Continuamos a viagem On the Road pela América, sendo esta a nossa décima segunda e penúltima etapa. Estamos mesmo a chegar ao fim da estrada, ou seja, “the end is near”. Mas antes disso, há poemas pelo caminho que nos resta, e o de hoje vai ser longo, leva-nos por desvios e para os sítios longínquos onde mora a poesia.
Nestas nossas viagens vimos que a América é muitas coisas diferentes ao mesmo tempo, algumas delas até opostas. Dizer como frequentemente se diz, os americanos são assim, cozido, frito ou assado, é dizer pouco, é não ver o todo. O certo é que os americanos são sempre uma coisa e também o seu contrário e ainda muitas outras coisas mais, e é isso que os caracteriza e neles nos fascina.
Na verdade, a América fascina qualquer um, até os mais improváveis. Antes de irmos à poesia, vamos fazer um desvio no caminho para provarmos o nosso ponto.
Na década de 50 do século XX, à cidade de Nápoles em Itália, todos os dias chegavam turistas americanos, os seus costumes, atitudes e modos eram coisa que os napolitanos nunca tinham visto e era improvável que por eles se deixassem fascinar.
Nápoles, tanto à época como agora, é a mais típica, tradicional, pobre e fechada das grandes cidades italianas, sendo que, os seus habitantes não apreciam grandemente modernidades e gente vinda de fora, pois são muito ciosos do modo como vivem.
“La mamma”, “La pasta”, “La pizza”, “La Santa Madonna” são os pilares de sempre da vida napolitana, cidade onde as gentes são muito pouco dadas a novidades. No entanto, quando em meados do século passado os americanos chegaram a Nápoles, por mais improvável que fosse, todos se deixaram fascinar, sobretudo os mais jovens.
Foi nesse contexto que um cançonetista de então, Renato Carosone, compôs uma canção que se viria a tornar um imenso êxito, “Tu Vuo Fà L'Americano”. A canção cantada no ancestral dialeto napolitano e não em língua italiana, diz-nos que a rapaziada dessa época queria “fa' l'americano” e “vivere alla moda”, ou seja, fazer como os americanos e andar na moda.
Fala-nos também doutros costumes trazidos para Nápoles pelos americanos, como por exemplo, “bevi whisky and soda” e “abball ‘o' rock'n'roll” e “gioch' a baseball” (bailar o rock e jogar basebol).
Curiosamente há um verso de “Tu Vuo Fà L'Americano” que nos diz imediatamente que fazerem-se de americanos, era um investimento que pesava no orçamento familiar. O verso é este “Ma 'e sorde p' è camel / Chi te li dà /La borsetta di mammà (Mas dinheiro para cigarros Camel / Quem te os dá / A bolsa da mamã)”.
Aqui fica então o divertido Renato Carosone e a sua banda com “Tu Vuo Fà L'Americano”:
Concluído o desvio napolitano, sigamos então para a poesia norte-americana. Como anunciámos no título, vamos percorrer dois caminhos distintos, um leva-nos a uma poeta do ínfimo, outro leva-nos a um poeta do excesso.
Comecemos pelo ínfimo com Emily Dickinson. A poeta nasceu em 1830 numa família abastada, na pequena cidade de Amherst e desapareceu em 1886. Nesse entretanto viveu a vida inteira sossegada e isolada do mundo, sempre na mesma casa, a paterna.
Só convivia com a sua família e os locais consideravam-na um tanto ou quanto excêntrica, isto por demonstrar sempre relutância em receber ou fazer visitas. Emily Dickinson nunca se casou, e as únicas amizades que teve foram exclusivamente por correspondência.
Em vida só publicou dez, dos cerca de mil e oitocentos poemas que escreveu. E ainda assim, esses poemas foram publicados em jornais locais ou de pouca circulação. Em síntese, a sua obra só começou a ser conhecida muitas décadas após a sua morte.
Dir-se-ia que Emily Dickinson era infeliz, só não o tendo sido completamente porque viveu a quase totalidade da sua vida em lugares que se situavam na sua própria mente. Não se estranha portanto, que muitos dos seus poemas tivessem como tema o cérebro.
O cérebro era para ela o universo, um sítio maior que o céu e mais profundo que o mar. Colocados lado a lado, o cérebro e o céu, diz ela que o primeiro inclui o segundo.
