Avançar para o conteúdo principal

On the Road (3): os grandes solitários



Bem no âmago da alma americana está a solidão. Não uma solidão triste e acabrunhada, mas sim uma solidão que resulta de uma escolha independente e consciente, que nasce de um imenso desejo de liberdade e de não querer prestar contas a ninguém, senão a si mesmo.

Esse traço característico da alma americana é quase incompreensível noutras paragens, nas quais o espírito gregário é absolutamente dominante. 
Em Portugal como noutros locais, valores como a família, a comunidade, a congregação, a coletividade ou a nação estão sempre na boca de toda a gente, já na América o que fundamentalmente conta é o indivíduo.


Não que os americanos não tenham um enorme sentido de comunidade ou de nação, contudo, o valor que sempre se sobrepõe é o do indivíduo. 
Na América nunca ninguém se esquece que um grupo, qualquer grupo, é formado por um conjunto de elementos individuais e não é um todo em si mesmo. Tal nada tem que ver com egoísmo ou egocentrismo, tem sim a ver com autonomia e independência.

Quando olhamos a partir da Europa para os americanos, achamos estranho que eles queiram possuir armas de fogo e se recusem a que haja um sistema de saúde público de acesso gratuito para todos os cidadãos. 

Contudo, e apesar de todos os nefastos efeitos de tais políticas, o que nelas está presente é a vontade de cada um ter o seu destino nas próprias mãos e, em última instância, não depender de nada nem de ninguém: nem da família, nem da comunidade, nem dos vizinhos nem da polícia e nem sequer do estado.


Henry David Thoreau nasceu em 1817 e foi um dos primeiros grandes pensadores norte-americanos. Os livros, ensaios, artigos de jornal e poesias de Thoreau chegam para mais de vinte volumes, mas a sua obra mais célebre, aquela que se tornou um clássico e ainda hoje é estudada em todas as escolas americanas, intitula-se “Walden”.

O título refere-se ao lago Walden no Massachusetts, local afastado para o qual Thoreau se decidiu retirar em 1854. A ideia dele era viver uma vida simples e protestar contra o sistema, bem como, libertar-se das obrigações e constrangimentos da sociedade. Construiu uma cabana com as suas próprias mãos e dedicou o seu tempo à escrita e a observar a natureza.

Uma das suas mais famosas passagens é a seguinte: “Acho saudável ficar sozinho a maior parte do tempo. Ter companhia, mesmo a melhor delas, logo cansa e desgasta. Gosto de ficar só. Nunca encontrei melhor companhia do que a que a solidão me proporciona. Em geral estamos mais solitários quando saímos e convivemos com os homens do que quando ficamos nos nossos aposentos.”

A cabana de Henry David Thoreau é hoje em dia um monumento nacional, facto que se compreende, pois ela é um dos maiores símbolos da alma americana.


Um outro símbolo das grandes solidões norte-americanas são as obras do pintor Edward Hooper (1882-1967). Não há como olharmos para os personagens que ele retrata nos seus quadros e não sentirmos que estamos perante a quinta essência da alma americana.

A sua obra mais famosa, que se encontra no Art Institute of Chicago é “Nighthawks”. Nela vemos uma cena noturna, com diversos personagens num bar algures em Nova Iorque.
É verdade que vemos um grupo de pessoas, talvez troquem ou venham a trocar umas quantas palavras entre si, mas o que é certo, é que cada um dos personagens está ensimesmado, e por muito que estejam em conjunto, a realidade é que cada um se apresenta fundamentalmente como um indivíduo, envolto nos seus solitários pensamentos.



O que este, como outros quadros de Edward Hooper nos mostram, é que as solidões americanas não são necessariamente tristes, quando muito, e nem sempre, podem ser meramente melancólicas.

A esse propósito, há uns tempos, o The New Yorker publicou um artigo cujo título até tinha o seu quê de alegre, “The Delight of Edward Hopper’s Solitude”, aqui fica:


https://www.newyorker.com/culture/cultural-comment/the-delight-of-edward-hoppers-solitude


Na verdade, o que nós gostamos nos americanos, é precisamente dessa sua qualidade que lhes permite não ver na solidão um problema, mas sim uma forma de ser e de estar. 

Mais uma vez repetimos, os americanos não são egocêntricos, insensíveis ou egoístas, muito pelo contrário, têm até um alto sentido de comunidade, do que não abdicam é da sua individualidade.

