Quem tem telhados de vidro não deve andar à pedrada, e o mesmo se aplica a quem tem rabos-de-palha. Como por este início de conversa já todos os nossos leitores terão adivinhado, hoje vamos falar-vos de arquitetura e da resistência dos materiais, assim como de provérbios, fábulas e histórias que nos dão lições morais.
Nós não gostamos de lições de moral e menos ainda quando surgem no final de uma história. Qual é a moral da história é uma questão que sempre nos irritou desde a mais tenra idade, preferimos antes contos, relatos, narrativas, lendas, fábulas e tramas sem moral nenhuma ou, em alternativa, completamente imorais.
Não nos venham cá dar palha com morais da história. Só para abreviarmos conversa, ficam já a saber que no nosso entender, a formiga era uma autêntica cabra. Então custava-lhe assim tanto ajudar a cigarra? Lá porque a cigarra andou na boa vida em cantigas e guitarradas, não se podia dar-lhe um pouco de comida e abrigo? “Se no verão cantaste, agora dança”, então isso é lá resposta que se dê a quem nos pede auxílio? Francamente.
E que raio de moral é a da história do capuchinho, em que se sugere obediência à mãe, não ir pela floresta, nem se pôr à conversa com lobos maus? Se as raparigas mais tarde na vida seguissem tais preceitos, o mais certo era ficarem todas para tias.
E já agora, é ou não verdade, que a Branca de Neve é um bocadinho para o desenxabida e a madrasta má é muito mais bela e sexy do que ela? A haver uma moral da história nesse conto, seria a de que o espelho não funcionava bem!
Não são só os contos tradicionais que nos vêm com morais, na literatura infanto-juvenil atual, elas também abundam. É só fazer uma breve pesquisa e descobrimos imediatamente dezenas de livros destinados aos petizes, que se anunciam a si próprios como sendo excelentes para educar para os valores inclusivos, para as diferenças, para o desenvolvimento de competências socioemocionais, para os bons sentimentos e sabe-se lá para que mais morais.
Está tudo muito bem que se eduque crianças e jovens ensinando-lhes os valores da tolerância, do respeito, da solidariedade e outros tantos, todavia, do que aqui hoje falamos é de histórias, contos, relatos, narrativas, lendas e tramas, e não de manuais com regras e preceitos morais.
Há muito quem diga, que as histórias, sejam elas fábulas, sagas ou meras anedotas, são uma forma lúdica e óptima de ensinar à pequenada princípios, regras sociais e padrões de comportamento. Os mitos, as lendas e os contos desde sempre que nos ensinam normas, códigos e paradigmas, e apresentam-nos heróis e arquétipos que nos servem de modelo, contudo, isso é uma coisa, outra completamente distinta, é as histórias darem-nos explícitas lições de moral.
Vejamos a diferença entre o tanto que uma história nos pode ensinar e transmitir, e o quão pobre e limitada é uma lição de moral que dela se queira retirar. Para tal, nada melhor do que recorrer a um dos primeiros relatos da humanidade, a Odisseia de Homero, no qual se conta o regresso do mítico Ulisses a Ítaca.
Ao lermos a Odisseia sabemos que Ulisses, finda a guerra de Tróia, demorou dez anos a chegar a casa em Ítaca, onde a fiel Penélope, a sua esposa, pacientemente o esperava, desdenhando nesse entretanto todos os seus muitos pretendentes.
Ulisses levou um tanto tempo no regresso porque pelo caminho encontrou primeiro sereias que tocavam e cantavam uma música maravilhosa, que enfeitiçava a todos quantos por elas passavam, e logo com isso atrasou-se um bom bocado.
Mais à frente, tempestades e tentações desviaram-no da rota certa, tendo ele ido parar à ilha da linda ninfa Calipso, que lhe ofereceu amor eterno e a imortalidade caso ele ficasse com ela. Ele foi ficando durante uns tempos, mas depois de uns quantos anos fez-se novamente ao mar, decidido a regressar a Ítaca e aos saudosos braços de Penélope.
Por fim, depois de muito passar, Ulisses lá conseguiu aportar em Ítaca, envelhecido e cansado, e só o seu cão, Argos, o reconheceu.
Ora bem, fizemos o resumo da Odisseia, obra na qual se contam as aventuras e desventuras de Ulisses no seu regresso a casa após a guerra de Tróia. Aprendemos com essa história como há tentações perigosas, Calipsos que nos desviam do caminho, tempestades que nos levam para fora da rota certa, e muitas outras coisas mais, com que nos podemos perder, ou seja, tudo excelentes ensinamentos.
Até aqui tudo bem, porém, imagine-se que alguém quer retirar do relato homérico uma lição de moral, nesse caso, ficava logo tudo estragado e mais pobre. Um moralista afirmaria certamente que Ulisses não devia ter perdido tanto tempo com sereias e ninfas, dado que Penélope estava à sua espera.
