Em Portugal gosta-se muito de homenagens póstumas. Desde momento que uma pessoa esteja morta e enterrada e já não diga nada nem chateie ninguém, aí sim, é o momento perfeito para a celebrar. Vem isto a propósito da trasladação de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional.
Se por acaso Eça soubesse que tinha sido erguido pelas autoridades oficiais da pátria à condição de um dos grandes homens da nação, certamente que haveria de se desfazer a rir. Na verdade, era essa a sua forma de reagir a muitas decisões governamentais:
“A única crítica é a gargalhada! Nós bem o sabemos: a gargalhada nem é um raciocínio, nem um sentimento; não cria nada, destrói tudo, não responde por coisa alguma. E no entanto é o único comentário do mundo político em Portugal. Um Governo decreta? Gargalhada. Reprime? Gargalhada. Cai? Gargalhada.
(Eça de Queiroz, in 'Uma Campanha Alegre')
Eça de Queiroz passou parte significativa da sua vida no estrangeiro, exerceu funções de cônsul em Havana, depois em Bristol e Newcastle e, por fim, esteve doze anos em Paris, cidade onde viria a falecer. Dito isto, há muitas passagens nos seus escritos nas quais se refere a Portugal, sendo que, a perspectiva que tinha do país era mais vasta e sortida, do que a que teria quem nunca tivesse ido para lá da raia. Veja-se por exemplo o parágrafo abaixo:
“O juízo que de Badajoz para cá se faz de Portugal não nos é favorável... Não falo aqui de Portugal, como estado político. Sob esse aspecto, gozamos uma razoável veneração. Com efeito nós não trazemos à Europa complicações importunas; mantemos dentro da fronteira uma ordem suficiente; a nossa administração é correctamente liberal; satisfazemos com honra os nossos compromissos financeiros. Somos o que se pode dizer um povo de bem…A Europa reconhece isto; e todavia olha para nós com um desdém manifesto. Porquê? Porque nos considera uma nação de medíocres, digamos francamente a dura palavra, porque nos considera uma nação de estúpidos.”
(Eça de Queiroz, in 'Notas Contemporâneas')
Por comparação, a passagem acima nem sequer é muito rude, pois há outras em que Eça é mais severo com as grandezas e misérias da nossa amada pátria, contudo, e ainda que assim seja, era mesmo preciso que Eça escrevesse tal coisa? Estúpidos?!
“Uma nação de estúpidos”, então isso diz-se? E ainda por cima por escrito! Mesmo que o Eça tivesse ouvido dizer lá por fora que Portugal e os portugueses não são particularmente inteligentes, calava-se, pois não vale a pena andar-se por aí a repetir tudo o que se ouve.
Mas enfim, esqueçamos isso, como hoje é dia de festa e o Eça vai trasladado para o Panteão Nacional, ficamo-nos por aqui com esta conversa. Mais a mais, que como é sabido, em Portugal não se gosta muito de ver as coisas por diversas perspectivas, e muito menos vastas e sortidas, sobretudo quando vindas de fora.
Feitas as contas, perdoamos ao Eça por ter escrito que lá de fora nos viam de uma perspectiva em que aparecíamos como “Uma nação de estúpidos”, a bem dizer, tudo isso já lá vai, pois o homem já está morto e enterrado, e agora vai ser trasladado. Em resumo, assunto encerrado.
Quem está vivo é o pensador e poeta Alberto Pimenta, que não vai para o Panteão Nacional, mas também merece ser comemorado, pois completou por estes dias 87 anos de idade.
Realizaram-se umas quantas discretas homenagens em certas autarquias do país, mas quem sabe se daqui a um século, não será porventura ele a ocupar um lugar no Panteão Nacional com todas as devidas honrarias.
Antes disso não o será, pois o homem ainda tem muita vida pela frente, e, para além disso, as autoridades nacionais costumam demorar décadas, quando não séculos, para reconhecerem os seus grandes escritores. Foi assim com Camões, que morreu na miséria, e bastantes anos depois de ele ter desaparecido, ainda ninguém a nível oficial se tinha apercebido da relevância mundial da poesia de Fernando Pessoa. E isto só para referirmos os dois casos mais conhecidos, pois muitos outros existem.
Alberto Pimenta certamente que não estranharia o Panteão, não porque ele se ache digno de tal glória, mas sim porque está habituado a habitar e a estar exposto em sítios peculiares. Por exemplo, no dia 31 de julho de 1977, Alberto Pimenta fechou-se na jaula dos chimpanzés no Jardim Zoológico de Lisboa e aí esteve à vista de toda a gente durante uns tempos.
