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Que nunca nos faltem as palavras...


Conta a Bíblia, que num tempo distante, toda a humanidade estava junta e falava uma só língua. Em dado momento, os Homens decidiram construir uma grande cidade com uma torre altíssima que tocasse os céus. Deus não viu com bons olhos os humanos intentos e decidiu que a língua única se dividiria em muitas, de modo a que uns não compreendessem a língua dos outros, e todos se espalhassem pelos quatros cantos da Terra, cada qual com o seu idioma.

“O Senhor desceu para ver a cidade e a torre que estavam a levantar. Vejamos, se isto é o que eles já são capazes de fazer, sendo um só povo, com uma só língua, não haverá limites para tudo o que ousarem fazer. Vamos descer e fazer com que a língua deles comece a diferenciar-se, de forma que uns não entendam os outros. E foi dessa forma que o Senhor os espalhou sobre toda a face da Terra, tendo cessado assim a construção daquela cidade. Por isso, ficou a chamar-se Babel, porque foi ali que o Senhor confundiu a língua dos homens e os espalhou por toda a Terra.”

Há muito quem interprete a história da Torre de Babel como a de um castigo divino, todavia, não querendo nós com isso cometer nenhuma heresia, estamos tentados a interpreta-la antes como uma lição. Deus quis que os Homens soubessem que há infinitas formas de ver o mundo e que, por consequência, há também uma infinitude de palavras nas mais diversas línguas para traduzir todas essas distintas visões da realidade.
Em síntese, na nossa interpretação, Deus não quis que a humanidade inteira visse o mundo apenas de um só modo, e por isso, ao invés de haver uma única língua e um conjunto limitado de palavras que dela fizessem parte, quis que houvesse inúmeras línguas e um número praticamente infinito de palavras.
Assim sendo, a existência de múltiplas línguas é portanto um bem e não um mal, mais uma lição do que um castigo. No fundo, talvez à história de Babel se possa aplicar o ditado popular no qual se diz que “há males que vêm por bem”.

Não estamos sozinhos nessa nossa crença, de que a existência de muitas línguas é um bem, pois George Steiner (1929-2020), o mais emérito dos professores de literatura, disse um dia que a pluralidade linguística não deve ser compreendida como um obstáculo à comunicação entre homens, mas sim como uma bênção, isto na medida em que cada língua reflete uma diferente abertura ao mundo.

Mais tarde, Steiner acrescentou ainda, que “Quando uma língua morre, uma maneira de entender o mundo morre com ela, termina uma maneira de olhar para o mundo.”

Num dos seus mais celebrados livros, “Depois de Babel”, George Steiner fez a seguinte afirmação, que haveria de fazer história: “Compreender é traduzir”.



Compreender é traduzir em muitos e variados sentidos, na verdade quase infinitos. Há o sentido mais evidente de que para compreendermos algo escrito ou falado numa língua estrangeira, teremos que o traduzir para a nossa própria língua. Mas há também o sentido em que, para compreendermos o que alguém fala ou escreve na mesma língua que nós, teremos também de o traduzir.

Por exemplo, neste segundo sentido, uma frase tão simples como “Não te percebo”, dependendo do contexto em que é dita, pode ter significados muito distintos, e em alguns casos até opostos.
“Não te percebo” pode meramente significar que não se ouviu bem, pode significar que não se entende o que alguém disse mesmo tendo-se tido uma audição perfeita, pode também significar que não se compreende a pessoa enquanto tal e não tanto a frase em si, ou ainda expressar uma espécie de ironia ou sarcasmo. Na realidade, há infinitos sentidos para palavras tão simples como “Não te percebo”, como aliás para todas as outras.

Em qualquer dos casos, seja qual das hipóteses for, quem quer que escute um “Não te percebo”, terá de saber traduzir essa frase mediante o seu contexto, pois se assim não suceder, certamente que não a entenderá ou a interpretará mal. Dito isto, como disse George Steiner, compreender é traduzir.

Ao que se sabe, George Steiner falava e compreendia perfeitamente sete línguas, tendo-as aprendido desde muito cedo. Sendo originário de uma família judaica de Viena de Áustria, que havia migrado de lá para Paris num momento em que o nazismo se tinha tornado numa ameaça, a sua mãe ensinou-lhe três idiomas para se poder desenvencilhar em qualquer lado. Com o pai, que era checo, aprendeu o grego. As restantes línguas que sabia, foi-as estudando por si mesmo.

Transcrevemos um breve excerto de uma entrevista, que George Steiner deu ao semanário Expresso em 2020. Ao ser-lhe perguntado como é poder habitar diferentes línguas, respondeu assim: “É como ter diferentes casas, diferentes personalidades. Vive-se numa linguagem, não num lugar. Mas isto começou quando eu era criança. A minha mãe costumava iniciar uma frase numa língua e acabá-la noutra, sem sequer se aperceber! Portanto, para mim, o francês, o alemão e o inglês eram completamente nativos. O italiano veio um pouco mais tarde.”



O que é certo, é que George Steiner compreendia como poucos não só várias línguas, mas também o mundo em que vivia, o mesmo é dizer, os sentidos quase infinitos das palavras ditas e escritas. Em síntese, traduzia a vida como ninguém.

O que nós queremos dizer, é que sabermos traduzir o sentido das palavras ditas e escritas, seja na nossa própria língua ou numa língua estrangeira, é uma benção sem fim.
Num livro, numa conversa, em alguém ou num poema há significados sem fim, quanto maior for a nossa capacidade para os traduzir, mais e melhor compreenderemos os outros, a nós próprios, à vida e ao mundo.

Sendo essa a nossa crença, compreendemos mal certas coisas que atualmente se vão passando. Por exemplo, descobrimos recentemente que aqui ao lado, em Espanha, há um movimento social crescente com imensas dúvidas sobre as vantagens de se aprender inglês logo desde tenra idade.


O problema em Espanha é demasiado complexo para aqui o detalharmos, no entanto, o que neste momento nos interessa, é que aqui ao lado há agora um movimento social que crê, que saber-se mais do que uma língua, prejudica as aprendizagens. Tal coisa parece-nos algo de tão profundamente errado, que até nos custa acreditar.

Acrescente-se a isto, que segundo todos os estudos internacionais, Espanha é um dos países europeus em que pior se sabe falar ou escrever em inglês. Posto isto, dir-se-ia que no país vizinho há movimentos sociais, que ao invés de quererem que através das palavras os horizontes se alarguem até quase ao infinito, preferem antes promover as vistas curtas.

A este propósito, transcrevemos um parágrafo de uma reportagem do jornal El Mundo acerca de como as convicções ideológicas influem neste tipo de questões. Decidimos não traduzir: “Cambridge Monitor revela que la ideología también es un factor que influye en el conocimiento del inglés entre los españoles. Los que mejor lo dominan: el centro derecha (el 29% dice tener un nivel "alto" o "muy alto") y el centro izquierda (22%). Por el contrario, únicamente el 16% de los individuos de extrema izquierda manejan la lengua anglosajona. La extrema derecha simplemente se queda fuera de la estadística, sin gente que crea que su nivel es elevado.”



Terminamos com Steiner que no seu primeiro livro, nos diz que “o homem está encurralado entre a finitude da condição humana e o infinito das estrelas”. Diz-nos também, que são as palavras, as de todas as línguas, o que nos permite que nasça em nós o desejo de ir para lá dos nossos limites, e vermos cada vez mais longe até termos como horizonte possível o infinito.

Abaixo uma pintura de Ferdinand Hodler (1853–1918), “Lake Thun with Symmetrical Reflection Before Sunrise”.

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