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Janelas da alma



É um dito antigo, e tornou-se até um cliché, dizer-se que os olhos são a janela da alma. 
Mas, e se fossem sim, as próprias janelas, as janelas da alma? Ao contrário do que possa à primeira vista parecer, não é uma ideia disparatada, pois ao longo da História da Arte, muitas foram as vezes, em que personagens estando a uma janela, ou perto dela, estão a revelar-nos o que lhes vai pela alma.

Estranho paradoxo este, em que um personagem está a uma janela ou junto a ela, e mais do que estar a ver o que se passa lá por fora, no exterior, está sim a revelar a quem o vê o seu interior, ou seja, a mostrar o que lhe vai lá por dentro.


Não raras vezes, quem está à janela, junto a ela ou perto dela, lê. Na imagem acima o personagem parece ter abandonado o livro que tem sobre os joelhos e ter-se deixado enlevar pelo que vê. Todavia, esse enlevar-se aparenta ter como causa não tanto o que sucede lá fora, no exterior, mas sim o que se passa dentro de si, ou seja, o que imagina.

A forma como as cortinas descaem do alto e se espalham pelo solo, é semelhante ao modo como o braço direito do personagem parece ter-se abandonado à lei da gravidade.
Dir-se-ia que o seu olhar é vago, mas não, na verdade, o que sucede lá fora na rua, tal e qual como a narrativa do livro, aparentam ter sido despertadores que acordaram o personagem para o que acontece dentro de si, o que lhe vai na alma.

Abaixo, noutra pintura, uma do artista dinamarquês Vilhelm Hammershøi (1864-1913), o personagem não está à janela, mas sim junto a ela. Todavia, também este personagem lê, mas o quê? Talvez leia uma carta, examine uma conta por pagar, veja um recado urgente ou, quiçá, estude um convite íntimo.

Seja como for, o certo é que está centrada em si mesma, e o que se passa para lá da janela, na rua, mais do que uma realidade sólida e concreta, é um reflexo do que lhe vai pela alma.

Vemos pela janela, o que parece ser um céu plúmbeo, que mesmo sendo lívido e cinza, ainda assim, emite feixes de luz que entram pela casa adentro e a iluminam.


Talvez esta personagem, a do quadro de Hammershøi, seja afinal alguém, que mais do que ler, se lê. Ou seja, o mesmo é dizer, que se vê. Provavelmente a carta, a conta, o recado ou o convite, sejam só uma espécie de espelho, que faz com que a senhora retratada mergulhe na sua imaginação e no seu mais profundo interior.

A janela e o que dela se avista, tal como a luz que no chão se reflete, talvez existam tão-somente, como uma forma do artista nos dar a ver a alma do seu personagem.
“Each day through my window I watch her as she passes by…”

O verso é uma pausa na História da Arte, pois que, algures mesmo no início da década de 70, os “The Temptations” gravaram um tema, cujo mote inicial tem a ver com olhar através de uma janela, neste caso, e mais concretamente, de uma “window”. Aqui fica, “Just my imagination”:


Como se depreende da canção dos “The Temptations” há uma estreita relação entre imaginação e janelas. Repare-se que um surrealista como Salvador Dali pintou os mais estranhos e enigmáticos quadros, no entanto, e por uma vez, e sem mais exemplos, pintou uma simples mulher à janela.

Comparem-se todas as outras obras de Dali com esta abaixo, e perceber-se-á imediatamente, que havendo alguém à janela, pouco ou nada mais é preciso inventar. Até um surrealista empedernido como Dali, perante uma figura à janela, coisa alguma tinha a acrescentar. Aqui fica “Muchacha en la Ventana” de 1925:


Não há melhor filme para esta conversa, do que um de Alfred Hitchcock, que se intitula no original “Rear Window” e, em português, “Janela Indiscreta”. Vale muito a pena vê-lo uma e outra vez, pois descobre-se a cada visionamento, se formos atentos e inteligentes, novas metáforas e originais analogias.

Aparentemente, a história é simples, o fotógrafo L. B. Jefferies (James Stewart), está temporariamente confinado a uma cadeira de rodas no seu apartamento, em consequência de ter partido uma perna. Da sua janela, ele assiste à vida dos vizinhos.

A sua namorada, interpretada pela elegante Grace Kelly, visita-o com frequência, contudo, L. B. Jefferies (James Stewart) não lhe liga nenhuma, pois está obcecado com um dos seus vizinhos da frente, um caixeiro-viajante, que ele crê ter assassinado a esposa.

Nas suas repetidas visitas, a deslumbrante Grace Kelly, depara-se sempre com um L. B. Jefferies (James Stewart), que está mais interessado na vizinhança que vê da janela sentado na sua cadeira de rodas, do que nela.

Na cena abaixo, Grace Kelly faz mais uma tentativa para que ele lhe ligue, mas o que se vê da janela, pela enésima vez, acaba por se interpor entre os dois. Agora foi um animal de estimação, no caso um cão, que morreu.


Como é por demais evidente, a perna partida de L. B. Jefferies (James Stewart) é uma metáfora para uma outra coisa que não funciona. E, o cão morto, é uma analogia para o mesmo.
As visitas de Grace Kelly são tentativas para ver se James Stewart arriba, se se levanta da cadeira e se põe de pé, mas pelos vistos não, ele prefere ser uma espécie de “voyeur”, e ficar antes a olhar pela janela.


Dito isto, não há como não nos vergarmos ao poder das janelas, pois elas desviam-nos dos livros que líamos, permitem que a luz entre pela casa adentro, despertam a imaginação, desfazem ideias surrealistas e, por fim, até conseguem, que se ignore a bela Grace Kelly.

Posto isto, que conclusão tirar disto? Nenhuma. Mas ainda assim, aqui fica um quadro de Caspar David Friedrich.

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