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Que tipo de homem sou eu...

 

Um artista norte-americano do século XX, vendo o tanto e o muito de triste que no mundo em seu redor acontecia, pensou assim para si mesmo: “Que tipo de homem sou eu... sentado em casa, a ler revistas, a ficar furioso e frustrado com tudo, e depois a ir para o meu estúdio para ajustar um vermelho a um azul.”

O nome do artista de que falamos era Philip Guston (1913-1980), que nasceu no Canadá, mas que logo em menino se mudou para Los Angeles, onde passou a sua infância e juventude.
Philip Guston foi um artista que se formou a si mesmo, pois nem o ensino secundário completou e teve apenas uma breve passagem por uma escola de arte. Apesar disso, na década de 50 do século XX já era uma estrela na cena artística nova-iorquina.

Em 1958 o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MOMA) organizou uma exposição que haveria de ficar na história da arte, The New American Painting

A mostra foi pensada para dar a ver à velha Europa a nova arte nascida na América. Uma arte como nunca antes se tinha visto, vibrante, ambiciosa e enérgica como a América, e simultaneamente profundamente pessoal e expressiva.

A exposição The New American Painting foi uma iniciativa épica, tendo percorrido sucessivamente as cidades europeias que mais se interessavam por arte: Basileia, Milão, Madrid, Berlim, Amsterdão, Bruxelas, Paris e Londres.

Foi uma autêntica tempestade e a Europa ficou espantada com a originalidade e a vitalidade artística oriunda de Nova Iorque, e também com o novo estilo a que se convencionou chamar Expressionismo Abstrato.


A exposição incluía artistas tão célebres e decisivos como Jackson Pollock, Mark Rothko, Willem de Kooning ou Barnett Newman, e ainda o já referido no início deste nosso texto, o pintor Philip Guston.

Philip Guston tornou-se tão importante que logo em 1962, o prestigiado Museu Guggenheim em Nova Iorque decidiu dedicar-lhe uma extensa retrospetiva, ou seja, por esses anos o homem estava no auge da fama e do sucesso.

A sua pintura, apesar de abstrata, ou se calhar precisamente por causa disso, tinha qualquer coisa de romântico e lírico. Abaixo uma das suas obras desse período.

Dito isto, no fim da década de 1960, Guston, que andava pelos cinquenta anos de idade, olha para o mundo em seu redor e enche-se de dúvidas sobre se arte abstrata fará sentido perante a violência que o rodeia. 
Nesse tempo, as manifestações racistas do Ku Klux Klan eram um tema recorrente nas notícias, e a guerra do Vietname estava no seu pleno.

Foi nessa ocasião, e em virtude desses e de outros terríveis acontecimentos, que Guston se perguntou: “Que tipo de homem sou eu... sentado em casa, a ler revistas, a ficar furioso e frustrado com tudo, e depois a ir para o meu estúdio para ajustar um vermelho a um azul.”


Tendo-se longamente questionado sobre a validade da pintura abstrata, Guston faz então uma reviravolta na sua carreira artística, e começa a compor obras povoadas por seres inquietantes e grotescos, inspirados pela figura do Klansman (membro do Ku Klux Klan).

Os círculos artísticos nova-iorquinos consideraram a opção de Guston pela arte figurativa como uma traição. Longas amizades foram desfeitas, trocaram-se insultos e o caso até fez títulos de jornais. Na verdade, a controvérsia não se limitou à ilha de Manhattan e às suas imediações, também na Europa a situação provocou grandes polémicas.

Críticos e académicos tinham dificuldade em aceitar que um dos heróis da nova arte, o Expressionismo Abstrato, tivesse abandonado esse estilo e se dedicasse à figuração. A abstração era uma luta e uma causa, e que alguém que tinha sido um dos estandartes desse movimento revolucionário passasse a desenhar e a pintar figuras, era algo de completamente inaceitável, em síntese, uma traição sem perdão.

Philip Guston esteve-se nas tintas para as críticas e retirou-se para a pacata localidade de Woodstock, onde continuou a sua obra. Abaixo “Riding Around”, uma pintura desse período.
Na passada semana, após longos anos de trabalhos de restauro, o mural “A Luta Contra a Guerra e o Fascismo, ou A Inquisição”, pôde finalmente voltar a ser visto. O mural tem cerca de 96 metros quadrados numa parede de 12 metros de altura, situada num pátio interior de um palácio barroco do século XVIII em Morelia, no México.

Corria o ano de 1934 e Philip Guston, com apenas 21 anos de idade, estava no México, mais concretamente na cidade de Morelia. Aí estava para pintar um imenso mural, só que, uma vez o trabalho concluído, teve quase imediatamente de ser tapado porque tinha figuras femininas nuas e uma cruz de pernas para o ar, sendo que, as autoridades eclesiásticas locais não apreciavam grandemente nenhuma dessas duas coisas.

O mural esteve décadas tapado e toda a gente se esqueceu que ele existia. No entanto, e por acidente, enquanto estavam a ser feitos uns trabalhos de manutenção do edifício, o mural foi redescoberto. Aperceberam-se de que havia uma parede falsa e quando a abriram deram conta que lá estava este mural:


Após a descoberta, foram anos de trabalhos de restauro, mas na passada semana, o mural veio novamente à luz, após décadas na escuridão. Olhando para a imagem do mural constata-se que é bastante expressivo, algo clubista, mas de todo em todo não abstrato. De tal se conclui, que Philip Guston só adaptou o estilo abstrato mais tarde na vida e não logo na juventude. Facto que se comprova por um outro mural, este abaixo.


É uma coincidência particularmente feliz, que “A Luta Contra a Guerra e o Fascismo, ou A Inquisição” tenha vindo outra vez à luz neste nosso tempo, cujas semelhanças com a década de 30 do século XX parecem ser cada vez mais. 

É uma coincidência particularmente infeliz, que mais uma vez, tal como fez Philip Guston, que perante o mundo que nos rodeia, os homens tenham de se perguntar outra vez “Que tipo de homem sou eu...”

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