“O que as mulheres querem” é o título de uma comédia de Hollywood protagonizada por Mel Gibson. A tese que o filme ilustra em tom de comédia, é de que as mulheres querem um imenso rol de coisas e algumas delas contraditórias.
Foi precisamente isso, o que o personagem principal da história acabou por descobrir após ter tido um estranho acidente, cuja consequência foi passar a saber o que pensam as mulheres. Nesse contexto, ficou a perceber que as mulheres querem que alguém as desarrume completamente, mas também o contrário, pois têm receio que algo se estrague, risque, amolgue ou parta e elas querem (e não querem) permanecer intactas. Aqui fica um clip:
Uma questão que tem atravessado o mundo da arte nos últimos tempos, é se eventualmente as mulheres foram discriminadas ao longo da história, e as “artistas femininas” nunca terão sido devidamente reconhecidas, tendo sido arrumadas num lugar irrelevante.
Leonardo da Vinci é considerado um génio, Van Gogh também e Picasso não lhes fica atrás, mas dito isto, onde estarão as mulheres das quais poderíamos dizer o mesmo?
Há uma forma óbvia de responder a tal questão, a saber, relembrando que as mulheres não tinham dantes tantas oportunidades como os homens para se dedicarem à arte, pois o papel que lhes estava atribuído pela sociedade era o de serem esposas e mães e terem como tarefa diária as lides domésticas, mantendo o lar limpo e arrumado.
Sendo certo que assim era, o facto é que mesmo assim sendo, houve ao longo da história umas quantas mulheres que se dedicaram à arte, mas mesmo essas poucas quantas, nunca terão sido convenientemente valorizadas pelos historiadores de arte.
A nível nacional há um caso famoso, Josefa D’ Óbidos (1630-1684). A verdade era que Josefa era filha de pai artista, razão pela qual, cedo terá começado a pintar. A sua especialidade foram os quadros com flores, frutas e bolos.
Apesar dos serviços de Josefa D’ Óbidos terem sido muito requisitados no seu tempo, os temas que ela pintava eram considerados menores e as suas obras eram tomadas mais como objetos bonitos e decorativos, e não tanto como exemplos da grande arte, a equivalente à que saiu da mente de génios como Leonardo, Michelangelo ou Rafael.
Dir-se-ia que o histórico desdém com que as gentes sempre olharam para a arte criada por mulheres, terá a ver com os assuntos aos quais elas se dedicavam nas suas obras, serem mais de cariz doméstico, como por exemplo, flores, frutos e bolos.
O mesmo é dizer que os seus temas eram de trazer por casa e, por consequência, as suas obras não educavam nem elevavam o espírito e a alma, servindo meramente para decorar o nicho de um quarto, um recôndito altar, o canto de uma sala de estar ou uma parede de cozinha.
Todavia há quem assim não pense e creia que as mulheres artistas, por excelentes que fossem, de um modo consciente e intencional ou apenas por negligência, foram pura e simplesmente ignoradas pela História da Arte.
Quer isto dizer que as mulheres artistas terão criado obras tão dignas e importantes como as dos homens, só que ninguém lhes deu o devido valor e arrumaram-nas nas prateleiras do esquecimento. É esse o argumento da escritora britânica Katy Hessel, que para o provar, resolveu questionar o cânone e escrever “A História da Arte sem homens”.
O livro de Katty Hessel desarruma totalmente os homens do lugar que sempre ocuparam ao longo da História da Arte, para ao invés lá arrumar as mulheres.
Curiosamente, Katy Hessel esteve há uns dias em Lisboa para apresentar a versão portuguesa do seu livro, tendo então sido entrevistada por diversos órgãos de comunicação social.
Numa entrevista dada ao jornal Observador, Katy Hessel fala-nos do caso de Katsushika Ōi (1800-1866), uma artista japonesa praticamente desconhecida, em virtude de toda a sua vida ter permanecido na vasta sombra de seu pai, o muito célebre Hosukai, autor da não menos famosa estampa A Grande Onda de Kanagawa.
Katsushika Ōi é autora de delicadas e subtis gravuras das quais se desprende uma misteriosa aura e uma atmosfera poética muito própria da cultura nipónica. Era alguém que merecia, tal como o seu pai, ter um lugar de destaque na História da Arte, no entanto, não é isso o que sucede.
Há na verdade até quem aponte a hipótese de A Grande Onda de Kanagawa não ser afinal da autoria do grande Hosukai, mas sim da sua filha, a esquecida Katsushika Ōi. Segundo a tese de Katy Hessel, recordar o seu nome é corrigir uma injustiça histórica.
Katy Hessel refere no seu livro “A História da Arte sem homens” muitos outros casos de mulheres artistas como Katsushika Ōi, que foram olvidadas pela história. Refere por exemplo Rosa Bonheur (1822-1899), uma artista realista francesa que quase ninguém conhece e cujas obras estão arrumadas nas salas secundárias dos museus.