Já se a comparação for entre o cérebro e o mar, o primeiro absorve o segundo tal e qual como uma esponja o faz. O cérebro tem o mesmo peso que Deus e, a haver diferença, se porventura a houver, é de tão pouca monta como a existente entre uma sílaba e um som.
The Brain is wider than the sky,
For, put them side by side,
The one the other will include
With ease, and you beside.
The brain is deeper than the sea,
For, hold them, blue to blue,
The one the other will absorb,
As sponges, buckets do.
The brain is just the weight of God,
For, lift them, pound for pound,
And they will differ, if they do,
As syllable from sound.
Para o mundo Emily Dickinson não era ninguém, era uma coisa ínfima, mas na verdade essa parece ter sido uma escolha sua, ainda que ditada pelas circunstâncias. Por alguma razão que se desconhece, ou não fosse ela tão reservada, a poeta preferiu viver como uma reclusa.
Ao que se sabe era uma pessoa simpática e relativamente agradável, contudo, por um qualquer motivo que ignoramos, optou por viver retirada, quase como se não existisse, como se fosse apenas ninguém.
Num dos seus poemas diz-nos que é ninguém e encontra um outro ninguém com o qual forma um par. Avisa esse outro ninguém do quão desagradável seria ser-se alguém. Para ela, o simples facto de nos apresentarmos e dizermos o nosso nome e dessa forma sermos alguém para os outros, já é algo que obriga a demasiada exposição pública, sendo também um procedimento perfeitamente inútil.
Por analogia, compara o dizermos o nosso nome, apresentarmo-nos e sermos alguém para os outros, a um deselegante sapo que continuamente coaxa. Como se ao coaxar, o sapo se estivesse a apresentar. O sapo diz insistentemente o seu nome durante o mês de junho inteiro, mas di-lo a um mero charco de lama. Subentende-se que o charco de lama representa no poema todos os que são alguém a quem nós nos apresentamos e dizemos o nosso nome.
I’m Nobody! Who are you?
Are you – Nobody – too?
Then there’s a pair of us!
Don't tell! they'd advertise – you know!
How dreary – to be – Somebody!
How public – like a Frog –
To tell one’s name – the livelong June –
To an admiring Bog!
A imagem acima é da fotógrafa norte-americana Francesca Woodman (1958-1981), cuja vida foi curta. Fez imensos auto-retratos, contudo, em praticamente todos eles, ela como que desaparece, tornando-se evanescente, assemelhando-se a uma nuvem.
As obras de Francesca Woodman e Emily Dickinson têm óbvias afinidades entre si e também com esses seres etéreos e quase inexistentes: as nuvens. A poeta dedicou inúmeros poemas às nuvens que passam no céu, compreende-se que nelas e no firmamento se revisse, pois tal como ela, também as nuvens e o céu são seres quase imateriais, sem consistência nem solidez, dir-se-iam irreais.
Um dos mais conhecidos poemas de Emily Dickinson intitula-se “There is another sky”. Nele ela usa o céu como o lugar metafórico onde encontra a felicidade e se liberta da sua vida diária.
O poema alude a uma realidade alternativa à chã e quieta em que a poeta vivia o seu dia a dia. Na poesia “There is another sky”, o céu aparece-nos como um consolo, um jardim sereno no qual existe um outro brilho do sol, e em que nunca um gelo se deteve.
Aqui fica o poema:
Mas não era tão-somente nas nuvens e no céu que Emily Dickinson vislumbrava a possibilidade de viajar para outros lugares que ficassem longe do seu presente e da casa onde diariamente vivia, situada na pequena, tranquila e monótona localidade de Amherst.
No poema abaixo percebe-se que ela entrevê no mar outros mares e ainda outros e mais outros. Entrevê todos os mares por visitar, os que lhe falam de futuro e lhe dizem tudo aquilo que é possível e as imensas possibilidades que há no que está à beira de vir a ser (the Verge of Seas to be):
As if the Sea should part
And show a further Sea —
And that — a further — and the Three
But a presumption be —
Of Periods of Seas —
Unvisited of Shores —
Themselves the Verge of Seas to be —
Eternity — is Those —
Acima temos uma imagem de céu e mar do pintor norte-americano Thomas Cole (1801-1848). Só de olharmos vemos logo que saímos do caminho das coisas ínfimas, íntimas e etéreas próprias da poesia de Emily Dickinson, e tomámos um caminho no qual encontraremos céus tempestuosos e mares atormentados.