A noção de comunidade não os faz esquecer que, sejam quais forem as circunstâncias, e que mesmo fazendo todos nós parte de uma família, de um bairro, de uma localidade ou de uma nação, o que efectivamente e em última instância somos, é indivíduos, cada um com as suas características, vontades e particularidades.



Na imagem acima vemos uma imagem do álbum fotográfico de Robert Frank (1924-2019), “The Americans”. 

Nessa foto, como em muitas mais do mesmo autor, vislumbramos essa condição única que é ser americano, ou seja, o saber-se que se faz parte de uma família, de uma vizinhança ou de um país, mas que, “at the end of the day”, por muito que sejamos um conjunto, é importante nunca esquecermos, que cada um de nós é um individuo que tem o seu próprio caminho.

Como cantava Frank Sinatra: I traveled each and every highway, and more, much more than this, I did it my way”. Abaixo, mais uma foto de Robert Frank do álbum “The Americans”, em que cada um segue o seu caminho.

 



Pensemos nos Westerns. Os Westerns são para a América aquilo que a Odisseia ou a Ilíada eram para a Grécia. Enfim, é impossível compreender a mitologia norte-americana sem se saber quem foi John Wayne, tal e qual como é impossível perceber-se a história grega não se sabendo quem foi Ulisses. 


De entre todos os filmes de John Wayne há um em particular que mostra bem que a solidão americana não é uma condição, é sim uma escolha, e, ao mesmo tempo, um destino. 


O filme de que falamos é "The Searchers", em português, "A desaparecida". A sinopse é simples, John Wayne é chamado pela sua família para ir em busca da sua sobrinha que foi raptada pelos Comanches. Ele lá vai, e anda o filme inteiro à sua procura. No fim, encontra-a e trá-la para casa. Aí chegado, entrega-a. O herói e cowboy cumpriu a sua missão. 

Dito isto, a mais profunda das cenas cinematográficas norte-americanas é quando se vê John Wayne partir, com o seu típico modo de andar, deixando para trás a sobrinha e respetiva família. 

Esforçou-se pela sua comunidade, colocou a sua vida em risco, percorreu vales e pradarias, mas no final vira as costas ao lar e, com a luz defronte, parte sabendo que, seja lá como for, o seu caminho é solitário, como o de qualquer lenda americana.




É provável que a mais sentida voz da poesia norte-americana tenha sido Emily Dickinson. A escritora nasceu em Amherst, no Massachusetts, nos Estados Unidos, em 10 de dezembro de 1830. 

Emily Dickinson ficou conhecida pela sua reclusão e solidão, vivendo praticamente isolada no seu quarto. Ela escreveu intensamente, mas não publicou mais de dez poemas durante a sua vida inteira. Ainda assim, é a voz da América. 

Deixamos-vos um dos seus mais conhecidos poemas, um em que se fala da dificuldade americana em ser-se alguém para outro alguém, na verdade, como argumentámos ao longo de todo este texto, a essência primeira da América é a solidão.

I’m Nobody! Who are you?
Are you – Nobody – too?
Then there’s a pair of us!
Don't tell! they'd advertise – you know!

How dreary – to be – Somebody!
How public – like a Frog –
To tell one’s name – the livelong June –
To an admiring Bog!

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Os professores vão fazer greve em 2023? Mas porquê? Pois se levam uma vida de bilionários e gozam à grande

  Aproxima-se a Fim de Ano e o subsequente Ano Novo. A esse propósito, lembrámo-nos que serão pouquíssimos, os que, como os professores, gozam do privilégio de festejarem mais do que uma vez num mesmo ano civil, o Fim de Ano e o subsequente Ano Novo. Com efeito, a larguíssima maioria da população, comemora o Fim de Ano exclusivamente a 31 de dezembro e o Ano Novo unicamente a 1 de janeiro. Contudo, a classe docente, goza também de um fim de ano algures no final do mês de julho, e de um Ano Novo para aí nos princípios de setembro.   Para os nossos leitores cuja agilidade mental eventualmente esteja toldada pelos tantos comes e bebes ingeridos na época natalícia, explicitamos que o fim do ano letivo é em julho e o início em setembro. É disso que aqui falamos, esclarecemos nós, para o caso dessa subtil alusão ter escapado a alguém.   Para além da classe docente, são poucos os que têm esta oportunidade, ou seja, a de ter múltiplas passagens de ano num só e mesmo ano...

