Nos últimos anos todos temos ouvido falar da cidade de Kharkiv, por consequência da guerra na Ucrânia. Há muito quem afirme nas TV’s e nos jornais, que a identidade histórica e cultural da Ucrânia é europeia, e que assim sendo, defender esse país é igualmente lutar pelos valores da velha Europa, ou seja, pelos nossos.
Mas se há muito quem tal afirme, há pouco quem se dedique a falar-nos da identidade histórica e cultural da Ucrânia, e a mostrar-nos as afinidades que tem com a restante Europa. Por uns dias, vamos dedicarmo-nos neste blog a falar da Ucrânia. Não da guerra, disso não, pois de tal já há muito quem fale. Queremos sim falar-vos de alguns aspetos surpreendentes, e até fascinantes, da identidade e cultura ucraniana.
A identidade ucraniana está inexoravelmente ligada à Rússia, são mais de mil anos de história conjunta, sendo que, os mais longínquos antepassados dos atuais russos, a tribo Rus, fez de Kiev a sua primeira capital algures no século IX. A própria palavra Ucrânia deriva do russo antigo e significa literalmente a terra da fronteira, ou seja, o lugar onde findava a Rússia e se iniciava a Europa.
Abaixo uma pintura de Apollinary Vasnetsov de 1908, que retrata a Rússia de Kiev, um termo histórico que se refere ao primeiro estado eslavo da Europa oriental, que existiu entre finais do século IX e meados do século XIII.
Feita esta muito simples e breve contextualização histórica, vamos então concentramo-nos em alguns aspetos surpreendentes e até fascinantes da cultura ucraniana. O nosso objetivo é que se perceba, que a Ucrânia é muito mais do que um país assolado pela guerra, é também uma terra que mesmo tendo uma identidade muito ligada à Rússia, tem igualmente particularidades que a tornam muito próxima do Ocidente, ou seja, da Europa.
Pensemos por exemplo em Kharkiv. Temos ouvido esse nome repetido mil vezes nos últimos tempos, mas o que sabemos nós dessa cidade? Sabemos que fica muito perto da Rússia, mas também sabemos que nesse local se desenvolveu um movimento artístico único, que ficaria para a história como a Escola de Fotografia de Kharkiv.
A foto abaixo, intitulada “Alternative”, de 1985, e cujo autor é Evgeniy Pavlov, coloca-nos imediatamente perante algo inusitado e com um significado nada óbvio. Não é fácil tentarmos interpretar o que vemos nessa imagem, e talvez não seja sequer útil. Provavelmente, o melhor é simplesmente olharmos e vermos uma cena que nos remete para a virgem com o menino Jesus ao colo, para os gaseamentos que aconteceram na Primeira Grande Guerra e para pinturas surrealistas.
Qual o significado de tudo isto? Não o sabemos. Sabemos sim que a figura feminina que nos aparece em primeiro plano como que se divide em duas, de um lado parece representar um mundo de paz e misericórdia, com céus limpos e vagas nuvens alvas, do outro lado há nuvens escuras e um sinistro amontoado de corpos. Em certa medida, poder-se-ia ver nesta fotografia uma Ucrânia que anseia pela paz, mas que vive em guerra.
Mas se a fotografia acima tem algo de premonitório, que dizer da que vos vamos mostrar a seguir, também ela da Escola de Kharkiv. Esta intitula-se “Ukraine-Russia/Volleyball”, é de 1992, e o seu autor é Viktor Kochetov, que a criou conjuntamente com o seu filho Sergiy Kochetov.
“Ucrânia-Rússia / Voleibol” de Viktor e Sergiy Kochetov apresenta um monumento de homenagem às jogadoras de voleibol. É uma escultura tipicamente soviética, semelhante a milhares que existiam por toda a URSS. Constatando o frágil estado das estátuas, é difícil acreditar que a fotografia foi tirada um ano após o colapso da URSS.
À luz do que atualmente sucede, a fotografia é uma metáfora involuntária para o conflito ucraniano-russo. Quando foi esculpida, a estátua tinha como objetivo exaltar o valor das bravas jogadoras de voleibol da antiga URSS, e também enaltecer a amizade entre os povos da Rússia e da Ucrânia, uma vez que a figura à esquerda representa uma jogadora ucraniana, e a de direita uma jogadora russa.
É quase irónico, que a fotografia de Viktor e Sergiy Kochetov seja uma imagem que dá a ver, praticamente o oposto da intenção com que a estátua foi esculpida. O que na foto pressentimos é a degradação da relação entre a Ucrânia e a Rússia e, talvez, como esse vínculo se baseava numa falsa pomposidade, através da qual eram glorificados valores que pouco ou nada tinham a ver com a realidade.
Sergiy Solonsky é um outro fotógrafo da Escola de Kharkiv. Ao longo de décadas vimos pinturas, esculturas, filmes e cartazes em que os corpos dos povos da URSS eram elevados à categoria de modelos perfeitos, com Sergiy Solonsky não vemos nada disso.
A estátua na imagem acima (que não a fotografia, que é o exato oposto) das jogadoras de voleibol insere-se nessa tradição de apresentar os corpos soviéticos como heróicos e grandiosos. O exemplo mais célebre dessa prática soviética, é a escultura abaixo, que se encontra num parque de Moscovo.
Ora bem, se a arte Soviética aspirava representar corpos admiráveis, atléticos e magnânimos, Sergiy Solonsky vai representar corpos distópicos, extravagantes e absolutamente estrambólicos.
Na verdade, são dezenas os fotógrafos nas últimas décadas, que em Kharkiv inventaram novas imagens, muitas delas completamente inabituais. Mas ao invés de nos estarem a ler, o melhor é visitarem o site abaixo, que reúne imensas fotografias dos mais diversos autores de Kharkiv, bem como entrevistas, textos e outros documentos e informações.
E pronto, com este texto queremos que quem nos lê tenha vontade de conhecer outras imagens de Kharkiv, da sua cultura e identidade, que não apenas aquelas referentes ao atual cenário de guerra.
Num próximo texto, continuaremos pela Ucrânia, e mais concretamente por Odessa.
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