Na realidade, Alberto Pimenta tem uma particularidade que não é muito comum na nossa excelsa nação, a saber, prefere ver a realidade de diversas perspectivas, e quanto mais vastas e sortidas, melhor. A esse propósito escreveu o poema abaixo, muito apropriadamente intitulado “jardim zoológico”. Aqui fica:
dum lado da jaula
os que vêem
do outro
os que são vistos
e vice-versa
Uma outra característica do poeta e pensador Alberto Pimenta que merece ser homenageada e celebrada por Portugal inteiro, até para que nunca mais ninguém se atreva a chamar-nos “Uma nação de estúpidos”, seja lá de qual perspectiva for, é que há muito mais para dizer e outros modos de o fazer, que apenas repetir aquilo que nos ensinaram a dizer. Nesse contexto, deixamos-vos um seu poema, “O papagaio”:
aprendi a dizer o que aprendi a dizer, diz ele.
aprendi a dizer que aprendi o que aprendi a
dizer, diz ele. aprendi que não aprendi
o que não aprendi a dizer, diz ele. Comecei a
dizer o que aprendi a dizer, diz ele de dentro
da sua gaiola, aprendi a dizer o que dizem que
se pode dizer, diz ele de dentro da sua gaiola,
mas como dizem que o que se pode dizer apenas
é o que já foi dito, diz ele de dentro da sua
gaiola, só aprendi a dizer o que já foi dito,
diz ele, e como não aprendi também a dizer o
o que ainda não foi dito, diz ele, não sei se só
digo aquilo que sei ou se só sei aquilo que
digo, e assim é e tenho dito, diz ele de dentro
da sua gaiola, batendo com as asas de mau modo
Talvez na época de Eça de Queiroz e provavelmente nas seguintes, lá fora nos vissem como “Uma nação de estúpidos” porque as crianças e jovens eram educados na escola, de um modo que não os fazia crescer de forma a tornarem-se adultos inteligentes.
Em 1977, Alberto Pimenta escreveu o que se segue:”(…) a escola não é, como se supõe, o lugar onde se aprende a fazer, mas o lugar onde se aprende a não fazer; a escola, toda a escola, da mais baixa à mais alta, é o lugar onde se assegura a formação contínua duma continuada conformação, onde se aprende o que se não deve fazer e o que se não deve pensar, o que se não pode fazer e o que se não pode pensar; a escola é desde o início o lugar onde se deixa de fazer, onde se deixa de fazer o que é natural fazer e onde se deixa de pensar o que é natural pensar, essa é a escola; na escola se começa a deixar de fazer e se continua a deixar de fazer e cada vez mais de deixa de fazer, até ao ponto de acabar por nada mais fazer senão o que serve à escola, que é o que não serve à vida, e não fazer o que serve à vida, que é o que serve à escola. A escola, toda a escola, desde a geral à especializada, sempre primária sobretudo quando o é superiormente, é um lugar de omissão, de omissão de vida (…)”
Nós não sabemos, mas pressupomos, que Alberto Pimenta descreve na passagem escrita acima, o ensino de antigamente, em que, ao invés de se formar cidadãos criativos e seres pensantes, com competências para enfrentarem problemas reais e descobrirem soluções eficazes e inovadoras, antes se persistia em disciplinar e castrar.
Essa escola de outrora, mais não tinha como objectivo, que ser uma espécie de fábrica de gente amorfa e pouco inteligente, sem capacidade para lidar com a imprevisibilidade da vida, mas com enorme aptidão para serem funcionários e viveram a vidinha e as suas pequenas alegrias e muitas arrelias. Em síntese, a escola de que Alberto Pimenta nos fala, é aquela que era perfeita para formar “Uma nação de estúpidos” com medo de tudo e muito obediente.
A título de exemplo da escola desse tempo, vejamos um poema de Alberto Pimenta intitulado “problema com vista a orientar os interesses infantis para as realidades quotidianas”, que nos dá uma clara noção daquilo de que estamos a falar:
sabendo que, no momento de defecar, a ave ia a voar a 50 metros de altura do solo e à velocidade de 30 km. Por hora, acrescendo que o vento, no momento da expulsão das fezes, soprava na direcção do voo da ave a 25 km. por hora, e sabendo ainda que as fezes, no momento da expulsão, pesavam 12 gramas, calcule a distância a que as fezes caíram em relação ao ponto da
terra situado na vertical do ponto em que a ave abriu a cloaca.
O problema matemático acima apresentado, glosa aqueles que em tempos existiam nos livros da instrução primária. Por alguma misteriosa razão, há hoje em dia quem tenha saudades dessa época em que nas escolas se ensinava as crianças e jovens a como não pensar.
E com isto terminamos, todavia, em vez de o fazermos comemorando os insignes homens que, como Eça de Queiroz, elevaram a fama e glória da nossa amada pátria aos píncaros da excelência, e que por isso muito justamente agora repousam no Panteão Nacional, queremos antes acabar com um mero verso de Alberto Pimenta, que nos fala de uma pobre e inocente criança portuguesa:
Vejo a pequena suja a brincar na rua com os cagalhões dos cães não digo que seja sublime mas como tudo não deixa de ser interessante
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