A imagem acima é de Graz, uma das mais típicas cidades austríacas. Aos seus ancestrais monumentos, às suas lindas igrejas e aos seus belos palácios, apenas lhes faltava um museu de arte contemporânea. Mas não um qualquer, um com uma arquitetura perfeitamente atual e que contrastasse tremendamente com tudo o resto, causando assim horror aos mais tradicionalistas e conservadores, àqueles que se batem para que a pátria se mantenha para sempre, tal e qual como era. Já agora, para quem eventualmente não se tenha apercebido, o museu de arte contemporânea de Graz é aquele bicho que se vê no meio da foto. É lindo, não é?
Amor Patriae é uma muito
antiga expressão latina, que significa amor à nossa nação, ou seja, à nossa
própria terra. Expressa também, a disponibilidade para se defender, se honrar e
se engrandecer a pátria amada, acima de tudo e de todos, e heroicamente por ela
lutar até ao fim, indo ao limite das nossas forças, e não desfalecendo antes do
último suspiro.
Abaixo uma
imagem de uma escultura de Carl Frederik Stanley de 1777, cujo título é
precisamente Amor Patriae. Como hão de
verificar, não é uma obra escultórica particularmente brilhante ou elegante,
sendo mesmo o oposto, pois é somente uma estátua um tanto ou quanto pomposa e
amaneirada. Não admira portanto, que o nome do seu autor não tenha ficado na
história.
Horror vacui é uma outra
expressão latina, cuja tradução literal é horror ao vazio, sendo esse um
sentimento, que se manifesta por um intenso desejo em preencher todos os
espaços vagos existentes, sobrecarregando-os com toda a espécie de ornamentos e
com uma enorme variedade de elementos decorativos.
Há gente que
atafulha de tal modo a sua sala de estar, com tantos e lindos bibelots, com
imensas bugigangas, com fotografias emolduradas que nunca mais acabam, com
trastes e tralhas compradas em viagens e com demais bric-à-brac`s, que uma
pobre alma, que a essa sala só lá vá de visita, fica subitamente de boca aberta
e atarantada, por ver a imensidão de peças e tarecos aí existentes
Quando
penetramos numa dessas sala de estar, ficamos inopinadamente desnorteados, ao
percebermos que estamos completamente cercados de quinquilharias, no entanto,
sabemos também nesse mesmo instante, que acabámos de entrar no lar, de alguém
que sofre de horror vacui.
Todavia,
tal situação, o horror vacui, não é
exclusiva de ambientes domésticos, igualmente em pinturas, gravuras, palácios e
igrejas, é possível constatar a existência dessa necessidade de tudo encher, e
não deixar um único espaço vazio.
Essa
circunstância é particularmente visível em obras de arte ou em edifícios
oriundos do período Barroco, como por exemplo, a capela na imagem abaixo, que
se situa no México.
Mudemos de
assunto. Iniciou-se por estes dias o festival de outono de Graz, que é a
segunda mais importante cidade da Áustria. O festival tem por lema o dito Horror Patriae. Dito esse, que faz referência
às expressões latinas horror vacui e
amor patriae, sendo uma espécie de
mistura das duas.
Como já se
adivinha, o Horror Patriae consiste
em detestar-se a sua própria pátria. Nada há de mais fácil, do que ter-se
desprezo pelo seu próprio país, e isso sobretudo se formos austríacos. Exemplos
disso mesmo não faltam, sendo Thomas Bernhard (1931-1989), um dos maiores
escritores de sempre da Áustria, um deles.
Para ele, a
Áustria era o inferno na terra. Bernhard nunca se perdoou a si mesmo por ser
austríaco. Nunca perdoou à Áustria a incompreensão pela sua escrita, mas também
o nacional-socialismo que a Alemanha Nazi lhe "impôs".
Apesar de
ser um dos mais importantes escritores austríacos do século XX, ou
provavelmente o mais importante, Bernhard nunca foi bem aceite na sua nação e
ainda hoje, quando já há muito faleceu, continua a ser um personagem polémico e
mal-amado.
Um dia
Thomas Bernhard disse que a totalidade da população austríaca, que à época era
de cerca de seis milhões e meio de pessoas, era constituída apenas por imbecis.
Como Thomas Bernhard era muito conhecido, o seu dito fez sensação e saiu nas
primeiras páginas dos jornais.
A imagem
abaixo faz parte de uma banda desenhada na qual se conta a vida de Thomas
Bernhard. A tradução para português de “Abendausgabe! Österreich: 6,5 millionen
debile” é a seguinte: “Última edição! Áustria: 6,5 milhões de idiotas”.
Vale muito a
pena ler Thomas Bernhard (que está todo editado em português), um autor que
mais do que falar-nos da Áustria, fala-nos fundamentalmente no sentido da vida:
“Eu não queria ser nada e, naturalmente, não queria transformar-me num mero
funcionário: tudo o que eu sempre quis foi ser eu.”