Que bela vida a de professor

  Quem sendo professor já não ouviu a frase “Os professores estão sempre de férias”. É uma expressão recorrente e todos a dizem, seja o marido, o filho, a vizinha, o merceeiro ou a modista. Um professor inexperiente e em início de carreira, dar-se-á ao trabalho de explicar pacientemente aos seus interlocutores a diferença conceptual entre “férias” e “interrupção letiva”. Explicará que nas interrupções letivas há todo um outro trabalho, para além de dar aulas, que tem de ser feito: exames para vigiar e corrigir, elaborar relatórios, planear o ano seguinte, reuniões, avaliações e por aí afora. Se o professor for mais experiente, já sabe que toda e qualquer argumentação sobre este tema é inútil, pois que inevitavelmente o seu interlocutor tirará a seguinte conclusão : “Interrupção letiva?! Chamem-lhe o quiserem, são férias”. Não nos vamos agora dedicar a essa infrutífera polémica, o que queremos afirmar é o seguinte: os professores não necessitam de mais tempo desocupado, necessitam s...

Se a escola não mostrar imagens reais aos alunos, quem lhas mostrará?

  Que imagem é esta? O que nos diz? Num mundo em que incessantemente nos deparamos com milhares de imagens desnecessárias e irrelevantes, sejam as selfies da vizinha do segundo direito, sejam as da promoção do Black Friday de um espetacular berbequim, sejam as do Ronaldo a tirar uma pastilha elástica dos calções, o que podem ainda imagens como esta dizer-nos de relevante? Segundo a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, no pré-escolar a idade média dos docentes é de 54 anos, no 1.º ciclo de 49 anos, no 2.º ciclo de 52 anos e no 3.º ciclo e secundário situa-se nos 51 anos. Feitas as contas, é quase tudo gente da mesma criação, vinda ao mundo ali entre os finais da década de 60 e os princípios da de 70. Por assim ser, é tudo gente que viveu a juventude entre os anos 80 e os 90 e assistiu a uma revolução no mundo da música. Foi precisamente nessa época que surgiu a MTV, acrónimo de Music Television. Com o aparecimento da MTV, a música deixou de ser apenas ouvida e pa...

Avaliação de Desempenho Docente: serão os professores uns eternos adolescentes?

  Há já algum tempo que os professores são uma das classes profissionais que mais recorre aos serviços de psicólogos e psiquiatras. Parece que agora, os adolescentes lhes fazem companhia. Aparentemente, uns por umas razões, outros por outras completamente diferentes, tanto os professores como os adolescentes, são atualmente dos melhores e mais assíduos clientes de psicólogos e psiquiatras.   Se quiserem saber o que pensam os técnicos e especialistas sobre o que se passa com os adolescentes, abaixo deixamos-vos dois links, um do jornal Público e outro do Expresso. Ambos nos parecem ser um bom ponto de partida para aprofundar o conhecimento sobre esse tema.   Quem porventura quiser antes saber o que pensamos nós, que não somos técnicos nem especialistas, nem nada que vagamente se assemelhe, pode ignorar os links e continuar a ler-nos. Não irão certamente aprender nada que se aproveite, mas pronto, a escolha é vossa. https://www.publico.pt/2022/09/29/p3/noticia/est...

A propósito de “rankings”, lembram-se dos ABBA? Estavam sempre no Top One.

Os ABBA eram suecos e hoje vamos falar-vos da Suécia. Apetecia-nos tanto falar de “rankings” e de como e para quê a comunicação social os inventou há uma boa dúzia de anos. Apetecia-nos tanto comentar comentadores cujos títulos dos seus comentários são “Ranking das escolas reflete o fracasso total no ensino público”. Apetecia-nos tanto, mas mesmo tanto, dizer o quão tendenciosos são e a quem servem tais comentários e o tão equivocados que estão quem os faz. Apetecia-nos tanto, tanto, mas no entanto, não. Os “rankings” são um jogo a que não queremos jogar. É um jogo cujo resultado já está decidido à partida, muito antes sequer da primeira jogada. Os dados estão viciados e sabemos bem o quanto não vale a pena dizer nada sobre esse assunto, uma vez que desde há muito, que está tudo dito: “Les jeux sont faits”.   Na época em que a Inglaterra era repetidamente derrotada pela Alemanha, numa entrevista, pediram ao antigo jogador inglês Gary Lineker que desse uma definição de futebol...

