“Ai Mouraria da velha Rua da Palma,
onde eu um dia deixei presa a minha alma”…ai pois é, toda a minha gente
inventa e publica na internet teorias da conspiração, só nós é que não. Mas
isso acaba agora, a bem dizer não somos menos que outros, vamos portanto
efabular a propósito do Benformoso.
Nos últimos
tempos, a Rua do Benformoso, bem como todo o bairro da Mouraria, tem feito
títulos de jornais, aberto os noticiários televisivos e dado azo as querelas político-partidárias.
Não é uma novidade, pois essa zona da cidade de Lisboa sempre foi muito falada,
e tem uma longuíssima tradição de má vida, de rixas e de dramas com gente de
faca na liga.
“Ai Mouraria do homem do meu
encanto, que me mentia mas que eu amava tanto. Amor que o vento como um lamento
levou consigo, mas que inda agora e a toda a hora trago comigo”, é assim um
verso de um célebre fado, no qual se canta o que para lá ia por esses sítios,
onde havia destinos marcados e amores vadios.
A Rua do
Benformoso vai do Largo do Intendente à Praça do Martim Moniz e é uma das
principais vias da Mouraria, contudo, a praça onde o bairro desagua, nem sempre
foi como é hoje. Veja-se na imagem abaixo, como era o local onde hoje se
encontra a Praça do Martim Moniz ainda há menos de um século, mais
concretamente, em 1947.
Passados uns
tempos da foto acima, todo o casario que há séculos ocupava aquela zona da
cidade foi arrasado, pois as autoridades da época quiseram aí erguer uma bela e
monumental praça. E assim, em muito pouco tempo, o que antes ali estava
desapareceu para sempre, ficando apenas a pequena capela de Nossa Senhora da
Saúde, a única coisa que restou de uma longa e buliçosa história.
Abaixo vemos
uma foto das demolições então levadas a efeito, onde podemos observar ao fundo
a capela de Nossa Senhora da Saúde, ao tempo em que ainda se situava bem no
centro do bairro da Mouraria, ao contrário do que sucede hoje, em que está
sozinha numa ponta da Praça do Martim Moniz e tem por companhia um desengraçado
centro comercial.
A zona da Mouraria sempre foi um incómodo para as pessoas
finas e para as autoridades oficiais ao longo dos tempos. Havia e há um antigo
e intenso desejo dessa gente de a arrasar. Como claro exemplo disso mesmo,
veja-se um excerto de um documento camarário do início do século XX, no qual o
uso do termo “infecto”, não deixa quaisquer dúvidas sobre o
tipo de sentimentos que tal sítio sempre despertou nas classes mais selectas:
“…o problema da Rua da Palma: o acesso à zona
baixa da cidade e acabar com o infecto bairro entre a rua Silva e Albuquerque
[antiga rua dos Canos] e a rua do Arco do Marquês de Alegrete.”
Abaixo uma pintura de Roque Gameiro
(1864-1935) na qual se retrata a antiga Rua do Benformoso.
No local onde actualmente se encontra a Praça do Martim Moniz, existiam
edifícios históricos como o barroco Palácio do Marquês de Alegrete, que foi
arrasado no verão de 1946, havia também a renascentista igreja do Socorro que
foi demolida em 1949, e existia ainda, o elegante Arco do Marquês de Alegrete
que desapareceu em 1961. Em resumo, mesmo sendo essa uma zona com imenso
património de interesse histórico-cultural, tal não foi impeditivo que tudo
fosse abaixo, pois a Mouraria nunca agradou às gentes de bom tom.
Um fadista, o Alfredo Marceneiro, no seu tempo cantava assim: “Há festa
na Mouraria/ É dia de procissão/ Da Senhora da Saúde/ E até a Rosa Maria/ Da
Rua do Capelão/ Parece que tem virtude…”
Parece mas não tem, pelo menos para as gentes de bem, uma vez que quem
vem da Mouraria sabe-se de onde vem. Em qualquer dos casos, aqui fica o
fadinho, cantado pelo Marceneiro:
A Mouraria é nossa, há quem hoje o diga, e até quem o grite. Mas nossa de
quem? Esta sim é a magna questão que agora se nos coloca. Nossa de quem nunca
por lá passou exepto nos últimos tempos para se manifestar? Ou então nossa, de
outros que também jamais por lá andaram e andam agora para se indignarem? Nossa
dos patriotas? Ou será nossa dos idiotas? Ou como distinguir uns dos outros?
Vamos lá ver uma coisa, nós que aqui vos escrevemos, conhecemos bem a
Mouraria e sabemos que poucos a costumavam frequentar, era só mais meninas e proxenetas,
e também gente da cultura, como por exemplo bêbados, guitarristas e fadistas.
Genericamente era isso, contudo, também havia gente decente que por lá vivia,
como por exemplo a Bia da Mouraria, que vendia flores e o Chico que era
vendedor como ela, ali para o Benformoso, só que, no caso dele, era de cautelas.
Aqui fica a bonita história de ambos:
Como já terão percebido, talvez a Mouraria seja nossa, mas nossa,
daqueles que lá tenham vivido ou ainda vivam, e não propriamente dos outros que
a reclamam. Um outro que nem sendo fadista, nem sabendo tocar guitarra, também
é um personagem típico dessas paragens é o famoso, mas hoje já esquecido,
Belarmino, que a bem dizer era boxista.
Fernando Lopes, um dia quis contar a história do boxista Belarmino, para
tal, em 1964, realizou um documentário relatando a vida do dito. O filme
tornou-se histórico, inaugurando aquilo a que se viria a chamar o Novo Cinema
Português.
Belarmino, na película, anda pelas ruas da Baixa Lisboeta ao deus-dará. Engraxa sapatos, vê as mulheres a passar e, de vez em quando, regressa aos ginásios para treinar. Foi um campeão, mas por alturas da data do filme, mais não era do que um “has been”. Ainda assim, vemo-lo a deambular pelos lugares da Mouraria onde cresceu e aprendeu a ser um grande boxeur. Hoje em dia já pouco é, mas entre o Martim Moniz e o Intendente, passando pelo Benformoso e a bem dizer por Lisboa inteira, toda a gente ainda sabe quem ele é. E mesmo que alguém não o saiba, na Mouraria sabem-no de certeza. Em síntese, esse sim, poderia dizer sem errar, a Mouraria é minha.
Aqui chegados, qual é a teoria da conspiração que anunciámos no nosso título de hoje? Pois bem, é o que contaremos no nosso próximo texto. É aguardar pelo "next round".
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