Na passada semana a Assembleia da República aprovou um voto de pesar pela morte da escritora Maria Teresa Horta. O voto não foi unânime porque o deputado Miguel Arruda, que ascendeu ao estrelato mediático por causa de alegadamente ter surrupiado umas quantas malas em aeroportos, votou contra.
Para além de ter votado contra, o dito deputado permitiu-se ainda imitar a saudação nazi, muito embora depois o tenha negado, quem quiser que nele acredite. O facto é que Miguel Arruda fez bem em votar contra, pois a escritora dispensa bem o seu voto.
Na verdade, esse deputado representa exatamente o oposto daquilo que representava Maria Teresa Horta. O Arruda é o típico exemplar do grunho lusitano, um ser que se caracteriza pela sua extrema ignorância, pela total falta de elegância e por dizer alarvices com grande assertividade e convicção.
A escritora, pelo contrário, caracterizava-se por defender as artes e letras, por lutar pela liberdade e por exaltar a beleza dos corpos. Mais do que isso, interveio publicamente e repetidamente em favor das mulheres, para que elas pudessem usufruir da liberdade, pudessem aceder às artes e letras, e pudessem viver plenamente o corpo.
A propósito dessa recente morte, voltou a falar-se durante a passada semana do livro de 1972 “Novas Cartas Portuguesas”, do qual constam cartas, ensaios, poemas e fragmentos da mais variada ordem, em que diversas mulheres falam sobre o seu corpo, e sobre os prazeres e sofrimentos resultantes das suas relações carnais com os homens.
A sociedade portuguesa da época ficou em estado de choque, os textos foram considerados “imorais” e “pornográficos”, a publicação foi proibida e as suas três autoras, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, foram processadas pelo estado e levadas à barra do tribunal.
A primeira audiência decorreu a 25 de outubro de 1973, mas como a justiça em Portugal tem e sempre teve prazos muito alargados, o julgamento não chegou ao fim pois que entretanto deu-se uma revolução e o processo foi extinto.
Há uma passagem do livro “Novas Cartas Portuguesas” que costuma ser bastante citada. Nesse trecho pressente-se uma certa ironia, pois o que subliminarmente nele se diz, é que as mulheres passaram a comportar-se de uma forma livre, mas que essa liberdade é mais aparente do que real:
«[…] a mulher vota, é universitária, emprega-se; a mulher bebe, a mulher fuma, a mulher concorre a concursos de beleza, a mulher usa mini-maxi-saia, ‘hot-pants’, ‘tampax’, diz ‘estou menstruada’ à frente de homens; a mulher toma a pílula, rapa os pêlos das pernas e de debaixo dos braços; põe biquíni; a mulher sai à noite sozinha, vai para a cama com o namorado; a mulher dorme nua, a mulher entende, já sabe o que querem dizer certas palavras, tais como: orgasmo, pénis, vagina, esperma, testículos, erecção, frigidez, clitoris, masturbação, vulva. As mulheres entre elas, na intimidade das retretes de repartições públicas onde estão empregadas, nos recreios dos liceus, nas universidades, nos quartos, nas salas, à porta fechada, até já contam anedotas obscenas, certos pormenores íntimos de cama e em segredo tomam certas liberdades de linguagem, e assim se modernizam, se libertam, se promovem… Eis-nos, pois, irmãs, em plena era da liberdade da mulher portuguesa… […]»
Repare-se que este trecho foi escrito em 1972, há mais de cinquenta anos portanto, contudo, quando o lemos sentimos que poderia ter sido escrito a semana passada. Em nosso entender, a ironia que o texto destila aplica-se perfeitamente aos tempos de hoje.
Claro que desde 1972 para cá houve muito avanços legais e sociais no que à condição feminina diz respeito, no entanto, não é esse o nosso ponto. O que pretendemos dizer é que na atualidade também não se fala pública e abertamente do corpo feminino e dos seus desejos e anseios. Tal como dantes, esse tipo de conversas só são feitas por mulheres “na intimidade das retretes de repartições públicas onde estão empregadas, nos recreios dos liceus, nas universidades, nos quartos, nas salas, à porta fechada…”
Há especialistas que publicam artigos em jornais e revistas, e que dão entrevistas nas televisões, que falam do corpo feminino, dos seus desejos e anseios, todavia, tais são conversas “técnicas”, pois não existem conversas normais sobre tais assuntos durante a refeição, à mesa do café, no elevador ou na paragem de autocarro.
