Caminhamos para o fim desta nossa série On the Road pela América, sendo que, nesta décima primeira etapa ficamos em casa, ou melhor dizendo, em casas de campo, para uma temporada, para férias ou fins de semana. A proposta de hoje é portanto fazermos um tour pela América doméstica, longe das cidades.
De algum modo na América, há uma espécie de compulsão para se ser “wild and free”, e por assim ser, há muito quem goste de viver afastado do mundo, ou seja, à solta entre os prados e as árvores, os rios, os lagos e as rochas.
Um desses casos é o de Henry David Thoreau (1817-1862), que foi uma das primeiras grandes personalidades literárias norte-americanas. Escreveu poesia, filosofia e história, sendo o título do seu livro mais conhecido “Walden”, obra que é um autêntico clássico.
“Walden” é uma auto-biografia na qual o autor narra a sua história e, mais concretamente, a parte dela em que se retirou para os bosques, junto do Lago Walden, para aí viver isolado da sociedade.
Construiu uma casa com as suas próprias mãos, bem como os seus móveis e, durante uns tempos, viveu em intenso contacto com a natureza que, segundo o que ele próprio garante, lhe dava tudo aquilo de que necessitava.
“I went to the woods because I wished to live deliberately, to front only the essential facts of life”, é isso o que nos diz Thoreau. Mas não se pense que o homem se tornou um bicho do mato, nada disso. Como era muito conhecido, havia sempre quem o quisesse vir visitar, assim como ele ia igualmente de quando em vez de visita a casa dos amigos.
E feita a apresentação de Thoreau, aqui fica uma fotografia da sua casa, que hoje em dia é um monumento histórico na América. “I lived alone, in the woods, a mile from any neighbor…. My house was on the side of a hill, immediately on the edge of the larger woods, in the midst of a young forest of pitch pines…”
Thoreau aguentou-se uma temporada nos bosques, depois foi viver para a casa do seu amigo e mentor, o também escritor Ralph Waldo Emerson, que à época já era uma celebridade literária na nação inteira.
A certa altura Emerson dava mais de oitenta palestras por ano, percorrendo todo o território dos Estados Unidos. Entre 1847 e 1848 Emerson viajou por Inglaterra, pela Escócia e pela Irlanda, visitando também Paris.
Como se calcula, a Emerson, dinheiro não lhe faltava, pois que os seus livros eram verdadeiros “best-sellers”, consequentemente, habitava uma bela mansão, sítio no qual Henri David Thoreau se instalou.
Com efeito, isto de viver “wild and free” em plenos bosques é muito giro, mas habitar no lar de um amigo rico traz um outro aconchego e sossego, permitindo assim que se reflita mais profundamente sobre a natureza, os seus segredos e mistérios.
Abaixo um postal ilustrado da casa de Ralph Waldo Emerson na pequena vila rural de Concord, no Massachusetts.
A mais famosa de todas as casas norte-americanas também se situa no meio dos bosques, é a Fallingwater, que foi projetada por Frank Lloyd Wright em 1935. Há muito quem considere, que é a melhor obra de arquitetónica de sempre da América, sendo que provavelmente terão razão.
Situa-se na Pensilvânia rural, a uma hora e tal da cidade mais próxima, que é Pittsburgh. A sua característica fundamental é o facto de ter sido erguida sobre uma pequena cascata, e de se servir dos elementos ali presentes, como por exemplo as rochas, a vegetação e a água, como suas partes constituintes.
Contemplando a Fallingwater House, dir-se-ia que não há maneira de distinguir claramente entre o que pertence à natureza e o que faz parte da casa.
E.J. Kaufmann era um homem de negócios de Pittsburgh e queria uma casa de família para passar as férias. Queria também que a casa servisse para que ele pudesse apreciar e contemplar a natureza circundante, mas quando Frank Lloyd Wright lhe apresentou os esquissos ficou espantado e desconfiado, tendo transmitindo ao arquiteto as suas dúvidas sobre a razoabilidade do projeto: “Pensei que colocaria a casa junto da cascata e não propriamente em cima dela”.
A tal comentário do futuro proprietário da casa, Frank Lloyd Wright respondeu com toda a calma o seguinte: “E.J., eu quero que vivam com a cascata e não que apenas olhem para ela, quero que ela se torne uma parte integrante das vossas vidas.”
Uma vez a casa construída, verificou-se que a cascata não era visível do seu interior, mas que, por outro lado, o intenso rumor da água a cair se ouvia por todos os seus cantos e recantos. Tal situação não foi um erro ou um acaso, pois o arquiteto teve a intenção de que a casa tivesse essa poética sonoridade por todo o lado, inclusive nos quartos mais recolhidos.
O dono, o já referido E.J. Kaufmann, é que não ficou particularmente impressionado com a sonora poesia doméstica e uns anos mais tarde, farto do som, doou a casa, tendo esta passado para a propriedade do estado e depois sido classificada como património nacional. Foi aberta ao público e desde então todos os anos recebe centenas de milhares de visitantes.
