Ao dia de ontem falámos de histórias e de como algumas delas não são escritas e contadas pelo mero prazer de relatar aventuras e desventuras, de nos maravilhar com lendas e mitos, e de nos descrever viagens e paisagens fantásticas, mas sim para nos dar uma lição de moral.
Nós não gostamos de histórias cujo objetivo principal é o de nos transmitir uma qualquer lição e desse modo inculcar na nossa mente normas, regras, doutrinas e modos de viver. Gostamos sim de histórias cujas intenções sejam apenas surpreender-nos, fazer-nos pensar, emocionar-nos ou divertir-nos.
Há outros sítios, que não as histórias, para dar lições de moral, divulgar nobres prescrições, promover atitudes corretas, exaltar os bons sentimentos e fomentar valores sociais. As melhoras histórias são amorais ou imorais e não são contadas ou escritas para disseminar uma qualquer mensagem bondosa, altruísta, humanista, piedosa ou benevolente, mas sim para nos espantar, para nos fazer refletir, chorar e rir. As melhores são como os sonhos.
Abaixo, uma gravura de 1854, “A ponte dos sonhos” de Utagawa Toyokuni.
Vamos agora contar uma história. Era uma vez um professor muito rigoroso e cumpridor a dar a matéria. Nisto, aproxima-se dele um pedagogo e diz-lhe que os alunos aprendem melhor e mais rapidamente se a matéria lhes for lecionada de uma forma lúdica, e mais concretamente com histórias. O professor pergunta ao pedagogo, mas porquê com histórias. O pedagogo responde-lhe porque as histórias prendem mais a atenção dos alunos. O professor pergunta ao pedagogo, mas porquê prendem mais a atenção dos alunos. O pedagogo responde-lhe porque toda a gente se interessa por histórias. O professor pergunta ao pedagogo, mas porquê toda a gente se interessa por histórias. O pedagogo responde-lhe que as histórias são como um caminho, as narrativas são como um percurso, que uma vez iniciado todos querem saber onde finda. O professor pergunta ao pedagogo mas porquê todos querem saber onde finda. O pedagogo responde-lhe “irra que o homem é chato”, vira-lhe as costas e parte rumo ao seu destino.
Qual é a moral desta história? Nenhuma, cá está. A única coisa que se constata, é que há professores chatos e pedagogos que perdem a paciência. Todavia, caso o pedagogo tivesse tido mais pachorra, poderia ter respondido ao professor que o cérebro é um órgão narrativo.
Mas porquê narrativo, perguntaria o professor, se o cérebro serve para estudar, para aprender, para pensar, para decorar, para analisar, para calcular, para raciocinar e outras coisas mais. Ao que o pedagogo responderia, certo, o cérebro serve para tudo isso, contudo, quando fica entregue a si próprio, enquanto dormimos, o que faz o cérebro? Põe-se a sonhar, ou seja, a inventar histórias, o mesmo é dizer, narrativas.
Abaixo uma caricatura de 1796, cujo autor é James Gillray. O seu título é o seguinte: “O cupido holandês dormindo, fatigado após andar na jardinagem”. O personagem representado como cupido é o Príncipe de Orange e monarca da Holanda, Guilherme V.
A verdade é que quando não estamos a usar o cérebro e o deixamos repousar em paz, imediatamente ele começa a criar narrativas nas quais sucedem os mais bizarros factos e aparecem os mais exóticos personagens. Mesmo gentes e lugares que nos são familiares surgem nas histórias inventadas pelos nossos cérebros como extravagantes, estrambólicos e esdrúxulos.
A conclusão é simples, o cérebro estuda, aprende, analisa, raciocina e calcula, porém, o que ele gosta mesmo de fazer é de sonhar, ou seja, de criar narrativas. Aqui chegados, convém também referir que as histórias inventadas pelo cérebro enquanto dormimos são completamente amorais e não raras vezes mesmo imorais.
Quem em algum momento já não sonhou com algo, que uma vez acordado, tem até vergonha ou mesmo horror de se lembrar de tal coisa? Todos claro, não há quem em algum dia não tenha sonhado com as mais excêntricas imoralidades.