Portugal evoluiu em muita coisa desde 1972 para cá, porém, o que é certo, é que certas conversas continuam a ser tidas atrás de portas. Ninguém imagina que indo com um vizinho no elevador, estando com os colegas de trabalho no refeitório, ou convivendo com a família no jantar de Natal ou no almoço de Páscoa, alguém de repente se ponha a falar sobre “certas palavras, tais como: orgasmo, pénis, vagina, esperma, testículos, erecção, frigidez, clitoris, masturbação, vulva.”
Não é só no elevador ou à mesa de refeição que certas conversas não se fazem, com excepção dos especialistas, temas ligados ao corpo feminino e aos seus desejos e anseios, também não surgem no espaço público, e aparecem muito pouco nas artes e na literatura.
Estamos mesmo em crer, que em 1972 e em anos anteriores a esse, os assuntos relacionados com o corpo feminino eram abordados de uma forma mais aberta do que agora. Veja-se por exemplo a primeira estrofe de um poema de 1968 de Luiza Neto Jorge:
Sendo com o seu ouro, aurífero,
o corpo é insurrecto.
Consome-se, combustível,
no sexo, boca e recto.
Veja-se um outro exemplo, um poema também da década de 60, este de Natália Correia, “Cosmocópula”:
O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso da água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro.
Natália Correia é até um belo exemplo, pois de algum modo os seus escritos reforçam em nós a sensação de que em décadas passadas e mesmo com ditadura e censura, se falava mais abertamente do corpo feminino e dos seus desejos e anseios do que se fala agora.
Em 1968, Natália Correia escreveu o romance “A Madona” onde nos conta a história de Branca, filha única e jovem herdeira de uma certa aristocracia feudal, tendo a sua mãe incentivado-a a estudar e a ir conhecer o mundo. É através desta personagem e das suas vivências, que a autora expõe as castradoras convenções sociais dessa época, sobretudo as relativas ao papel da mulher e ao que é ser-se livre.
Ou muito nos enganamos, ou ao dia de hoje não existem assim tantas mulheres em Portugal, que consigam dizer tão abertamente o que Natália Correia disse nesse livro:
“Eu não vou ficar como elas, amarelecida numa fotografia de piquenique, antepassada de mim mesma. Eu não vou ficar estupidamente feliz num retrato de casamento, um único momento de glória, ao lado de um homem que não conheço, que nunca conhecerei mas que me vai fazer muitos filhos e mandar-me calar quando eu disser asneiras. Eu vou ter as ancas magnéticas, os seios livres, ofertados, os calcanhares vibráteis como cordas, transmitindo o chamamento da minha sede de ser amada e amar na vertigem de ser amada.”
Maria Teresa Horta, Luiza Neto Jorge e Natália Correia eram mulheres que tinham uma voz pública, que apareciam com frequência nos jornais, nas revistas e nas TV’s, e é por assim ter sido, que nós acreditamos que em décadas anteriores à nossa, e mesmo com todos os riscos que tal implicava por se viver em ditadura, se falava com mais à vontade do que se fala agora.
Vejamos um outro caso, agora não no campo da literatura, mas sim no do cinema. Eduardo Geada, cineasta português nascido em 1945 e anda vivo, realizou em 1973 um filme que haveria de fazer história, “Sofia ou a Educação Sexual”.
Temos a sensação, que atualmente praticamente ninguém se arriscaria a ter um tal título, quanto mais atrever-se a abordar esse tipo de temas num filme destinado ao público em geral.
Estamos em 1973, ou seja, e mais uma vez, num período pré-democrático, mas ainda assim, não faltou coragem ao realizador, produtor e actores para fazerem uma película centrada em temas ligados ao corpo feminino e aos seus desejos e anseios. A obra foi proibida e só será exibida depois do 25 de Abril de 1974.
À data muito boa gente vai ao cinema para ver a coisa, só que segundo o próprio realizador em tempos mais próximos de nós: “O sexo, vá lá, é admitido. O pior é o resto: é a ideia transgressora, que continua a assustar. Essa ideia - que ameaça poderes que receiam ser violados - continua a levar com o cutelo em cima.”
Aqui ficam cinco minutos de “Sofia ou a Educação Sexual”. No primeiro minuto e meio só se vê uma máquina de projetar, depois são-nos apresentados dois personagens, Jorge um professor que gosta das mulheres e dos seus corpos, e a jovem Sofia, que regressa de um colégio interno na Suíça, onde passou uns quantos anos. No entanto a sua verdadeira educação só agora se vai iniciar:
Como quem já viu o excerto do filme pôde verificar, Sofia veio da Suíça, regressou a Lisboa, aterrou no aeroporto e ninguém lhe roubou a bagagem, talvez seja por isso este, um filme adequado para o Arruda ver, pois de certeza absoluta que alguma coisa há de aprender e no futuro deixe de ser o grunho que é. Tenhamos fé na função redentora da educação.
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