Há por este dias uma vontade imensa de proibir o uso de smartphones e outros dispositivos electrónicos nas escolas. Nós não temos dúvidas nenhumas, de que o uso excessivo de ecrãs não é uma prática minimamente saudável, temos sim muitas dúvidas, que não certezas, de que a proibição seja o melhor caminho a seguir.
Podem chamar-nos utópicos, ingénuos ou até líricos, mas cremos que, se enquanto forem crescendo, às crianças e jovens lhes for indo sendo mostrado algo de melhor e de mais interessante para verem, do que aquilo que veem nos seus ecrãs, mais tarde na vida jamais ficarão dependentes de smartphones, de tablets e de outros dispositivos eletrónicos.
E o que há de melhor e mais interessante para se ver, que não esteja nos ecrãs? A resposta certa é tudo. Mais concretamente, os mistérios, os enigmas e os segredos que há em tudo o que existe e se pode ver no mundo.
Tudo contém em si algo de interessante a revelar-nos, basta sabermos deter o olhar para logo o começarmos a ver numa simples estrada, em alguém que passa, num mero prédio, num rosto que nos observa, na luz da manhã, num cão que vagueia, numa criança que brinca, numa porta fechada, numa janela aberta ou num qualquer lugar de uma cidade.
O problema de se estar sempre a olhar para um ecrã, é sobretudo o da velocidade com que as imagens passam diante do olhar, sem que quase ninguém se detenha por mais de que uns quantos segundos a observá-las.
É impossível que alguém consiga ter tempo para perceber qualquer segredo, enigma ou mistério no contínuo desfilar de imagens que os ecrãs nos apresentam. Coisas e seres são nos ecrãs vistas de um modo veloz e superficial, e quase nunca com uma indispensável lentidão e um necessário vagar.
É pelo voltar a ver-se uma e outra vez, pelo olhar lento e demorado e pela contínua revisitação, que coisas e seres nos revelam a sua profundidade e o que são. Abdicar desse olhar repetido, vagaroso e prolongado, é abdicar de compreender o quão profundo é o mundo, e não querer saber da essência e sentido do que nele existe.
Nada se revela e se nos dá a ver em meros segundos, as coisas e seres, tal como as imagens, necessitam de tempo para nos mostrarem as suas sombras, o mistério das suas formas, os enigmas que contêm e os segredos que nos podem sussurrar.
Dito isto, a nossa utopia educacional, é a de que talvez se possa ensinar crianças e jovens a deter o olhar e a ver que, em boa verdade, se assim o fizerem, tudo é muito melhor e mais interessante, do que o que se passa nos ecrãs.
Para despertar tal interesse pelas coisas e seres que há no mundo, talvez não seja preciso muito, provavelmente basta ir-se a uma esplanada e observar, ou então até à janela e mirar, ou ainda contemplar o mar ou, quiçá, espreitar pelo buraco de uma fechadura.
Há poucas coisas mais fascinantes na vida do que olhar e ver atentamente e depois, mais tarde, ou logo a seguir, voltar novamente a ver e a olhar. Se tivermos tal disponibilidade, de cada vez que revemos uma mesma coisa ou ser, descobriremos sempre nessa coisa ou ser, em cada repetido olhar, surpresas, segredos, mistérios e grandes novidades antes nunca vistas, ou seja, veremos algo de mais interessante e melhor do que os ecrãs nos mostram.
Quem não gosta de estar uma e outra vez na esplanada de um qualquer café e, sem pressa, ver as gentes que continuamente passam?
São muitas vezes as mesmas gentes, as que passam, no entanto, jamais são mesmo as mesmas. De cada vez que passam, há sempre nelas algo de inédito, de novo e em tempo algum observado. Para o vislumbrarmos, é bastante para tal que saibamos pausar o olhar.
Quem não gosta de estar à janela, a olhar com tempo, quem chega, quem parte, donde vem e para onde vai? Não raras vezes, quem vem é também quem vai, e, quem veio e vai, já veio e foi em muitas outras anteriores ocasiões. Mas dito isto, o facto é que cada nova ida ou vinda tem qualquer coisa de original e único. Para o vermos, chega que nos entreguemos ao que vemos.
Quem não gosta de olhar descansadamente para as ondas do mar no seu constante e repetido ir e vir?
O mar é o mesmo de sempre, as ondas eternamente vão e vêm e o horizonte permanece perpetuamente no mesmo distante lugar. No entanto, nada é verdadeiramente idêntico de cada vez que voltamos a olhar o mar, há sempre um qualquer acontecimento, uma aurora, um ocaso ou simplesmente um surpreendente feixe de luz.
E, por fim, quem quiçá não gosta, mesmo que não o confesse, de espreitar uma e outra vez pelo buraco de uma fechadura, para com vagar ver e rever que segredos existem por revelar do outro lado de uma porta fechada?
O certo é que, em todos esses momentos, ou seja, na esplanada, à janela, diante do mar ou espreitando por uma porta fechada, há sempre algo de novo para se ver, mesmo que o que se venha a ver, já tenha sido visto mil vezes antes.
Em cada coisa ou ser, há infinitudes que se revelam se porventura se revelarem, apenas e quando as vemos e revemos. Ao determos repetidamente o olhar, espreitamos, temos tempo e disponibilidade para escutar os mil enigmas e mistérios que as coisas e os seres nos querem dizer ou segredar.
Durante séculos e séculos, os olhares sabiam deter-se, ver, rever e voltar a ver. Sabia-se que cada renovado olhar prometia uma qualquer revelação, algo de novo, de nunca visto, um segredo.
Pense-se por exemplo, em Claude Monet, que pintou a fronte da Catedral de Ruão em múltiplas ocasiões e que, em cada uma delas, viu algo de completamente diferente.
Claude Monet não é caso único, e nem sequer raro, pois muitos foram os artistas ao longo da história que repetiram uma e outra vez o mesmo tema, como se através do ver e rever estivessem a tentar desvendar um mistério, a escutar um segredo ou a resolver um enigma.
Um dos casos mais conhecidos é do Paul Cézanne, que pintou maçãs dezenas de vezes no decorrer da sua vida, e que também pintou a Montanha de Santa Vitória outras tantas vezes.
Olhar, ver e rever e voltar a olhar para as coisas e seres, para além de fazer com que as descubramos, faz também com que nos descubramos a nós próprios.
Na realidade, descobrirmos e vermos o que há em nós, olharmos para a multiplicidade que somos, é também e igualmente melhor e mais interessante do que passarmos a vida pregados aos ecrãs.
Pensemos em Fernando Pessoa, que em si tinha múltiplos heterónimos, sendo que cada um deles via no mundo, e em si, uma poesia distinta da do outro. Vejamos o que poeta diz, acerca de si mesmo, nas suas páginas íntimas:
“Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.”
Em síntese, havendo tanto para ver em tudo e ainda para mais dentro de cada um de nós, se crianças e jovens (e porque não adultos) estiverem atentos ao que se passa em seu redor e no seu interior, certamente que largarão imediatamente os seus smatphones e demais dispositivos eletrónicos. É uma utopia? É uma ingenuidade? É um lirismo? Que seja.
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