nesse entretanto, de vez em quando, passeiam-se por Lisboa.

O “Estado das Coisas” dá-nos a ver lugares de Lisboa que ainda estão agora no mesmo exato sítio onde estavam aquando o filme foi realizado em 1982, mas que são espaços que já não existem, tal como Wim Wenders os viu e filmou.

Pensemos por exemplo na Rua de São Paulo, ao Cais de Sodré. Wim Wenders filmou-a como um espaço de melancolia, poesia e mistério, algures entre a luz e a sombra. Tal sítio era um espaço onde solitários marinheiros e náufragos da vida bebiam longamente noite fora, e em conversas sem fim desfiavam demoradamente as suas agruras.

Abaixo um fotograma de “O Estado das Coisas”, onde se vê a Rua de São Paulo e a porta de entrada do lendário Texas Bar.


Atentemos agora numa fotografia atual da Rua de São Paulo, onde antes havia melancolia, mistério e poesia, luzes e sombras, solidões e náufragos, há neste momento paredes pintadas com cores berrantes, bares para turistas e lugares para uma multidão de jovens beber rapidamente e fingir que está super-divertida.

Se entrarmos pela porta onde era o lendário Texas Bar, atravessarmos o estabelecimento, cujo presente nome é Musicboxlisboa, e sairmos pela porta do lado oposto, vamos dar à Rua Nova do Carvalho, que antigamente também tinha a sua poesia e mistério, mas que atualmente é conhecida pelo abusivo e parolo nome de rua cor de rosa.

Em resumo, esses espaços de Lisboa que Wim Wenders tão bem filmou em “O Estado das Coisas” são agora apenas memórias, o sítio não ficou em ruínas como a Potsdamer Platz em Berlim, mas ainda assim está arruinado.


Uma vez feito o destaque de três obras-primas de Wim Wenders, regressemos ao seu mais recente filme, “Perfect Days”, com o qual iniciámos este texto. Como já antes dissemos, a película conta-nos o dia-a-dia de Hirayama, alguém que limpa as casas de banho públicas de Tóquio.

Como também já dissemos, Wim Wenders é alguém que ama e filma os espaços plenos de significados, como por exemplo, a Berlim dividida pelo muro, as míticas paisagens norte-americanas ou a antiga Lisboa da má vida, ou ainda, as casas de banho públicas de Tóquio.

Talvez haja quem estranhe que se ame e filme WC’s, contudo, não há razão para tal, pois o facto é que os de Tóquio são espaços belos e plenos de significado. Um dos WC’s que aparece no filme foi desenhado por Kengo Kuma (arquiteto do novo Centro de Arte Moderna da Gulbenkian), é este abaixo:


Um outro consagrado arquiteto, Fumihiko Maki, que desenhou por exemplo as quatro torres do novo World Trade Center em Nova Iorque, concebeu esta sofisticada casa de banho pública, que também surge no filme “Perfect Days”:


Aqui fica um lindo postal com a coleção de casas de banho que aparece no filme, todas elas belas:



KOMOREBI { 木漏れ日 } é a palavra japonesa para designar a luz do sol filtrada através da folhagem das árvores. A palavra Komorebi não se limita a descrever os belos momentos em que os raios de luz lá no alto deslizam entre folhas e ramos provocando uma dança de sombras, simboliza igualmente a capacidade de encontrarmos beleza em tudo o que nos rodeia.

Saber o significado de Komorebi não é apenas uma questão de vocabulário, pois o termo refere-se também a um sentimento, a uma atitude perante a vida, em que se valoriza uma atenção ao presente, ao aqui e agora em que o pássaro canta, em que se sente o odor da terra molhada após a chuva, em que se escuta o bater das ondas do mar ou em que se contempla momentaneamente o brilho do sol por entre as folhas e os ramos das árvores.

No fundo é assim que Wim Wenders filma, ou seja, tentando captar a beleza e o significado dos espaços a cada momento, a cada presente, a cada “aqui e agora”. Todos os espaços têm a sua beleza e significado, seja um vasto descampado da Berlim dividida, seja os inóspitos e estéreis desertos norte-americanos, seja a Lisboa decadente de antigamente, sejam as casas de banho públicas de Tóquio. 

Qualquer espaço proporciona dias perfeitos para quem nele souber deter-se e olhar com atenção.

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