O fado é a canção nacional, e mesmo pertencendo a todo o país, de norte a sul, do litoral ao interior, é com Lisboa que tem mais afinidades e mais íntimas relações.
Durante largas décadas, o fado exaltou sobretudo as mágoas, as desgraças e os
tristes destinos. Não era obrigatório que assim fosse, mas foi.
De algum
modo, ao longo de todo esse imenso tempo, o fado foi o veículo privilegiado
para expressar uma ancestral característica nacional, a saber, o coitadismo.
Tal termo designa as gentes que continuamente se lamentam, e que acham sempre
que não vale a pena fazer-se nada, que o melhor é ir-se deixando andar. Por
consequência disso, a tais gentes não lhes caem bem mudanças e alterações, e
têm uma forte tendência para embirrar com quem faz (ou tenta fazer) algo de
distinto e diferente.
Em síntese, o
coitadismo para além dos lamentos, cultiva simultaneamente o espírito de
rés-do-chão, ou seja, o da vizinha maldizente que está permanentemente à coca a
ver se há novidades acerca das quais possa desdenhar, dizer mal e dar à língua
com as comparsas da rua ao lado.
No entanto,
há quem se consiga elevar acima do rés-do-chão, fazer coisas distintas e diferentes,
e não somente passar a vida em desdéns e lamentos.
É nesse
contexto, que hoje vamos passear por Lisboa, a cidade por excelência do fado,
para vermos e ouvirmos umas quantas canções (e entre elas uns fados), que não
são fatalistas nem derrotistas, nem desdenham de ninguém, e que por tudo isso,
contrariam um certo antigo modo português de ser.
As canções
que aqui escolhemos (e entre elas uns fados), têm uma característica em comum,
atravessam e são atravessadas. Por um lado, todas são atravessadas por uma
outra área disciplinar, que não a musical, a saber pelo cinema. Por outro lado,
todas atravessam as praças, vielas, ruas e bairros de Lisboa.
Nesse
sentido, são todas interdisciplinares, sendo portanto claros exemplos da
afinidade existente entre uma melodia, as palavras que nela se dizem, as
imagens que a acompanham e a cidade que canta.
Começamos
por um fado, “A Bia da Mouraria”, que parece ser muito antigo, do mais tradicional
que existe, mas que todavia é de 1978. À data da sua primeira apresentação em
palco, teve logo tanto êxito, que foi cantado sete vezes de seguida. Poderia
ter-se ficado por aí, obtendo um sucesso espectacular, porém fugaz. No entanto,
não. O dito fado permaneceu nos lábios e ouvidos de toda a gente e, há uns
poucos anos, até ganhou um renovado esplendor, quando Carminho o cantou.
Para além da
Carminho o ter cantado, João Botelho, um prestigiado cineasta, filmou-a
enquanto ela o fazia. Botelho realizou lindos e literários filmes, como por
exemplo, “Um Adeus Português”, “Os Maias” ou “O Filme do Desassossego”, mas não
se importou de realizar um videoclip do humilde e popular fado, “A Bia da
Mouraria”.
Abaixo o
resultado do cruzamento entre as imagens captadas por um cineasta e as palavras
cantadas por uma fadista. Aqui não se cantam desgraças, nem tristes destinos e
também não há desdéns, isto apesar de na Mouraria só se falar do namorico entre
a Bia e o Chico. Lisboa apresenta-se luminosa e até a recatada e escura capela
de Nossa Senhora da Saúde se enche de luz:
Recuemos agora umas décadas, para o tempo do afamado fadista e cançonetista, Tony de Matos. Aqui o vemos elegante e contente, a descer a Rua do Conde Redondo.
“Lisboa
acordou” não será certamente o tema mais famoso de Tony de Matos, pois os seus
grandes êxitos foram canções como “Vendaval”, "Cartas de Amor" ou “Só
Nós Dois". De modo oposto ao que sucede nos maiores sucessos de Tony, nos
quais o drama, o sofrimento, a tragédia, o desamor e a fatalidade estão sempre
presentes, em “Lisboa acordou”, há pelo contrário uma certa leveza e alegria.
“Lisboa
acordou” faz parte da banda sonora do filme “Rapazes de Táxi” de 1965, que nos
relata a história de chóferes bem-dispostos e namoradeiros. Na cena em que a
canção surge na película, vemos uma Lisboa que amanhece.
As ruas da Baixa e o Terreiro do Paço despertam lentamente mas sem lamentos, ninguém se queixa de falta de sono, nem de ter de ir trabalhar. Lisboa sorri à luz da manhã.
Um fado
certamente alegre, é o cantado por Cuca Roseta, “Balelas”. Também aqui a
história é simples, o que temos é uma moça de Alfama, protagonizada pela Cuca
que, segundo ela própria o diz, anda feita ao bife com um xerife lá do bairro
que gosta de se armar em patife.
