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São Martinho não é só castanhas e vinho

 


Calcula-se que São Martinho nasceu no ano de 316, mas não se sabe bem. O certo é que veio à vida na atual província húngara da Pannonia. Serviu no exército do império romano, tendo sido colocado na então chamada Gália, que é hoje França.
No ano de 361 deixou o exército e optou pela vida religiosa, sendo que, dez anos depois, em 371, foi nomeado bispo de Caesarodunum, cidade que à época integrava o império romano, e que agora se chama Tours. Faleceu em 397.

Abaixo uma foto do túmulo de São Martinho, que se situa na Basílica Saint-Martin em Tours, França.


Como todos sabemos, o episódio mais conhecido da vida de São Martinho é aquele em que quando ele ainda era soldado, usou a espada para cortar o seu manto em dois, dando metade a um mendigo vestido apenas com trapos, para que este se protegesse do frio.

Na noite desse dia, Martinho sonhou com Jesus vestido com a metade do manto que ele havia doado ao mendigo, tendo ouvido Jesus dizer aos anjos que o acompanhavam: “Foi Martinho, que ainda é um iniciado, que me vestiu com este manto”.

Na cidade italiana de Assis, existe uma capela dedicada a São Martinho, na qual está representado o sonho do santo. O fresco foi pintado por Simone Martini entre 1320 e 1325.


A essência da lenda de São Martinho é transmitir-nos uma mensagem de fraternidade, ou seja, que independentemente da posição que ocupemos no mundo, todos somos irmãos.

Todos partilhamos a mesma sina, somos seres precários e transitórios, nada havendo na nossa vida de absolutamente firme e sólido. Num dado momento podemos ser uns respeitados e prestigiados soldados pertencentes ao poderoso exército romano, mas quem nos garante, que num qualquer futuro aziago, não caiamos em desgraça e não venhamos a ser mendigos? E quem nos garante também, que aquele que agora mendiga, num tempo por vir, não será então alguém notável, reputado e ilustre?

Ninguém nos garante nem uma coisa nem outra, por mais que porfiemos, a vida é sempre incerta e essa incerteza é um manto que como irmãos todos partilhamos e sob o qual estamos, sejamos ricos, soldados, santos ou mendigos.

Numa pintura de El Grego de 1599 intitulada “São Martinho e o mendigo”, as pernas, tantas as humanas do mendigo como as equinas, estão alinhadas na parte inferior esquerda do quadro e sugerem-nos ossos num equilíbrio instável, tendões presos por um fio e contornos ondulantes.
Significa isto, que quer as pernas do cavalo, quer as do mendigo, pouco têm de concreto e sólido. Nada aqui é firme, pois assim El Greco o quis, para que se vislumbrasse na sua obra que tudo é mutável, transitório e incerto.

Os contornos ondulantes dos membros inferiores ecoam no braço nu e no peito ossudo do mendigo, que parece afligido por uma luz indeterminada e bruxuleante. Por todo o lado no quadro há inquietas sombras. Nada parece consolidado, as formas ecoam e desaparecem, deslizando para longe de si mesmas.

Também as nuvens são inconstantes e, até mesmo a inabalável cidade de Toledo, que na realidade é toda ela feita de altas e firmes muralhas e torres, e de duras e sólidas pedras, nos aparece ao longe, no canto inferior direito do quadro, como indefinida e inconsistente.


El Grego dá-nos com as suas pinceladas a mesma lição da lenda de São Martinho, ou seja, que na vida nada é absolutamente certo. Assim sendo, não vale a pena o valoroso soldado armar-se em arrogante e importante, pois num dia distante pode ele vir a ser um mendigo. Vale a pena sim, como ele o fez, partilhar fraternalmente o seu manto.

Uma outra famosa pintura que retrata a lenda de São Martinho, é de Anthony van Dyck e foi efetuada em 1618. Nela vemos o jovem Martinho usando um elegante chapéu e montado o seu esplêndido cavalo branco.

Martinho cortou o manto vermelho com a espada, enquanto um mendigo sentado no chão puxa por a sua metade. Outro mendigo esfarrapado, à direita do primeiro, está ajoelhado enquanto se apoia em muletas.

Atrás destas duas figuras encontra-se um muro com hera e uma coluna. No canto superior esquerdo, atrás de São Martinho, está um homem idoso a cavalo, que olha a cena com espanto. Para lá dos dois cavaleiros, quase imperceptível, está a silhueta de um homem com capacete e, além dele, um lindo céu com nuvens, que nos transmite uma sensação de profundidade e de vastidão.


Nesta obra de Anthony van Dyck, São Martinho é retratado em toda a sua glória, de algum modo, a generosidade do santo não parece aqui ser tanta assim. Com efeito, ao olharmos para o quadro, ficamos até com a sensação que Martinho seria um homem muito rico e que, ao desfazer-se de metade da sua capa, estava a desfazer-se de quase nada.

No entanto, tanto quanto se sabe da lenda de São Martinho, no momento em que ele se desfez de metade do seu manto, para além da espada e da roupa que trazia vestida, esse era o único bem que ele possuía.

No século XVII o quadro de van Dyck pertenceu ao Barão van Boisschot, que o tinha na sua luxuosa residência de Bruxelas. Nessa mesma época, a família real britânica adquiriu uma segunda versão da pintura, também ela executada por van Dyck. Versão essa, que ainda hoje faz parte da coleção de arte da coroa britânica. A primeira versão está agora na igreja de São Martinho, na pequena cidade belga de Zaventem.

Tendo nós consciência de que o verdadeiro São Martinho não era um homem rico e poderoso, da forma como é representado na pintura de Anthony van Dyck, adivinhamos que o quadro do dito pintor, tivesse mais como objetivo representar os ricos e poderosos que destinam um resquício do muito que possuem à caridade, do que propriamente retratar a real generosidade do santo.

Poder-se-á dizer que na pintura de El Grego, São Martinho também é representado como rico e poderoso, contudo, a situação é completamente diferente. Como antes dissemos, na pintura de El Grego o poder e a riqueza, como tudo o resto que no quadro se vê, apresentam-se como transitórias e instáveis, mas já na pintura de van Dyck, com excepção dos lindos céus, tudo parecer ter uma carácter estável e permanente.

Enquanto na pintura de El Grego podemos muito bem imaginar o mendigo e São Martinho a trocarem de lugar, na pintura de van Dyck tudo parece definitivo. Os ricos e poderosos para sempre o serão, e os pobres e mendigos viverão perpetuamente nessa condição. Em certo sentido, o quadro de van Dyck contraria a essência fraternal da mensagem de São Martinho.

Hughie O'Donoghue é um pintor contemporâneo inglês, nascido em 1953 em Manchester. Em 2018, os responsáveis pela Catedral de São Paulo em Londres fizeram-lhe uma encomenda, um quadro para uma capela dedicada a São Martinho.


Hughie O’Donoghue retrata São Martinho dividindo a sua capa com um homem igual a tantos outros que podem ser vistos atualmente a qualquer momento nas ruas das nossas cidades. São Martinho vê a dignidade do homem, bem como a sua necessidade urgente de agasalho.

Hughie disse o seguinte no momento em que lhe foi comissionado o quadro: “O desafio, a meu ver, é fazer uma pintura de São Martinho e o mendigo que seja convincente e bonita, mas essencialmente relevante e credível aqui e agora’.’

E aqui e agora, damos por findo este texto dedicado a São Martinho.

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