Na verdade, por mais esquisitos que sejam alguns dos nossos sonhos, o cérebro gosta de se entreter com essas histórias. Com efeito, enquanto dormimos, o cérebro podia aproveitar o tempo para também descansar ou para fazer outras coisas, como por exemplo arrumar a casa e organizar os pensamentos daqueles que andam desorientados. Podia até aprimorar-se e dedicar-se a tornar inteligentes aqueles que não o são. Podia também descobrir novas fórmulas matemáticas, medicamentos e curas para doenças, em síntese, podia fazer tanta coisa de útil, mas não, põe-se a inventar histórias.
O que nós podemos dizer é que as capacidades cerebrais dos alunos, assim como as dos pedagogos e dos professores, já para não falar da restante humanidade, são muito distintas. Há quem tenha algumas delas muito desenvolvidas, há quem as tenha pouco, mas uma coisa é certa, a capacidade de sonhar é praticamente igual em todos os cérebros que existem ou alguma vez existiram.
Veja-se bem, que até as gentes da mais alta sociedade, sonham a dormir da mesma maneira que os pobres, ou seja, em ambos os casos, os seus cérebros inventam histórias. Atente-se no exemplo de Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre, a 4.ª Marquesa de Alorna, também conhecida como Alcipe. Tal e qual como uma ou um outro qualquer, a marquesa também tinha sonhos impudicos e neles havia histórias assim mais a atirar para o atrevido.
Aqui fica o poema “Sonhos meus”, por ela escrito, que o comprova. Muito embora a marquesa use palavras belas, todos sabemos de que sonhos falam os seus versos.
Sonhos meus, suaves sonhos,
Sois melhores do que a verdade;
Quando sonho sou ditosa,
Sem o ser na realidade.
Amor, tu vens nos meus sonhos
Acalmar-me o coração;
Mas cruel! Quanto prometes
Não passa de uma ilusão.
Sonhei, tirano, esta noite,
Sonhei que tu me chamavas,
E que sobre a relva branda
Tu mesmo me acalentavas.
Disseste-me: “Dorme, Alcipe,
Amor sobre ti vigia,
Mal podes temer os fados.”
Dormi: neste dobre sono
Me achei n’um palacio d’ouro:
Entregaram-me uma chave
Para que abrisse um tesouro.
- “Chave mágica, sublime,
Que me vais tu descobrir?
Se é menos do que eu desejo
Será melhor não abrir…”
- “Abre, Alcipe” qual trovão
Brada o deus que me vigia:
Acordei sobressaltada,
E abriu-se, mas foi o dia.
Dito isto, por aqui vamos terminar, mas não sem antes resumirmos a nossa tese. No nosso texto de ontem, https://ifperfilxxi.blogspot.com/2025/01/todo-burro-come-palha-questao-e-saber.html , argumentámos contra as histórias, sobretudo as infanto-juvenis, que ao invés de narrarem aventuras, anseios, ilusões e desejos, pretendem antes inculcar-nos uma qualquer moral, a nosso ver, por mais benigna que tal moral possa ser, as histórias não são o sítio adequado para se dar lições.
Histórias com lições de moral acopladas são até uma traição à essência do que é uma história. As boas narrativas, os excelentes contos, as fantásticas lendas e os mais misteriosos mitos, têm todos a mesma essência, ou seja, aquela de que são também feitos os sonhos que o nosso cérebro sonha enquanto dormimos, a saber, uma absoluta e total liberdade criativa, donde emerge o estapafúrdio, o inusitado, o enigmático, o obscuro e o inexplicável. Em resumo, uma verdadeira história não precisa de nenhuma moral nem de qualquer explicação, todos a percebem, inclusivamente quando não a compreendem, e isto porque temos um órgão narrativo: o cérebro.
Mesmo para finalizarmos, deixamos-vos uma histórica gravura japonesa, “O sonho da mulher do pescador” de Katsushika Hokusai. Há um provérbio asiático em que se diz assim: “A quem tem fome, não lhe dês um peixe, ensina-o a pescar”. Como se percebe, o provérbio pretende dar uma lição de moral a quem o escuta, nós, fazemos ao contrário, apresentamos uma gravura asiática em que também se fala de pesca, só que, em vez de uma narrativa moral, temos uma narrativa imoral, dessas que o nosso cérebro gosta.
Mesmo sendo culturalmente muito relevante e tendo uma grande importância histórica, a gravura não é para olhos infantis nem sequer juvenis, mas sim para gente adulta, razão pela qual quem a quiser contemplar terá que clicar no link abaixo, uma vez que nós temos vergonha de aqui a reproduzir um sonho assim.
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