Outra das mais prestigiadas casas norte-americanas é a Edith Farnsworth House. A casa situa-se a cerca de noventa e seis quilómetros, a sudoeste de Chicago, ou seja, em plena paisagem campestre.
Edith Farnsworth nasceu em 1903 numa família de altíssimo status socio-económico. Teve uma educação privilegiada, estudou literatura, composição musical e zoologia na Universidade de Chicago e violino no Conservatório Americano de Música. Posteriormente entrou na Northwestern Medical School, especializando-se em nefrologia (rins), tendo tido uma carreira particularmente brilhante como médica.
Dito isto, tendo chegado aos quarenta anos de idade, Edith Farnsworth quis ter uma casa de campo para passar descansadamente os seus fins de semana. Para concretizar esse desejo não olhou a meios e decidiu contratar o melhor arquiteto à época, o mítico Ludwig Mies van der Rohe, que era alemão.
Para além de ser autor de importantes edifícios na América e na Alemanha, Ludwig Mies van der Rohe foi também autor de uma expressão que, logo que ele a proferiu, se tornou imediatamente icónica: “Less is More”.
Sabendo perfeitamente quem era Ludwig Mies van der Rohe e quais as suas teorias, talvez tivesse sido mais avisado da parte de Edith Farnsworth contratar um outro arquiteto para desenhar uma casa de fim de semana no campo. Só que não, ela queria o melhor que havia, o mais prestigiado, original e inovador, e foi precisamente isso que obteve.
A casa que Ludwig Mies van der Rohe desenhou era lindíssima, toda ela pura geometria e total harmonia com a natureza circundante, só tinha um pequeno problema, era quase toda feita de vidro, o que fazia com que a vizinhança mais próxima e curiosos de passagem, fossem até lá para espreitar e ver como é que a Doutora Edith Farnsworth passava os seus fins de semana.
O caso é que a casa deu brado e chegou aos jornais. A Doutora Edith Farnsworth sentiu-se enganada pois havia constantes mirones em redor, tentou que as autoridades locais estabelecem restrições e proibissem o acesso aos terrenos em volta, mas isso de pouco lhe valeu, pois as pessoas apareciam na mesma. Para acrescentar algum picante ao escândalo, surgiram rumores de que era amante do arquiteto, o mítico Ludwig Mies van der Rohe. Esse facto nunca se comprovou, coisa que sucede com uma grande parte dos factos, no entanto fez-lhe mossa.
Em síntese, os sonhos de Edith Farnsworth de possuir uma casa de campo para passar os fins de semana em perfeita harmonia com a natureza transformaram-se numa espécie de pesadelo, porém, Mies ficou todo contente, pois erguer uma casa transparente era um sonho arquitetónico que ele há muito ambicionava concretizar.
No fim Edith Farnsworth vendeu o imóvel e foi viver para uma Villa em Itália. Hoje em dia a casa pertence ao estado, tornou-se parte do património e é um sítio aberto ao público que a queira visitar. Diz que é muito bonita, que vale mesmo a pena a visita.
Em 1949 King Vidor dirigiu um filme sobre um arquiteto que era todo ele “wild and free”. A película baseava-se num romance cujo título em português é “Vontade Indómita”. Howard Roark era o nome do personagem principal, que dava mais importância aos seus ideais arquitetónicos do que a compromissos amorosos, sociais, económicos e profissionais.
Howard Roark (Gary Cooper) é um visionário, tem uma integridade artística da qual não abdica. Não vende a alma ao diabo, por mais que lhe façam a vida num inferno e o tentem convencer que se insistir em ser fiel aos seus princípios artísticos vai acabar a passar fome.
A sua vontade está sempre em conflito com uma sociedade composta por uma esmagadora maioria de almas mortas, gente que se rendeu ao conformismo e à formatação, com um código moral e social no qual prevalece o comodismo e a apatia, porém, Roark não se deixa domesticar.
Aqui fica uma cena do filme em que uns ricos clientes o aceitam como arquiteto, mas com a condição de que ele faça algumas alterações ao seu projeto.
Roark sabe que é uma oportunidade para relançar a sua carreira, pois há algum tempo que não tem qualquer trabalho. Será que Roark cede aos desejos da clientela? Ou manter-se-á “wild and free”? É ver:
Para terminarmos aqui ficam dois vídeos com visitas às casas de dois arquitetos, Frank Lloyd Wright e Mies van Der Rohe, que não admitiram compromissos e conceberam casas para os seus clientes em plena natureza como entenderam.
A ideia que os seus clientes tinham do que é viver numa casa em harmonia com a natureza, não era bem a mesma que a dos arquitetos, e foi por isso que houve conflitos. Já se sabe, a natureza é sempre um problema, pois nunca se sabe bem o que ela é.
A Fallingwater House:
A Edith Farnsworth House:
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