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Fará falta aos docentes passarem pela Curraleira e por outros bairros desse género? Nós dizemos que sim!

 

Num dia já longínquo, ainda estávamos no século XX, fomos colocados por concurso numa escola de Lisboa, que ficava num sítio que só de nome conhecíamos. 
A má fama do local era antiga e, uma vez lá chegados, o que primeiro vimos foram barracas que eram casas, e burros, muitos burros, que por ali andavam com toda a tranquilidade.

Não estávamos longe das extensas e agitadas avenidas, das ruas cheias de gente, do trânsito intenso e de todo o bulício da cidade, no entanto, parecia que estávamos num qualquer calmo e bucólico lugar campestre.

Um dos grandes privilégios de se ser professor no ensino público em Portugal, é num ou noutro momento da carreira se poder ter a oportunidade de ser colocado num bairro degradado. O privilégio consiste em poder ver-se a partir de dentro, aquilo que normalmente só quem habita nesses sítios vê.

Não são coisas belas, bonitas e agradáveis, o que por esses bairros se pode ver, dir-se-ia que são até o oposto, ou seja, coisas feias e miseráveis, quando não terríveis. No entanto, o que também se percebe lecionando em tais bairros, é que ali vive gente como nós, ainda que viva em grande pobreza, com uma tremenda falta de cultura e instrução, e não raras vezes paredes meias com o crime e a marginalidade.

Ver tudo isso, para um professor que queira aprender, ensinar e vice-versa, é uma autêntica lição de vida, daquelas que nunca mais se esquecem. Como muitos outros docentes, também nós passámos por esses bairros, e é acerca de um deles que hoje vos queremos falar.
Um que em termos concretos já não existe como noutras épocas existiu, todavia, pelos sítios onde outrora existia, pairam ainda hoje as memórias do antigamente. Em síntese, é à Curraleira que nos referimos.

A Curraleira era um bairro que se situava num lugar escondido de Lisboa, um sítio onde ninguém ia, e que ficava mais ou menos nas traseiras do grande cemitério do Alto de São João, mesmo nas costas da cidade.

Abaixo uma fotografia da Curraleira de outros tempos. Como se pode ver na imagem, a partir da rua retratada avistava-se lá ao fundo o alto e luxuoso Hotel Sheraton e ao seu lado, o prestigiado edifício Imaviz.


A cidade estava tão perto do bairro e vice-versa, contudo, o bairro era tão longe e distante da cidade como se esta ficasse noutro planeta. De facto, a Curraleira era algures num fim do mundo, para não dizer que era mesmo num outro mundo. Era um sítio que não existia ou que, com exceção dos que lá habitavam, todos fingiam que não existia.

Uma coisa vos dizemos, em Portugal, e em Lisboa mais especificamente, há muitas coisas que não existem porque se faz de conta que não existem.

O olhar que o nosso sistema “político-mediático” dedica aos bairros pobres e degradados é sempre o mesmo, de vez em quando fazem-se umas reportagens e uns comentários acerca das más condições em que as pessoas desses locais vivem, toda a gente se diz muito escandalizada, que não pode ser, que é uma vergonha e que etc e tal, e depois passa-se a outro assunto qualquer e nunca mais ninguém se lembra disso, até à próxima reportagem acompanhada pelos devidos comentários.

A esse propósito recordemos um momento exemplar. Em agosto de 2023, no âmbito das Jornadas Mundiais da Juventude, o Papa visitou o degradado Bairro da Liberdade em Lisboa. Os políticos afirmaram que algo teria de ser feito, os jornalistas denunciaram situações gravosas, as almas piedosas e caridosas condoeram-se das gentes que ali vivem, e ao jantar, à hora dos telejornais, as pessoas em casa exclamaram indignadas, “isto só neste país”.

Passado um ano e meio desse momento, o que acham os nossos leitores, que nesse entretanto foi feito? Apostamos que muitos terão respondido nada, mas não é verdade, algo foi feito. Segundo uma notícia recente do Expresso, agora o Bairro da Liberdade já tem eco-pontos e mais uns quantos sinais de trânsito.


