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Faz rir a ideia de ouvir com os olhos senhor…


Arte e fado, são coisas que à partida, diríamos que não combinam. Com efeito, o fado parece ter crescido entre vadios e gente humilde, e mais concretamente, em lugares como tabernas, becos escuros e esconsas vielas. Por outro lado, e ao contrário do fado, a arte desenvolveu-se em academias, museus e galerias, andando quase sempre acompanhada por pessoas finas, bem educadas e ilustradas.

Dito isto, o Museu do Fado em Lisboa prepara-se para inaugurar uma exposição onde se cruzam arte e fado, o seu título é “Imagens do Fado na Arte Portuguesa”. Não é uma mostra qualquer, pois entre os artistas presentes, estarão alguns dos importantes do século XX e não só, como por exemplo, Columbano Bordalo Pinheiro, Almada Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso, Paula Rego e Júlio Pomar.


No entanto, queríamos começar por falar de José Malhoa (1855-1933) que foi um pintor naturalista célebre, e que era natural das Caldas da Rainha, onde existe um excelente museu a si dedicado.

Falamos-vos de José Malhoa, porque um dia, em 1910, ele pintou o mais conhecido dos quadros dedicados ao fado, este cuja imagem vedes abaixo:


Na obra é retratado Amâncio, afamado bandido da Mouraria, e uma mulher de má vida, que era conhecida como a Adelaide da Facada. Amâncio, para além de canalha, também tocava guitarra e cantava o fado. Adelaide exibia no rosto uma cicatriz desenhada a navalha.

Corria o ano de 1947, quando o cineasta Augusto Fraga, o compositor Frederico Valério e o letrista José Galhardo, decidiram realizar uma curta-metragem, que mais do que interdisciplinar, é transdisciplinar. A partir da pintura de José Malhoa, José Galhardo escreveu um poema, Frederico Valério musicou-o e, Augusto Fraga, encenou e filmou o resultado.

Para interpretar tudo isto, convidaram Amália Rodrigues, que a determinado momento canta assim:  "Faz rir a ideia de ouvir / Com olhos, senhores / Fará, mas não p’ra já / O viu mas em cores…”
O título da curta-metragem é “Fado Malhoa”, que aqui pode ser visto:


José Malhoa era naturalista, já Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) era modernista, um homem habituado a Paris e a conviver com artistas vanguardistas. Ainda assim, e por muito moderno que Amadeo fosse, tinha alma de fadista, pois não raras vezes aparecem em muitas das suas pinturas guitarras portuguesas e dedos que as dedilham.

Dir-se-ia que Amadeo de Souza-Cardoso era um modernista, mas que não desdenhava por isso de escutar a tradicional canção nacional, ou seja, o fado.


Há um quadro de Júlio Pomar de 2011, que se intitula “Fernando Pessoa e Alfredo Marceneiro”. É um par improvável, já que Pessoa concorre com Camões pelo título do maior escritor português de sempre, e Marceneiro era um mero analfabeto.

Todavia, mesmo não sabendo ler, Marceneiro cantava com garra e alma nos seus fados os desgraçados, os que pouco ou nada tinham e os demais vencidos da vida. Pouco lhe importavam as gentes finas, os que assumiam pose de artistas e os que faziam grandes senhores.

Nos seus fados há personagens como a Mariquinhas, que a única coisa que possuía era uma casa humilde que Marceneiro descrevia assim: “É de aparência singela/ Mas muito mal mobilada / E no fundo não vale nada /O tudo da casa dela.”

Mas ouçamos Marceneiro a descrever, como só ele soube fazer, a humilde vida da Mariquinhas, que segundo ele diz, “É doida pelas cantigas / Como no campo a cigarra/ Canta o fado à guitarra / De comovida até chora”:



Se pensarmos num dos maiores poemas de Fernando Pessoa, “Poema em linha reta”, verificaremos, que também ele, tal como Marceneiro, não aprecia gente que se tem a si mesmo como sendo grande e importante. Talvez tenha sido por isso, que Júlio Pomar os emparelhou numa pintura. Aqui fica o poema:

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida... Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Para terminarmos esta viagem entre o fado e arte, vamos a Almada Negreiros. Em 1970 Almada desenhou e pintou a lápis de cera a gravura abaixo. Como se pode ver, nela há guitarras e também uma mulher que parece um tanto ou quanto atarantada. É verem.


Nós não fazemos a menor ideia da razão pela qual a mulher desenhada por Almada está de olhos revirados e de boca aberta, como se estivesse sobressaltada. Seja como for, faz-nos lembrar de um fado recente, cantado por Camané, cujo nome é “A Guerra das Rosas”.

A narrativa desse fado conta-nos a história não só de uma mulher, mas simultaneamente de um homem, ou seja, de um casal, que estão atónitos, estupefactos e até estarrecidos um com o outro. Só para terem uma ideia, atentem nestes verso iniciais: "Partiste sem dizer adeus nem nada / Fingiste a culpa era toda minha /Disseste que eu tinha a vida estragada / E eu gritei-te da escada que fosses morrer sozinha…”

Em qualquer dos casos, o vídeo que ilustra a história, é também ele um óptimo exemplo do cruzamento de fado e arte, neste caso a arte cinematográfica. É com ele que terminamos, aqui fica:

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