Vamos agora concentrarmo-nos num poeta de excessos, Charles Bukowski (1920-1994). Basta vermos uma fotografia sua e imediatamente pressentimos intempéries, borrascas e vendavais.
O homem nasceu na Alemanha, mas isso não quer dizer nada pois aos três anos já estava na América e, para além disso, era americano de alma e coração, da cabeça aos pés. Não era patriota, pois estava sempre pronto para dizer o pior dos bons USA, ainda assim, e como disse um dia Jean-Paul Sartre, é o melhor e o mais americano dos poetas americanos. Aqui fica um seu poema para abrir o apetite:
Great writers are indecent people
they live unfairly
saving the best part for paper.
good human beings save the world
so that bastards like me can keep creating art,
become immortal.
if you read this after I am dead
it means I made it.
Quando era adolescente surgiram-lhe inflamações no rosto e em toda a parte superior do corpo, parecia um monstro. Submeteu-se a tratamentos médicos durante bastante tempo, sendo que na escola a situação não era das melhores. Tinha poucos amigos e era sempre o penúltimo a ser escolhido para as equipas nos jogos de beisebol.
Já na fase final da adolescência, em consequência do tratamento médico teve mesmo de abandonar temporariamente a escola, regressando apenas no ano seguinte. Nesse entretanto, descobriu as duas coisas que o ajudaram a tornar a sua vida suportável e que o acompanhariam até ao fim: o álcool e a escrita.
Bebeu sempre desalmadamente, tal e qual como escreveu: “That’s the problem with drinking, I thought, as I poured myself a drink. If something bad happens you drink in an attempt to forget; if something good happens you drink in order to celebrate; and if nothing happens you drink to make something happen.”
Apesar do que se passou durante a sua adolescência, Charles Bukowski conseguiu ter uma relação saudável com a solidão. Encontrou modos de viver só, sem necessitar de ninguém, a saber, a bebida e a escrita. Porventura quereria ser como os outros, ou seja, ter amigos, companheiros e amores, não o sendo, paciência. Terá sido melhor para ele o caminho que escolheu, do que andar uma vida inteira a lamentar-se.
Mais tarde, quando já adulto e conhecido, o que não lhe faltaram na vida foram amigos, companheiros, amores e, inclusivamente, um extenso rol de admiradores. Em conclusão, ultrapassou a sua adolescência. Bebia muito, isso é certo, mas também escreveu e viveu imenso. Feitas as contas, se calhar foi melhor assim.
A verdade é que para alguns, há feridas que os outros lhes provocam que ficam para sempre e estão permanentemente em risco de se reabrirem, pois nunca cicatrizam completamente. Para esses, a solidão é um martírio, é como se o não reavivar das suas feridas estivesse continuamente dependente de um outro, dos outros, de alguém, que ao mais ténue sinal de dor, viesse urgentemente ser um bálsamo que acalma.
É a esses que precisam sempre e com urgência de alguém, que Bukowsky deixa um aviso num seu poema intitulado “Oh, Yes”:
there are worse things than
being alone
but it often takes decades
to realize this
and most often
when you do
it’s too late
and there’s nothing worse
than
too late.
Na realidade Charles Bukowski fez diversos avisos, a sua poesia podia perfeitamente ser usada como uma forma de terapia, tantos são os conselhos que nos dá para o nosso dia a dia:
Nobody can save you but
yourself
and you’re worth saving.
it’s a war not easily won
but if anything is worth winning then
this is it.
think about it.
think about saving your self.
Ao contrário do que possa parecer, há uma vantagem futura em ser-se um adolescente solitário, pois conseguindo-se ultrapassar e cicatrizar as feridas que tal eventualmente possa causar, a partir daí sabe-se dar o devido valor aos outros, ou seja, percebe-se que não há assim tanta gente inteligente e que a confiança que muitos parecem ostentar, mais não é que uma máscara. Citemos mais uma vez Bukowsky: “The problem with the world is that the intelligent people are full of doubts, while the stupid ones are full of confidence."
Por outro lado, percebemos também que no fundo, o que interessa é não dependermos dos outros, que é essa a liberdade última, a que nos traz felicidade e alegria: “The free soul is rare, but you know it when you see it - basically because you feel good, very good, when you are near or with them."
E pronto, com isto terminamos este nosso décimo segundo passeio On the Road por uma poeta ínfima e por um poeta de excessos, ambos profundos americanos.
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