O olhar “político-mediático” sobre os bairros degradados é apenas um misto de indignações várias e supostas boas intenções, que não só nada adiantam, como até atrasam. Na verdade, esse tipo de olhar é tão-somente uma maneira mais fina e sofisticada de se fazer de conta e de se fingir que certos bairros não existem.

O docente que lecione ou tenha lecionado num bairro degradado da cidade, jamais terá um olhar equivalente ao do sistema “político-mediático”, pois ele vê e sente por dentro. É tal e qual como um jornalista e cineasta de uma outra época, que conseguiu ver e dar a ver esses bairros. Falamos-vos de Eduardo Geada, que já foi jornalista, professor, realizador e vice-versa, sendo por vezes uma coisa de cada vez, e noutras ocasiões tudo ao mesmo tempo.

Em 1975 Eduardo Geada realizou um filme intitulado “Lisboa, o direito à cidade”. Recusando o modelo documental usual, que se baseia em depoimentos, entrevistas e acontecimentos emblemáticos, Geada apresentou-nos um olhar mais vasto, no qual a cidade é vista como um palco de uma luta de classes, na qual as classes mais abastadas lutam para que certas realidades não sejam visíveis, e as classes desfavorecidas lutam para serem vistas.

Numa passagem do filme “Lisboa, o direito à cidade”, Geada filma o antigo bairro da Curraleira, entra por ele adentro e sente-o. As imagens que captou baseiam-se num olhar que não tem intenções piedosas nem pretende causar indignações, como as provenientes do atual sistema “político-mediático”. É um olhar que quer mostrar, que aquilo que se finge não existir, existe, aqui ao lado, num bairro da cidade.

Aqui ficam as imagens da Curraleira que existia e que Geada quis que se visse:



Com o decorrer das décadas, foram implementas políticas urbanísticas que praticamente eliminaram a Curraleira do mapa, as barracas foram demolidas e casas novas foram construídas. É certo que hoje em dia, as pessoas que habitam nesse local possuem condições bem melhores  de habitação, do que as anteriores gerações que por lá viviam, mas é também certo, que nesse processo nem tudo foi arrasado, as memórias e o sentido de pertença a essa parte da cidade, à Curraleira, resistiram e sobreviveram.

As gentes eram pobres e simples, mas sentiam o bairro como seu e, por felicidade, esse sentimento não se perdeu. Veja-se por exemplo abaixo, o trailer do filme “As costas da cidade”. Nele antigos habitantes da Curraleira falam do seu bairro, do que nele havia e como nele cresceram. Um dos que falam diz assim: “Gostava de ter nascido na Curraleira, de ter brincado lá. Brincar, brinquei, ia para lá. Sempre tive essa raiz, gostava mesmo de ter nascido lá”:



Com efeito, a Curraleira desapareceu mas não foi esquecida. Uma outra iniciativa cujo objetivo era lembrar o bairro que existia, é um mural criado pela artista Mariana Duarte Santos, que recupera essas memórias, este cuja imagem aqui fica:


O que também não desapareceu foram as lições e ensinamentos adquiridos pelos docentes que passaram pela escola da Curraleira, que já não existe. Quem por lá passou, é capaz de lá ter trazido mais lições e ensinamentos, do que aqueles que para lá levou, e é por isso, que para qualquer professor, é sempre um privilégio passar por uma escola situada num bairro degradado.

Vê-se e sente-se muito, aprende-se a ter um outro olhar sobre o mundo, que não tão-somente o difundido pelo nosso sistema “político-mediático”. Para além disso, fica-se a saber o que são escolas difíceis e o que é ter poucas condições para se trabalhar, aprendendo todas essas lições e retendo todos esses ensinamentos, fica-se também a perceber, que é um privilégio lecionar em escolas sem esses problemas, e que, por comparação, certas contrariedades e adversidades são coisas menores e sem qualquer relevância.

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