Na reportagem televisiva que se segue, Katy Hessel dirige-se ao Met de Nova Iorque, a uma sala em particular, e fala-nos de Rosa Bonheur. Ao ouvi-la torna-se de facto difícil de compreender, as razões pelas quais, artistas como Rosa Bonheur foram ignoradas pela História da Arte:
Um outro caso muito curioso, que Katty Hesse também salienta, é o da artista italiana Sofonisba Anguissola (1532-1625). Uma das suas obras intitula-se “Bernardino Campi pintando Sofonisba Anguissola”, é esta abaixo:
Na imagem acima, o que vemos é o pintor Bernardino Campi, que foi professor de Sofonisba Anguissola, retratando-se a si mesmo a pintar a sua discípula. Na pintura vemos Bernardino numa pose segura e confiante, como é próprio de um mestre. Vemos igualmente Sofonisba com ar de aluna, com o olhar humilde e tranquilo de quem está a ver e a aprender.
No entanto, se pensarmos bem no assunto, rapidamente chegaremos à conclusão que a relação hierárquica docente-discente se inverte, pois na realidade quem efetivamente se retratou a si mesma e a Bernardino foi Sofonisba Anguissola e não o contrário.
Se olharmos mais atentamente para o olhar de Sofonisba, constatamos que ele não é tanto o de uma humilde discípula, mas mais o de alguém que está a pintar e que observa detalhadamente o que está a retratar.
Significa isto que a pintura aparenta ter como tema um mestre a retratar a sua aluna, mas na verdade o tema é exatamente o oposto. No fundo, para Katy Hessel, esta imagem é uma perfeita metáfora para a relação homens-mulheres ao longo da História da Arte, ou seja, ao primeiro olhar é o homem que se destaca, vendo com mais atenção percebe-se que a figura principal é afinal uma mulher.
Abaixo “Jeune femme dessinant” obra de 1801 de Marie-Denise Villers. Quando este quadro em 1922 foi adquirido e levado para o Met de Nova Iorque, o seu valor era de centenas de milhares de dólares, pois a sua autoria estava atribuída ao ilustre artista Jacques-Louis David. Depois descobriu-se que afinal o quadro tinha sido pintado por uma mulher, a dita Marie-Denise Villers, e imediatamente o seu valor financeiro caiu a pique.
Neste entretanto reabriu o Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, depois de longas obras de renovação do edifício. A primeira exposição do renovado centro ocupa a totalidade da grande nave central do edifício e é de uma mulher, Leonor Antunes. No mezanino há um complemento à exposição, onde são apresentadas obras de três dezenas de artistas mulheres da Coleção do CAM.
O título da exposição é “Da desigualdade constante dos dias de Leonor”. Título esse que Leonor Antunes foi buscar a um desenho de 1972 de Ana Hatherly, este abaixo:
Como é fácil de constatar, o desenho de Ana Hatherly é um tanto ou quanto desarrumado. Digamos que é uma composição estrepitosa, onde ondas de linhas se entrelaçam umas nas outras, plenas de uma energia rodopiante, parecendo quererem ir para lá dos limites que as abarcam.
Inspirada no desenho de Ana Hatherly, Leonor Antunes fez algo de semelhante, só que não no papel, mas sim na nave central do Centro de Arte Moderna que ficou todo desarrumado com linhas e cordas a pender por todo o lado, laços e nós que nada atam, prendem ou enlaçam, e coisas penduradas por todos os sítios. Em resumo, é uma grande desarrumação.
Ao contrário das personagens femininas da comédia “O que as mulheres querem”, Ana Hatherly e Leonor Antunes parecem não ter grande receio de desarrumações, mas outro tanto já não pode ser dito de quem quer que decidiu, que o melhor espaço para arrumar as principais obras da coleção do Centro de Arte Moderna é um armazém numa cave.
As obras de Almada Negreiros, de Amadeo de Souza Cardoso e de outros importantes artistas, estão todas juntas num depósito, sem a menor das condições para que quem as vem ver, sejam alunos vindos das escolas, simples visitantes locais, estudiosos ou turistas, o possa fazer de modo conveniente.
É no mínimo esquisito, que as obras fundamentais de uma coleção, que são igualmente marcos da cultura nacional, estejam semi-escondidas e armazenadas numa cave.
Estamos em crer que quem decidiu arrumá-las dessa forma, o fez porque queria dar todo o destaque às artistas mulheres, só que, em nosso entender, isso poderia perfeitamente ser feito, sem arrumar as principais obras da coleção num armazém.
Dir-se-ia que quem decidiu gosta de tudo muito arrumadinho, com cada coisa no seu respectivo lugar. Assim sendo, terá pensado que se a atual principal exposição é a de uma artista mulher, o resto que não seja de mulheres vai tudo corrido para a cave, não havendo cá misturas.
O Centro de Arte Moderna cumprirá a sua missão se desarrumar as mentes de quem o visita, dando simultaneamente a ver peças de arte que ficaram na história e confrontando-as com as mais recentes, baralhando ideias e também artistas mulheres, homens e o mais que houver. Só estragando opiniões fixas, riscando estreitas certezas, amolgando conceitos cristalizados e partindo estáticas definições, o irá conseguir.
Quanto a quem decidiu colocar as melhores obras da coleção num armazém, o mais que lhe podemos dizer é: ARRUMA-TE.
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