Se ontem
falámos do esquecimento a que é votado o cancioneiro português, hoje falamos de
“La Chanson Française”, que é uma prática com origem na Idade Média, mas que
resiste viva até ao presente.
Nós não nos
vamos concentrar em tão longo período de tempo, mas tão-somente nos últimos cem
anos, pois só com isso, já temos reportório mais do que suficiente para
apresentarmos as nossas teses.
Digamos que
a Chanson moderna se iniciou em 1930
com Josephine Baker e o tema “J’ai deux
amours, mon pays et Paris”. Logo aí ficaram explícitos os assuntos
preferidos dos cançonetistas e letristas franceses, a saber, as questões
sentimentais e o amor à França e a Paris.
Como
argumentaremos neste texto, a verdade é que as canções francesas não se
perderam com o tempo, muito pelo contrário, ultrapassaram a sua época e renovaram-se
continuamente ano após ano. Vejamos como esse clássico de 1930“J’ai deux amours, mon pays et Paris” é
recriado por Zaz, uma cantora atual, que mescla temas antigos com “gipsy jazz”:
Uma das grandes
virtudes francesas, é saber preservar o que é seu, mas sabendo simultaneamente
dar-lhe um ar moderno e contemporâneo. Pense-se por exemplo no Museu do Louvre.
O edifício onde o Louvre está instalado já há uns séculos, é onde originalmente
esteve o Castelo do Louvre nos séculos XII e XIII. Posteriormente foi ampliado várias
vezes para ser a residência real, o Palácio do Louvre. Após a Revolução
Francesa foi então transformado em museu.
O que tudo
isto significa, é que o Louvre é um dos mais importantes edifícios da história
de França, ainda assim, ninguém teve receio de o renovar dando-lhe um ar
moderno e contemporâneo, e nele instalando duas pirâmides de vidro concebidas
pelo arquitecto japonês I. M. Pei.
Relativamente
às canções, em França faz-se o mesmo que noutras situações, a tradição
renova-se. Vejamos um outro clássico de La Chanson, “Que
reste-t-il de nos amours ?” de 1942.
A canção foi pela primeira vez gravada por Charles
Trenet e fala-nos de amores já extintos e de recordações de dias distantes (Ce
soir le vent qui frappe á ma porte me parle des amours mortes…Et je pense aux
jours lointains).
A canção é um tanto ou quanto doce e melancólica, e enumera o que resta da juventude, apenas antigas fotos, réstias de memórias dos meses de Abril sem compromissos, encontros e velhas cartas ternas (Que reste-t-il de nos amours? Une photo, vieille photo de ma jeunesse. Que reste-t-il des billets doux, des mois d' avril, des rendez-vous? Un souvenir qui me poursuit sans cesse).
O personagem da canção é perseguido “sans cesse” pelas recordações dos
amores da sua juventude, dir-se-ia que envelheceu mal, que o homem jamais
conseguiu ultrapassar os tempos de rapaz em que vivia livre e despreocupado.
Mas se assim foi, o mesmo não sucedeu com a canção “Que reste-t-il de nos amours ?” que
desde 1942 até hoje continua a ser interpretada e a manter a mesma frescura de
sempre. Aqui fica uma versão recente de Julien Doré:
A representante maior da canção francesa é, está
claro, a mítica Edith Piaf. A intérprete teve uma vida atribulada por muitas e
variadas razões, entre outras por causa dos seus sucessivos maridos e amantes.
A lista foi extensa e dela constam gente famosa como o ator Yves Montand, o
pintor Douglas Davis, o compositor Georges Moustaki, o cantor Jaques Pills, o
ciclista Louis Gérardin, o músico Jean-Louis Jaubert e ainda a estrela de
Hollywood Eddie Constantine. Referimos apenas estes para não sermos exaustivos,
uma vez que Edith Piaf era muito dada às artes e letras.
Com 46 anos de idade, Piaf casou-se com um rapaz vinte
anos mais novo, um cabeleireiro, de seu nome, Théo Sarapo. Foi breve a
felicidade dos dois, pois ela morreu pouco tempo depois. Ele também não durou
muito mais, pois também faleceu jovem.
Ainda assim tiveram tempo para juntos gravarem uma
canção que também viria a fazer parte do repertório gaulês, “À quoi ça sert l'amour”. A canção lança
uma grande interrogação, para que serve o amor, e depois apresenta uma série de
respostas para essa questão, como por exemplo, o amor não se explica, é uma
coisa assim que vem não sabemos de onde (L'amour
ne s'explique pas! C'est une chose comme ça qui vient on ne sait d'où et vous
prend tout à coup), e, mesmo quando perdemos o amor que conhecemos, ele
deixa em nós o gosto de mel (Même quand
on l'a perdu L'amour qu'on a connu, vous laisse un goût de miel, L'amour, c'est
éternel).
