Consegue-se ir da baixa da cidade de Lisboa ao seu alto em apenas dois minutos no Elevador da Glória. Lá no cimo, temos o miradouro de São Pedro de Alcântara, local do qual se pode avistar a enorme urbe em toda a sua largura e extensão. Vemos num primeiro plano o trânsito e a agitação da avenida e, mais ao longe, as colinas da Graça e do Castelo que se erguem em direção ao céu. Olhando para sul, avista-se a Sé e um pouco mais ao fundo o Tejo e a outra margem.
Visto lá do alto sob a plácida luz de Lisboa, o mundo espraia-se diante do nosso olhar como sendo um sítio belo e tranquilo, que vale a pena contemplar com tempo e vagar. Os miradouros da cidade são janelas abertas para a realidade e, de cada vez que lá vamos recordamo-nos que não nascemos para vivermos fechados entre muros e paredes. Não somos seres destinados às vistas curtas e limitadas.
Constatamos então nessas janelas-miradouros, que existem céus mais vastos que o mais vasto desejo, um rio que corre continuamente para um mar sem fim e horizontes que se estendem para lá daquilo que a nossa vista consegue vislumbrar. Vemos também que a cidade é constituída por muitas coisas distintas e que há imensas ruas, colinas, becos, calçadas e vielas e também as muitas diferentes gentes que nelas vivem. É bom alargarmos horizontes e percebermos que o mundo não se esgota na nossa rua.
Para além de serem belas, estas janelas que a cidade tem, são também higiénicas, limpam-nos os olhos do que continuamente vemos no quotidiano. Nos dias banais, nos lares, nos cafés, nas salas de espera, nos aeroportos, em estações de comboio e por todo lado, há outras janelas pelas quais repetidamente espreitamos, só que, essas apenas nos dão a ver o rumor do mundo e o seu vaivém sem paz, a vida suja, hostil e inutilmente gasta.
Tais nefastas janelas, como já hão de ter adivinhado, são os milhões de ecrãs que nos bombardeiam ininterruptamente com imagens de um mundo intranquilo e feio. Essas imagens, que alimentam contínuas guerras em que cidades inteiras são arrasadas, servem para ostracizar gentes diferentes e também para promover a ascensão de homens incultos e cruéis a posições de grande poder.
É certo que todas essas desgraças existem e devem ser noticiadas, contudo, a permanente e insistente reincidência nas mesmas imagens de catástrofes, desditas e infortúnios, mais não faz do que tornar banal a ideia de que o mundo se está a desfazer e é um local onde só há desventuras, angústias, sofrimentos e dores.
A contínua reiteração dessas imagens alimenta o medo, fazendo com que todos se queiram fechar entre as quatro paredes de casa, fazendo com que se ergam muros e fazendo também com que cresça o desejo de que apareça alguém com força, determinação e autoridade, que ponha o mundo na ordem.
No miradouro de São Pedro de Alcântara, a cidade e o mundo espraiam-se diante do nosso olhar, abrem-se horizontes e os céus estendem-se, estando lá, nem nos lembramos que nas últimas semanas, ao olharmos pelas janelas-écrans, o que mais vimos foi Trump e os trumpetas.
Trump toda a gente sabe quem é, os trumpetas (um neologismo por nós aqui inventado) são todos aqueles seres que estão completamente fascinados pelo ar determinado, autoritário e másculo com que Trump se apresenta ao mundo.
Há trumpetas em todas as nações e de qualquer classe social. Até um dos homens mais ricos do mundo, Musk, decidiu ser um trumpeta. É penoso vê-lo aos saltinhos pelos comícios, tal e qual uma casta virgem excitada e descontrolada por estar próxima do macho viril por que anseia.
Que este homem controle uma grande parte do que aparece nos nossos ecrãs, só não nos faz perder toda a fé no mundo e na humanidade, porque felizmente há miradouros e janelas através das quais podemos olhar para a realidade e verificar que ela não é tão limitada, estreita, feia e terrível como ele nos quer fazer crer.
“O que pode a beleza perante um mundo que se desagrega à frente dos nossos olhos? Que força tem, ou gostaríamos que tivesse, um objeto belo quando confrontado com a infâmia do dia-a-dia? O que importa a beleza a quem não a procura? A beleza, por si só, não pode muito nem faz muita falta. Ao mesmo tempo a beleza, em nós, pode tudo e é indispensável à felicidade individual e coletiva.”
Transcrevemos o texto acima do site de uma associação cultural que se alberga num palácio do século XVI, situado num sítio a dois minutos do miradouro de São Pedro de Alcântara, o seu nome é Brotéria (https://broteria.org/pt/home).
Esta associação cultural dedica-se a pensar os desafios que a realidade do mundo nos coloca no presente. Significa isto, que não é um sítio onde reina o medo perante o mundo contemporâneo, não é pois um lugar para trumpetas.
O que nessa associação se faz é o oposto de se esperar que alguém forte, determinado e autoritário, se ponha aos gritos, a querer pôr ordem nisto tudo. O que na Brotéria se faz é pensar e debater com saber, paz e tranquilidade. Faz-se mais, mostra-se também como no nosso tempo pode haver beleza, ainda que seja distinta da do tempo dos nossos antepassados.
No interior do palácio do século XVI onde está instalada a Brotéria existe um antigo oratório. Nele foi agora colocada uma obra do artista contemporâneo João Penalva, “Looking up in Osaka”.
O que está representado nessa obra é o que se vê quando se olha para cima na cidade japonesa de Osaka. Veem-se inúmeros cabos, mas por entre esse imenso emaranhado avista-se igualmente o céu.