Para além disso, se tivesse vindo mais cedo para casa, Ulisses não teria chegado envelhecido e cansado, mas ainda novo e cheio de vigor. Em síntese, um moralista concluiria que não se deve deixar ninguém à espera, e que chegar as horas dá saúde e faz crescer.
No entanto, a beleza e riqueza da Odisseia está em quem lê saber que Ulisses levou tanto tempo a regressar a casa por respeitáveis motivos. Com efeito, o homem teve de aguentar com muito e as suas dúvidas e hesitações são legítimas e razoáveis, e de modo algum reduzíveis à pobreza de uma qualquer moral da história.
Repare-se por exemplo, que a ninfa Calypso ofereceu a Ulisses amor eterno e a imortalidade caso ele ficasse com ela. É certo que Penélope, a sua legítima esposa estava à espera dele, mas ainda assim, só um moralista não conseguirá compreender que o mítico herói, perante a proposta de Calypso, hesitasse e acabasse por se atrasar.
Abaixo uma obra de Arnold Bocklin de 1883, onde se vê a ninfa Calypso em primeiro plano, e mais ao fundo, Ulisses como que petrificado, cogitando enquanto contempla o imenso mar.
Só um moralista não compreenderá que não foi por dá cá aquela palha, que Ulisses levou tanto tempo a regressar a Ítaca. Só um moralista não perceberá a razão pela qual o Capuchinho Vermelho se mete pela floresta adentro e se põe à conversa com o lobo mau a dar-lhe palha. Só um moralista não entende o motivo por que a cigarra prefere cantar e não mexer uma palha, ao invés de ir trabalhar. Por fim, só um moralista desdenha da casa de palha erguida por um dos três porquinhos.
Os nossos mais atentos e perspicazes leitores, hão de ter reparado que no último parágrafo há muita palha e que, vindos do nada, aparecem também os três porquinhos. Os nossos leitores com o pensamento crítico mais desenvolvido, hão de se perguntar ao que vêm agora os três porquinhos e qual é o propósito de tanta palha. Os nossos leitores mais moralistas, com certeza há muito que nos deixaram de ler e se foram entreter com qualquer coisa que lhes eleve a alma, coisa que este texto certamente não fará.
Para os não moralistas que insistem em seguir-nos, vamos agora esclarecer ao que veio a palha e os três porquinhos. Como todos saberão, há um pouquinho preguiçoso que constrói uma casa de palha, um segundo porquinho que só se esforça um bocadinho, e ergue uma casa de madeira, e um terceiro porquinho trabalhador e diligente, que põe de pé uma casa de cimento e tijolo. Nisto, o lobo mau sopra e as duas primeiras casas vão abaixo. Já a terceira aguenta-se firme e hirta até o lobo ficar sem fôlego.
Qual é a moral desta história? Como todos já adivinharam, não queremos saber da moral da história para nada. Ao invés disso queremos recordar aos nossos leitores mais pacientes uma passagem do início deste nosso texto: “…hoje vamos falar-vos de arquitetura e da resistência dos materiais…”
Já ninguém se lembrava que era esse o tema do dia, certo? Dito isto, o facto é que existe um material de construção eco sustentável, que é excelente e dos mais económicos que há, a saber, a palha. Na Dinamarca, na localidade de Sundby, o prestigiado arquiteto Henning Larsen desenhou uma bela escola toda ela de palha.
A escola de Sundby tem sido elogiada por todo o lado, e dado tal sucesso, em muitos países a palha é cada vez mais usada como material de construção. Qual é a moral desta história? A oposta da história dos três porquinhos, pois claro. Aqui fica o site do arquiteto Hennig Larsen com mais imagens e explicações sobre o modo como a dita escola foi erguida.
Já agora, ficam também a saber, que no Malawi, um país da África Oriental, também foi construída uma escola de palha, esta abaixo na imagem.
Quem quiser conhecer os corredores, a biblioteca e as salas de aula desta linda escola no Malawi, pode fazê-lo através do seguinte site:
Com o exemplo destas duas escolas e com tudo o resto que dissemos, quisemos por portas travessas demonstrar que as melhores histórias não têm moral. As que efetivamente a têm, são aquelas cujo objetivo principal é venderem-nos disfarçadamente uma mensagem e inculcarem-nos de modo subliminar regras, doutrinas, padrões de vida e moralidades. Quem escreve tais histórias, acredita profundamente no provérbio que usámos como título deste presente texto: “todo o burro come palha, a questão é saber dar-lha”.
Todavia, quem escreve verdadeiras histórias, não quer passar-nos mensagens nem dar-nos lições de moral, quer sim contar-nos aventuras, relatar-nos desventuras, narrar-nos perigos, apresentar-nos heróis e as suas dúvidas e hesitações, maravilhar-nos com lendas e mitos, e descrever-nos viagens e paisagens por páginas e páginas.
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