Mas voltemos
ao festival de outono de Graz, cuja lema este ano é Horror Patriae. Aparentemente, o tema escolhido não podia ter vindo
mais a propósito, pois no passado fim-de-semana houve eleições legislativas na
Áustria, tendo ficado em primeiro lugar um partido populista, nacionalista e
assumidamente nazi. Assim, o resultado do escrutínio justifica bem que se
exclame “Que horror de nação”!
Feitas as
contas, torna-se provável que Thomas Bernhard tenha tido alguma razão, mas não
teria certamente toda, pois ainda assim há na Áustria quem não seja imbecil e
se dedique a organizar festivais para gente culta e inteligente, como sucede em
Graz neste outono sob o mote Horror
Patriae.
Abaixo o
cartaz do festival de Graz, onde se vê um dos mais autênticos símbolos
nacionais da Áustria, ou seja, os altos Alpes. Quando um populista ou
nacionalista austríaco olha para a pura neve branca e para os verdes e alpinos
bosques, fica tremendamente emocionado, vêm-lhe as lágrimas aos olhos e
apetece-lhe imediatamente expulsar imigrantes e dançar uma valsa de Strauss.
O festival
de Graz, que vai na sua quinquagésima sétima edição, tem como principal intuito
ser um ponto de encontro de povos e culturas e centra-se nas formas de
expressão artística contemporâneas. Há exposições, concertos, danças, filmes,
leituras e muito mais, que permitem a quem o visita ver e saber que o mundo
atual é muito rico, diverso e vasto, e não se esgota na nossa aldeia e nas suas
gentes, nem se limita a continuamente replicar as tradições e costumes do
passado, abre-se ao futuro sem medo.
Na verdade,
a vastidão, diversidade e riqueza do mundo atual atravessa culturas e
nacionalidades, e quando muitas delas se encontram e se cruzam, todos ficamos
mais inteligentes e cultos, conseguindo assim melhor entender a nossa
contemporaneidade e a sua globalidade. Há portanto muito menos possibilidades
de alguém ser, permanecer ou se transformar em imbecil, o mesmo é dizer em
populista, nacionalista ou nazi.
O festival
de Graz, o que pedagogicamente pretende desde a sua origem, é que se perceba
que todos nascemos num qualquer país, mas que a nossa real pátria é o mundo, e
que os nossos compatriotas são as gentes vindas de qualquer sítio e oriundas de
qualquer cultura.
Já agora, se porventura alguém quiser consultar o programa, pode fazê-lo em:
https://www.steirischerherbst.at/en/program/6263/horror-patriae
Aí se diz que o festival “wants to expose the constructed, artificial character of any national
identity, as well as the roots of nationalism. It aims to dismantle
authenticities and make a case for fictitious scenarios as spaces of artistic
imagination.”
Na imagem
abaixo, pode ver-se um outdoor
concebido pelo artista japonês Yoshinori Niwa. O slogan que nele se apresenta, sugere-nos que é a cada um dos
nossos, ou seja, aos que são da nossa terra, do nosso país e têm a nossa
cultura de origem, que deve ser dada a primazia.
No cartaz, o
candidato (fictício) segura afirmativamente numa salsicha, um símbolo da autêntica
gastronomia austríaca. O cartaz está em Graz, e durante o festival que nessa
cidade está a decorrer, vai ser a pouco e pouco apagado, de modo que no fim
dele nada reste.
Regressemos
agora às expressões latinas que referimos no início deste texto, amor patriae e horror vacui. Em nosso entender, o extremo amor à pátria e os
consequentes populismos e nacionalismos que daí nascem, são uma máscara com que
muita gente tenta disfarçar e preencher o vazio que em si sente.
Perante um
mundo em que tudo muda muito rapidamente, em que há constantes novidades, em
que os conflitos se sucedem e em que as gentes, os povos e culturas
continuamente se misturam, há muito quem não compreenda nada do que passa e se
sinta vazio por dentro, sentido em si um horror
vacui.
Perante esse
horror vacui interior, há cada vez
mais quem se deixa aliciar pelas bugigangas, pelas tralhas e pelos lindos
bibelots, que populistas e nacionalistas vendem.
O produto
agora mais em voga é o amor patriae,
até mesmo em Portugal.
Ainda no
passado domingo, na principal praça da capital, ou seja, no Rossio, havia umas
quantas pobres pessoas que sentindo-se vazias por dentro e confusas com a
complexidade do mundo atual, gritavam a plenos pulmões “Portugal é nosso”.
Ao vê-las,
percebemos que esses gritos as protegiam e mascaravam o seu horror vacui, e
que o amor pratiae, era uma espécie de panaceia, digamos um falso ansiolítico,
que lhes foi prescrito por vendedores da banha da cobra.
Quem se
contenta com esse tipo de panaceias, disfarça assim o vazio que há em si, tudo
lhe parecendo então ser mais simples, tranquilo e bonito, tal e qual como o é
numa graciosa fotografia emoldurada, em que vemos os nossos honrados
antepassados, onde não muda nada, e em que para sempre tudo está fixo numa imagem,
que ilustra perfeitamente os belos tempos de antigamente.
E pronto, dito isto achamos que está tudo dito, quer relativamente aos austríacos, quer no que concerne aos festivais que há no Rossio.
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