Agora como sempre, um oratório tem como função, ser um ponto que nos permita afastarmo-nos das coisas quotidianas, banais e terrenas, e elevarmos olhos e alma para algo de mais transcendente, algo que talvez esteja lá no alto, nos céus.
É muito belo e feliz este encontro entre os séculos XVI e XXI, mostrando-nos desse modo que não há porque ter receios do mundo contemporâneo e a ele reagir com reacionarismo, tentando à força pôr tudo na ordem. O que na verdade importa, é que seja em épocas de outrora, seja agora, a humanidade não perca a capacidade de olhar para lá de paredes e muros, e também para lá da estreita realidade veiculada em permanência pelos ecrãs. O que importa é que a humanidade, seja num miradouro ou num oratório, não deixe ir a janelas em que pode olhar para o céu.
As cidades vistas através dos ecrãs raramente são belas. Diariamente há milhares de imagens de cidades distópicas, sujas e feias. Os trumpetas deliram com tal, ficam logo todos excitados e seja no café da esquina, no escritório, em Portugal ou em Silicon Valley, começam imediatamente a berrar e a clamar pelo seu homem viril, aquele que vai pôr isto tudo na ordem.
Há um século, precisamente há cem anos, uns quantos cineastas quiseram dar-nos a ver a beleza das cidades e a sua poesia. Foi um movimento espontâneo, em que quase simultaneamente em vários sítios do mundo, houve uns quantos que quiseram mostrar-nos como a mais banal e quotidiana realidade, pode conter em si algo de transcendente e poético. Tais cineastas não se limitaram a filmar o óbvio, o que fizeram foi abrir novas janelas na forma de ver o mundo.
Um deles chamava-se Joris Ivens (1898-1989). Um dia pôs-se a filmar Amsterdão enquanto chovia. O que daí resultou foram quinze minutos de pura poesia. Aqui fica:
O mesmo aconteceu em Moscovo. Corria o ano de 1929 quando Dziga Vertov (1896-1954) decidiu ir para a rua para realizar o clássico “O homem da câmara de filmar”.
Vertov anunciou ao povo soviético que iria fazer qualquer coisa nunca feita, que ia dar a ver a vida como nunca tinha sido vista, que não se iria limitar aos códigos e linguagens narrativas próprias da escrita ou do palco, mas que pretendia abrir novos horizontes aos espectadores: “Faz-se notar que o presente filme é Uma Experiência de Transposição Cinematográfica de Fenómenos Visíveis, Sem Intertítulos, Sem Cenários, Sem Estúdio. Este trabalho experimental prossegue a criação de uma linguagem cinematográfica absoluta, autenticamente internacional, fundada na total separação com a linguagem do teatro e da literatura”.
O filme de Dziga Vertov dura pouco mais do que uma hora, mas o que aqui vos deixamos é um trailer recente, com banda sonora dos Pink Floyd:
De modo inabitual, também em Portugal houve alguém que decidiu mostrar a beleza da sua cidade de uma forma inédita. Esse alguém foi Manoel de Oliveira (1908-2015) que em 1931, ainda muito jovem, realizou o clássico “Douro Faina Fluvial”.
Nessa obra não encontramos o Porto óbvio. Entre a Ribeira e a Foz vemos altas construções, a Ponte D. Luís, os mastros dos barcos e navios e outras coisas mais. Vemos também as gentes rudes e simples, os pescadores, os estivadores, as vendedeiras e outros que no cais ganham o pão de cada dia.
Vemos as gentes nos seus pesados afazeres, mas vemo-las também enquanto comem, conversam e se riem. Pelo meio há animais, não só peixes como também cães, gatos e bois de carga. Animais e pessoas misturam-se e todos parecem condenados a repetir diariamente os mesmos gestos, a carregar os mesmos pesados fardos e a viver vidas duras, contudo, a câmara de filmar de Oliveira aponta frequentemente para o alto, para os céus que se vislumbram por entre as vigas da Ponte D. Luís e os mastros do barco.
Filmando toda a faina do Douro desse modo, como que nos mostra que toda aquela gente é humana, ou seja, que tem em si a capacidade de olhar para cima e de entrever mais vastos horizontes e paisagens mais largas.
O gesto fílmico de Oliveira é equivalente ao gesto artístico de João Penalva, e igualmente ao de Joris Ivens e de Dziga Vertov, bem como ao gesto institucional da associação cultural Brotéria, e ainda como ao de qualquer cidadão comum que desvie o olhar dos ecrãs e se dirija a um miradouro para ver o mundo. O que todos esses gestos pressupõem é uma fé na realidade, uma certeza de que há beleza no mundo e de que a conseguimos contemplar, o mesmo é dizer, uma recusa à feia realidade que os trumpetas nos querem vender e impor.
Aqui fica todo o filme:
E pronto com isto terminamos, não sem relembrarmos que há um século, após Joris Ivens, Dziga Vertov, Manoel de Oliveira e outros quererem dar a ver as cidades e o mundo de uma forma bela e poética, apareceram os trumpetas dessa época que mais ou menos como os de agora, também ficavam muito excitados e entusiasmados com a vinda de um homem forte e másculo que pusesse o mundo na ordem.
Mesmo para finalizarmos, abaixo uma imagem desse tempo, em que um homem que tinha imensa fé nas gentes e na beleza, de seu nome Charlie Chaplin, decidiu ridiculizar aqueles que não tinham qualquer fé no mundo, como todos os limitados e incultos de vistas curtas, apenas o queria dominar.
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