Que cantam
os poetas e fadistas de agora? Que miram os poetas e fadistas de agora? Que
sentem os poetas e fadistas de agora? De vez em quando falamos de poesia e de
fado neste blogue, o que, a bem dizer, não é de estranhar, pois são essas as
duas práticas, nas quais melhor se expressa a essência da alma portuguesa.
Em tempos
passados, Camões cantava como eram verdes os campos da cor do limão, como o
amor é fogo que arde sem se ver, e como eram imensas as glórias lusitanas
quando as caravelas iam por mares nunca dantes navegados. Mais tarde, Amália
dizia-nos que éramos um povo que lava no rio e que talha com o seu machado as
talhas do seu caixão, e que tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é
fado. Todavia, a nossa questão é o que nos dizem agora, no século XXI, os
atuais poetas e fadistas.
Sabermos o
que cantam os poetas e fadistas contemporâneos não serve apenas para
satisfazermos uma curiosidade científica e artística, servirá também para
fazermos um diagnóstico de qual o presente estado da alma nacional.
Como já
dissemos, em nenhum lugar a alma de Portugal se dá mais a ver do que na poesia
e no fado, que são na verdade os dois sítios de eleição para sabermos quem
somos como nação.
Abaixo uma
pintura de Júlio Pomar de 1985 onde estão retratados poetas e artistas da nossa
praça em pose de fadistas, e mais concretamente, Mário de Sá-Carneiro,
Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso.
Uma coisa é certa, já não somos o povo triste a que Amália dava voz nos
seus fados. Ao longo dos tempos, o fado sempre esteve associado a destinos
marcados, a almas vencidas, a noites perdidas e a sombras bizarras, no entanto,
no século XXI parece já não ser esse o caso. Com efeito, já ninguém quer saber
de sentimentos profundos, de amores funestos e de trágicos dramas de faca e
alguidar.
Hoje em dia, as gentes querem-se muito mais leves e descontraídas, e se
for possível até superficiais, isso sim é cool. Ninguém quer cá saber de amor,
ciúme, cinzas e lume e ainda menos de dor e pecado. Que na Mouraria cantem
rufias e chorem guitarras, não interessa a vivalma, interessa sim que cantem na
TV e que de preferência toquem coisas giras, agitadas e divertidas.
Marco Rodrigues, um fadista nascido em 1982, percebeu claramente que os
tempos atuais não são iguais aos dos da época da Amália, ou seja, a essência da
alma nacional já não é a mesma, sendo essa a transformação que ele nos canta no
fado “Eu sou do roque”.
Qual “silêncio que se vai cantar o fado”, como se dizia antigamente. Em Portugal, nos tempos que correm, quanto mais barulho melhor. Não se quer cá palavras sentidas ou cheias de significado, guitarras elétricas, baterias e altos decibéis é tudo o que o pessoal quer. Quanto mais espalhafato se fizer, maior a hipótese de se de vir a ser um galã e aparecer no ecrã. Aqui fica Marco Rodrigues com “Eu sou do roque”:
Mas se o fado atual de algum modo se afastou dos altos sentimentos e dos
destinos marcados, tendo-os trocados por cenas mais cool, menos intensas e sem
tão pesados significados, o mesmo se passou na poesia.
Camões cantou nos seus poemas as nobres glórias dos lusitanos, um povo de
navegantes que se aventurou pelos setes mares e deu novos mundos ao mundo.
Nesse tempo, Portugal era um país de gente que se fazia ao mar e ao cais de
Lisboa chegavam todos os dias valiosos carregamentos das mais exóticas
especiarias, os mais finos tecidos e muitas outras excêntricas mercadorias.
Tudo isso passou, e os atuais lusitanos já não são muitos dados a grandes
aventuras nem gostam de ir em busca de coisas novas e bizarras vindas de
estranhos e longínquos continentes, o mais longe que vão é à superfície
comercial mais próxima para adquirir vulgares produtos comuns para o seu
quotidiano.
Manuel de Freitas nascido em 1972, no seu poema “Supermercado” dá-nos
conta desse modo contemporâneo de se ser português, o banal e simples fado
atual:
Tenho 35 anos e sei finalmente o
que
quero. Basta olhar para o cesto
de compras: bolachas Leibniz, papel
higiénico Renova, leite com
chocolate
Agros e, claro, uma garrafa de
Famous
Grouse e pelo menos seis latas de
Super Bock.
Discos já tenho que cheguem, por
muito
que me desminta, e não viverei o
suficiente
para ler todos os livros que me
ocuparam a casa.
É um bocadinho banal, eu sei, mas é
a minha
prestação diária enquanto
consumidor, o meu fado
simples, enxuto, quase isento de
lágrimas & remorsos.
Acordo para almoçar no Doce Lindo
(ou Doce Belo, ainda
não houve rotina que me fizesse
decorar o nome),
passo pelo supermercado, onde
desejo ou nem por isso
todas as ternas e voláteis isildas
deste mundo perfeito
– e volto a subir devagar as
escadas de madeira rombas.
Só muitas horas depois, quando as
luzes
me garantem que o bairro inteiro
dorme,
escrevo poemas como este, versos em
que
inutilmente vos digo que sou um
homem feliz,
un roseau pensant, o mais belo
cadáver de Lisboa.
