Falávamos ontem neste blog sobre o que cantam os poetas de agora, os
atuais. É certo que os poetas de outros tempos, como por exemplo Camões,
cantavam as grandes gestas heróicas dos navegantes lusitanos, ou então vagas
tristezas como fazia Cesário Verde, que um dia escreveu os seguintes versos:
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal
melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo,
a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de
sofrer.
Todavia, os poetas de hoje cantam o mundo em que vivemos, no qual já não
há mares nunca dantes navegados nem feitos maiores do que prometia a força
humana, como se dizia na primeira estrofe do Lusíadas.
Na poesia atual até mesmo a melancolia e a tristeza já não são o que
eram. Intensos lamentos, colossais alegrias, profundas exaltações e pungentes
sofrimentos são coisas de antigamente. Na poesia de hoje em dia é tudo muito
mais prosaico, tal e qual é o nosso mundo atual.
O facto é que as musas às quais em tempos chamaram Tágides, há muito que
não inspiram nenhum poeta à beira Tejo, a escrever acerca de imoderadas paixões
e desmesurados ardores.
Um poeta
nosso contemporâneo nascido em 1969, de seu nome José Miguel Silva, dá-nos
conta na sua poesia, desse infeliz destino das outrora famosas musas, e mais
especificamente ainda, de já não haver quem lhes ligue, nem sequer para com
elas ir à praia. Aqui fica um seu poema exemplificativo disso mesmo, que se
intitula “Musa, vai chatear o Camões”:
Musa, sinceramente, vai chatear o
Camões.
Que podem os poetas, diz-me, contra
marketeers,
aguados humoristas e outros
promotores
da realidade? Eu sei que não
identificas real
com verdadeiro, nem sequer com
existente,
mas que valor pode ter uma metáfora
sem preço,
por brilhante que seja, neste mundo
de gritos,
de sementes apagadas em lameiros de
cimento?
Tu não vês o telejornal, Musa? Nunca
ouviste
falar da impermeabilização dos solos
na cidade
de Deus, do entupimento das artérias
cerebrais?
Pensas que estás no século XIX?
Mais, julgas-te
capaz de competir com traficantes de
desejos,
decibéis e abraços? És capaz de
fazer rir um
desempregado, de excitar um espírito
impotente?
Consegues marcar golos «geniais»
como o Ricardo
Quaresma, proteger do frio as
andorinhas,
transportar as crianças à escola? Se
achas que sim,
faz-te à onda do mercado, Musa, e
boa sorte.
Mas não contes comigo pra te levar à
praia.
Sabes perfeitamente que detesto
areia, sol
na testa e mariolas de calção. Vá,
não me maces.
Pela parte que me toca, ficamos por
aqui.
Como os
nossos leitores já terão percebido, a poesia não é mesmo o que era e, onde
havia os mais nobres sentimentos, grandes arrebatamentos de alma, amor, ciúme,
cinzas e lume, há neste nosso presente uma atitude mais relaxada, assim tipo “cool”.
Fernando
Pessoa, que viveu em tempos idos, sabia que todas as cartas de amor eram
ridículas. No entanto, ele sabia também que era assim que tinha de ser, ou
seja, que por definição, as mais altas ternuras e estimas só o são, se de algum
modo tiverem um tanto de ridículo.
Todas as
cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam
cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas
de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Na poesia
contemporânea não há lugar para um poeta se sentir ridículo. Com efeito, se
porventura o bardo se pôs a escrever para a sua amada, e esta por alguma razão não
reagiu como ele esperava aos seus versos, o lírico não tem que se sentir parvo
ou tolo, muito pelo contrário, desdenha imediatamente da poesia, e ainda mais
dos critérios estéticos da dita rapariga e, por extensão, de todas as restantes.
É isso mesmo que nos ensina este outro poema de José Miguel Silva:
Dizias que gostavas de poemas.
Escrevi-te, numa tarde, mais de
cinco.
São muito bonitos, disseste,
hei-de mostrá-los ao meu namorado.
Nunca mais confiei nos versos
nem no gosto feminil.
E depois,
como se tudo isto fosse pouco, os poetas de agora já não são seres sublimes,
que vivam nas nuvens, tendo apenas por preocupação as rimas e outras coisas
divinas. Não senhor, os poetas contemporâneos têm também de se preocupar com
coisas prosaicas e do dia-a-dia, como por exemplo, em lavar os dentes e arrumar
a louça. Sendo assim, não admira que à noitinha não tenham grandes
arrebatamentos poéticos, e cansados acabem por ir dormir, pois no dia seguinte,
tal como os outros, têm de se levantar cedo.
A esse
propósito aqui fica mais um poema pleno de actualidade de José Miguel Silva:
Não é fácil ser poeta a tempo
inteiro.
Eu, por exemplo, nem cinco minutos
por dia, pois levanto-me tarde e
primeiro
há que lavar os dentes, suportar os
incisivos
à face do espelho, pentear a cabeça
e depois,
a poeira que caminha, o massacre dos
culpados,
assistir de olhos frios à refrega
dos centauros.
E chegar à noite a casa para a prosa
do jantar,
o estrondo das notícias, a louça por
lavar.
Concluindo, só pelas duas da manhã
começo a despir o fato de macaco, a
deixar
as imagens correr, simulacro do
desastre.
Mas entretanto já é hora de dormir.
Mais um dia de estrume para roseira
nenhuma.
Dito tudo
isto, não é de admirar que os poetas atuais, e sobretudo os portugueses, o mais
que queiram não é cantar as gestas heróicas, grandes sentimentos e outras
coisas que os poetas de antigamente cantavam. Vá lá que cantem uma vitória de
uma equipa de futebol e já não está nada mal. Na verdade, esse triunfo no
pontapé na bola, provavelmente há de ser o momento mais arrebatador e entusiasmante
que terão durante a sua vida inteira. Mas isto só para alguns que o guardaram
numa cassete Beta ou VHS e o podem recordar sempre que lhes apetece. Os que não
o fizeram, nesta altura do campeonato, limitam-se a jogar para não descer de
divisão.
Aqui fica o
nosso último poema de hoje, do mesmo autor que os restantes, este chama-se “Bayern
de Munique X FC Porto 1 – 2”:
Aos dezoito anos vive-se já na antecâmara
do pesadelo, mas a vida reserva-nos ainda
o fulgor intempestivo dum embate
donde sairemos homens, estonteados
de suor e lama.
Sabíamos que não iria durar muito
a juventude - noventa e três minutos,
se não erro. Mas o trevo permanece
nas pastagens da memória: um irónico
toque de calcanhar, uma rápida investida
no coração do tempo, as mais loucas
diagonais contra o pior dos fatalismos,
o dos tímidos.
Como esquecer aquelas fintas à tristeza,
a viva fantasia dos relâmpagos abrindo
fundas brechas no espírito simétrico,
pesado, dos teutónicos, a negação
do fado. Que foi isto, perguntámos,
como pôde? Nenhum relógio mede
tamanha velocidade.
E as lágrimas deslizam, como vêem,
pelo poema abaixo, isso é sinal de que o futuro
já passou, já ruiu a balaustrada de onde víamos,
serenos, a corrida dos minutos, coroada
de possível. Que nos resta? Nada. Felizes
os que guardam, pelo menos, a cassete
Comentários
Enviar um comentário