Trata-se de
um rapaz de ar naïf, mas muito dado a conversas de chacha e a passar graxa às
moças da vizinhança. A Cuca é que fica confusa e diz de si para consigo: “Agora é
que vão ser elas”.
O vídeoclip
de “Balelas” foi realizado por Pedro Varela, que ficou conhecido pelos remakes
de “A Canção de Lisboa” e de “O Pátio das Cantigas”. Nós não os vimos e
também não os vamos ver. Na nossa opinião tais filmes são apenas subprodutos
feitos à base de um saudosismo pouco saudável, sendo o seu principal
ingrediente uma Lisboa feita de cenários e adereços de plástico, uma cidade que
não existe nem nunca existiu.
Mas dito
isto, no videoclip consegue retratar com verdade uma certa alma de Lisboa, um
certo modo malandro de viver muito próprio de Alfama, a luz do céu sobre o rio
e a humilde beleza do casario, de certos becos e ruelas, e das escadinhas e
miradouros. No fundo, é um perfeito casamento interdisciplinar entre cinema,
fado e cidade.
Até este
momento falámos de canções e fados alegres, matinais e plenos de luz, vamos
agora falar-vos de um nocturno e melancólico. A melancolia não é o mesmo nem se
confunde com o queixume e com o lamento, e muito menos ainda com o coitadismo.
Tem na realidade uma outra dignidade, que lhe é conferida por ser atravessada
por uma qualquer espécie de atmosfera poética.
Ao ouvirmos
e vermos Camané a cantar “Sei de um rio”, não há como não nos lembrarmos do
início de um poema de Cesário Verde:
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal
melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a
maresia
Despertam-me um desejo absurdo de
sofrer
Essa
atmosfera intensifica-se quando as notas da melodia e a voz de Camané estão
acompanhadas pelas imagens das ruas da cidade durante as horas nocturnas, nas quais existem sombras e a única luz que há é a dos candeeiros e a que se reflecte nas águas do rio.
O videoclip
de “Sei de um rio” foi realizado por Bruno Almeida, cineasta que andou longos
anos por Nova Iorque e que gosta que os personagens por si filmados, possuam um
certo “je ne sais quoi”, um misto de fantasia e marginalidade, ou seja, que se
aparentem à noite e tenham uma presença e um porte, que lhes dê um ar irreal,
quase de lenda.
No videoclip
“Sei de um rio”, para além de Camané, também o rio e a cidade são personagens
que, como todos as outras filmadas por Bruno Almeida, oscilam entre a lenda e a
realidade. Há estrelas que não são bem estrelas mas sim as luzes da cidade, e
um rio onde a própria mentira tem o sabor da verdade.
Aqui fica “Sei
de um rio”, a voz mistura-se com imagens, e ambas com a noite e a cidade num
melancólico momento interdisciplinar:
Poderíamos perfeitamente terminar com o tema “Um Homem na Cidade”. Seria o epílogo ideal, pois nesse fado há um poema de Ary dos Santos, a voz e a presença de Carlos do Carmo e as guitarras de António Chainho e Raul Nery.
Para além disso, o
consagrado cineasta espanhol Carlos Saura, no seu premiado filme “Fados” de
2007, dedicou um excerto dessa sua película ao fado “Um Homem na Cidade”, no
qual podemos ver Carlos de Carmo diante de imagens da Lisboa de sempre e das
suas gentes, dessas que não se queixam nem se lamentam, mas que têm amor à
liberdade e de manhã cedo com a cidade se levantam.
Como
já dissemos, poderíamos ter terminado com “Um Homem na Cidade”, contudo
queremos finalizar de uma forma distinta e diferente. Para esse efeito,
escolhemos o filme “Kilas o Mau da Fita” e “A Balada de Rita”, mulher cujos
sítios de Lisboa por onde andava eram bastante mal-afamados e muito mal
frequentados.
A vida de Rita era dura, andou com homens de faca, viveu com homens safados e morou com homens de briga. Uns acabaram de maca e outros ainda mais deitados, o coveiro que o diga.
Ainda assim, e como ela própria o diz, não desmoralizou, e
mesmo exausta e exangue, disse adeus à desdita e lançou mãos à
aventura sem se perder no coitadismo. É um exemplo extremo, de quem quis sempre
fazer diferente e procurou um distinto destino e nunca se limitou a ir deixando
andar.
Não
sabemos se Rita foi ou não transdisciplinar, mas se não o foi, poderia muito
bem tê-lo sido. Parece-nos que tinha coragem para isso, pois jamais se recusou
a palmilhar ruas e a calcar caminhos. “A Balada de Rita”:
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