Abaixo uma imagem de uma obra de Júlio Pomar de 2007, cujo tema é o fado
mas na qual aparecem alguns brinquedos daqueles que se podem comprar em
qualquer supermercado de esquina.
Aqui
chegados, já é possível concluir algo acerca da atual essência da alma nacional
a partir dos versos de poetas e fadistas, ou seja, que se noutros tempos ou se
cantavam grandes viagens e arrebatadores sentimentos e dores existenciais que
se desfiavam por tabernas e vielas, agora cantam-se viagens ao supermercado e
cantigas de roque, pois que estas fazem mais sucesso nos ecrãs.
É esta a diferença
de que nos fala a fadista Gisela, nascida em 1983, num fado que se intitula
“Antigamente”. A intérprete diz-nos que “Tinha
graça, o fado antigo, da forma que era cantado”, todavia, o que nós
verificamos ao ouvi-la cantar, é que mesmo sendo ela, a Gisela, moderna, o
facto é que a rapariga também tem uma certa malícia na voz, e mais do que isso,
no modo de cantar e não só, é muito dada a chalaças e jocosidades.
Em boa
verdade, estamos mesmo em crer, que o fado de agora, e mais em concreto este da
Gisela, é bem capaz de ser mais alegre, engraçado e divertido do que os de
antigamente. É verificarem no link abaixo:
Pelo exemplo
do fado de Gisela, estamos em crer que na atualidade, o povo português nem
sequer acredita muito na alegria e pensa que esse é um sentimento que só
existia no antigamente. Com efeito, é só assistirmos a um qualquer telejornal,
para ver toda a gente nascida em território nacional a queixar-se disto e
daquilo, que andamos todos pelas ruas da amargura. Abaixo uma pintura de José
Dominguez Alvarez (1906-1942), “Casas das
violas”.
Em resumo, se
dantes na nossa amada pátria as tristezas e alegrias eram profundas e
marcantes, dignas do mais sentido fado e de as cantarem e chorarem guitarras,
agora ninguém se sente verdadeiramente exultante, nem mesmo cabisbaixo, vamos
todos andando assim-assim, uns dias bem e outros mal.
Se dantes os
feitos lusitanos eram grandes e de molde a dar novos mundos ao mundo, agora já
não se passa nada disso, é tudo muito mais simples e prosaico, o mais que
conseguimos é uns triunfos no futebol.
O poeta José
Miguel Silva nascido em 1969, escreveu um poema intitulado “Bayern de Munique 1 X 2 FC Porto “. Esse seu poema descreve-nos a
forma como ele viveu o maior feito coletivo nacional a que assistiu durante a
sua juventude, a saber, a vitória na final da Taça dos Campeões de 1987 do FC Porto.
Enfim, se
Camões cantou a viagem marítima de Vasco da Gama para a Índia, por que não José
Miguel Silva cantar no século XXI o grande triunfo do FC Porto num jogo
inesquecível em 1987?
Aos dezoito anos vive-se já na
antecâmara
do pesadelo, mas a vida reserva-nos
ainda
o fulgor intempestivo dum embate
donde sairemos homens, estonteados
de suor e lama.
Sabíamos que não iria durar muito
a juventude - noventa e três
minutos,
se não erro. Mas o trevo permanece
nas pastagens da memória: um irónico
toque de calcanhar, uma rápida
investida
no coração do tempo, as mais loucas
diagonais contra o pior dos
fatalismos,
o dos tímidos.
Como esquecer aquelas fintas à
tristeza,
a viva fantasia dos relâmpagos
abrindo
fundas brechas no espírito
simétrico,
pesado, dos teutónicos, a negação
do fado. Que foi isto, perguntámos,
como pôde? Nenhum relógio mede
tamanha velocidade.
E as lágrimas deslizam, como vêem,
pelo poema abaixo, isso é sinal de
que o futuro
já passou, já ruiu a balaustrada de
onde víamos,
serenos, a corrida dos minutos,
coroada
de possível. Que nos resta? Nada.
Felizes
os que guardam, pelo menos, a
cassete.
Para finalizarmos esta nossa deambulação entre o fado e a poesia de
dantes e os de agora, terminamos com um desfado. Vem mesmo a propósito, pois se
os acordes, as harmonias e as melodias da canção nacional não mudaram assim
tanto, as letras mudaram bastante.
Na canção de Ana Moura que abaixo vos deixamos, canta-se o destino como
noutros tempos e a falta de crença no mesmo. Canta-se a tristeza como dantes,
mas também a alegria que é essa tão grande tristeza. Há lamentos como os
antigos, mas são lamentos por não se ter nenhum lamento. Também há desgraças
como as da outra época, mas diz-se que é uma sorte viver tais desgraças. Além
disso, relativamente ao destino, só há a grande certeza de a fadista não estar
certa de nada. Em resumo, melhor síntese de que o fado do passado e do presente
era difícil.
Já agora, todas as obras de arte que usámos neste texto, estão presentes na exposição “As Imagens do Fado na Arte Portuguesa”, atualmente patente no Museu do Fado.
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