Aos professores, exige-se o impossível: que tomem conta do elevador

Independentemente de todas as outras razões, estamos em crer que muito do mal-estar que presentemente assola a classe docente tem origem numa falácia. Uma falácia é como se designa um conjunto de argumentos e raciocínios que parecem válidos, mas que não o são.   De há uns anos para cá, instalou-se neste país uma falácia que tarda em desfazer-se. Esse nefasto equivoco nasceu quando alguém falaciosamente quis que se confundisse a escola pública com um elevador, mais concretamente, com um “elevador social”.   Aos professores da escola pública exige-se-lhes que sejam ascensoristas, quando não é essa a sua vocação, nem a sua missão. Eventualmente, os docentes podem até conseguir que alguns alunos levantem voo e se elevem até às altas esferas do conhecimento, mas fazê-los voar é uma coisa, fazê-los subir de elevador é outra.   É muito natural, que sinta um grande mal-estar, quem foi chamado a ensinar a voar e constate agora que se lhe pede outra coisa, ou seja, que faça...

Luzes, câmara, ação!

  Aqui vos deixamos algumas atividades desenvolvidas com alunos de 2° ano no sentido de promover uma educação cinematográfica. Queremos que aprendam a ver imagens e não tão-somente as consumam. https://padlet.com/asofiacvieira/q8unvcd74lsmbaag

Pode um saco de plástico ser belo?

  PVC (material plástico com utilizações muito diversificadas) é uma sigla bem gira, mas pouco usada em educação. A classe docente e o Ministério da Educação adoram siglas. Ele há os os QZP (Quadros de Zona Pedagógica), ele há os NEE (Necessidades Educativas Especiais), ele há o PAA (Plano Anual de Atividades), ele há as AEC (Atividades de Enriquecimento Curricular), ele há o PASEO (Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória), ele há a ADD (Avaliação do Desempenho Docente), ele há os colegas que se despedem com Bjs e Abc, ele há tantas e tantas siglas que podíamos estar o dia inteiro nisto.   Por norma, a linguagem ministerial é burocrática e esteticamente pouco interessante, as siglas são apenas um exemplo entre muitos outros possíveis. Foi por isso com surpresa e espanto, que num deste dias nos deparámos com um documento da DGE (Direção Geral de Educação) relativo ao PASEO, no qual se diz que os alunos devem “aprender a apreciar o que é belo” .  Assim, sem ...

Dar a matéria é fácil, o difícil é não a dar

  “We choose to go to the moon in this decade and do the other things, not because they are easy, but because they are hard."   Completaram-se, no passado dia 12 de setembro, seis décadas desde que o Presidente John F. Kennedy proferiu estas históricas palavras perante uma multidão em Houston.  À época, para o homem comum, ir à Lua parecia uma coisa fantasiosa e destinada a fracassar. Com tantas coisas úteis e prementes que havia para se fazer na Terra, a que propósito se iria gastar tempo e recursos para se ir à Lua? Ainda para mais, sem sequer se ter qualquer certeza que efetivamente se conseguiria lá chegar. Todavia, em 1969, a Apolo 11 aterrou na superfície lunar e toda a humanidade aclamou entusiasticamente esse enorme feito. O que antes parecia uma excentricidade, ou seja, ir à Lua, é o que hoje nos permite comunicar quase instantaneamente com alguém que está do outro lado do mundo. Como seriam as comunicações neste nosso século XXI, se há décadas atrás ninguém tive...

És docente? Queres excelente? Não há quota? Não leves a mal, é o estilo minimal.

  Todos sabemos que nem toda a gente é um excelente docente, mas também todos sabemos, que há quem o seja e não tenha quota para  como tal  ser avaliado. Da chamada Avaliação de Desempenho Docente resultam frequentemente coisas abstrusas e isso acontece independentemente da boa vontade e seriedade de todos os envolvidos no processo.  O processo é a palavra exata para descrever todo esse procedimento. Quem quiser ter uma noção aproximada de toda a situação deverá dedicar-se a ler Franz Kafka, e mais concretamente, uma das suas melhores e mais célebres obras: " Der Prozeß" (O Processo) Para quem for preguiçoso e não quiser ler, aqui fica o resumo animado da Ted Ed (Lessons Worth Sharing):   Tanto quanto sabemos, num agrupamento de escolas há quota apenas para dois a cinco docentes terem a menção de excelente, isto dependendo da dimensão do dito agrupamento. Aparentemente, quem concebeu e desenhou todo este sistema de avaliação optou por seguir uma de...