Sabendo nós dos tantos maridos e amantes de Piaf,
faz-nos todo o sentido que cantasse a Théo os seguintes versos: Mais toi, t'es le dernier. Mais toi,
t'es le premier! Avant toi, y avait rien. Avec toi je
suis bien! C'est toi que je voulais. C'est toi qu'il me fallait! Toi que
j'aimerai toujours! (Tu és o último. Tu és o primeiro. Antes de ti nada
havia. Contigo estou bem! És tu quem eu queria, de quem eu precisava!
Amar-te-ei para sempre!).
A canção “À quoi ça sert l'amour” continua atual como sempre ao dia de hoje, é uma Chanson eterna e deu até para dela se fazer um desenho animado:
Serge
Gainsbourg foi o grande renovador da canção francesa. Ao longo das décadas de
60, 70 e 80 reinventou esse estilo musical, tanto em termos de melodias, como
de poesia.
Em termos
gramaticais o que mais fez foi inventar neologismos impróprios, e metáforas e
analogias inusitadas. Para além disso, introduziu na pura e sacrossanta música
francesa, expressões de língua inglesa.
Como é
sabido, os franceses não apreciam grandemente, que se use termos
anglo-saxónicos, e se não o apreciam ao dia de hoje, há uns anos atrás ainda
menos o apreciavam, era coisa que os irritava e até os escandalizava.
Serge Gainsbourg
intitulou uma das suas mais celébres canções,
“L'Anamour”, uma palavra que
não existe no dicionário e, portanto, intraduzível. Na língua de Shakespeare, os
ingleses optaram por a traduzir por um "Non affair".
Todavia,
para a grande maioria dos fãs de Serge Gainsbourg, “L'Anamour” expressa “Ce récit de l'étrange histoire de tes
anamours transitoires, de Belle au Bois Dormant qui dort.”
Em qualquer
dos casos, em “L'Anamour”emprega
palavras como Boeing, exit, quadrimoteur, photos e uma rima entre l'Asie (a
Ásia) e a antiga marca de rolos fotográficos Asa: “Tu sais ces photos de l'Asie, que j'ai prises à deux cents Asa”.
Aqui fica então a música “L'Anamour” num vídeo em que, logo desde o primeiro momento, podemos ver esse
desejo de modernidade, e permanente atualidade. Claro está que a modernidade da
década de 70 não é a mesma de hoje, mas ainda assim, o desejo está lá. Em
síntese, o giro é ver-se Serge Gainsbourg a sair de casa e a passear-se Campos
Elíseos acima, Campos Elíseos abaixo,
num Renault descapotável, acompanhado pela eterna Jane Birkin, que por acaso
era inglesa:
Poderíamos,
se não tivéssemos mais nada que fazer, continuar a dar-vos exemplos de La
Chanson Française que resistem e fazem parte da vida quotidiana dos
gauleses de hoje em dia. Mas como temos mais que fazer, e também vós, os que
nos leem terão, vamos a um último exemplo, este já do século XXI.
Em 2007,
Christophe Honoré decidiu realizar um filme que, de algum modo, honorasse toda
essa longa tradição de La Chanson Française. A intenção de Honoré não
era só que essa tradição fosse honorada, mas que fosse também atualizada. Assim
sendo, realizou o filme “Les Chansons d´amour”.
A história
não é muito diferente das histórias de Piaf, de Josephine Baker, de Charles
Trenet ou das de Serge Gainsbourg. Em síntese, fala de Paris, de amores e
desamores, como todas as anteriores. Todavia, aqui temos Paris, amores e
desamores mais modernos e contemporâneos. Ele há gays, e ele há “ménage à trois”.
Nesta Chanson temos um rapaz e duas moças. Os três saem de um restaurante
e há ali um certo desentendimento entre o trio, mas, como é típico das cenas
parisienses e de La Chanson Française, lá se acabaram por se entender.
Terminamos então com “Je n´aime que toi”:
Bom, afinal
não terminamos. Como todos os nossos leitores já terão adivinhado, podíamos lá
terminar este texto dedicado à La Chanson Française e
deixar-vos sem falarmos de Jacques Brel. Não, não vos deixaremos sem vos
oferecer pérolas de chuva vindas de países onde jamais chove, se preciso for
cavaremos a terra em busca de ouro e de luz e criaremos um reino onde o amor
será lei e quem nos lê será rei (porventura rainha). “Ne me quitte pas”, assim
como nós não vos deixamos, enfim, é o Brel:
E pronto,
prometemos não vos deixar, cá estaremos em breve para, tal como Brel, vos dizer
“palavras insensatas, que vós compreendereis” (des mots insensés que vous
comprendras).
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