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A alma de Portugal é caril e arroz chau-chau


A imagem acima é de 1829 e está atribuída a José Maria Gonsalves (exatamente assim, como está escrito), um artista de Goa. O seus desenhos e pinturas são documentos incontornáveis para o conhecimento da arte indo-portuguesa e da história da presença lusitana no Oriente. Este quadro em particular, pode ser visto numa quinta em Sintra, mais à frente neste texto, descobrirão qual.

Recentes sondagens saídas nos jornais, dizem-nos que quase dois terços dos portugueses desejariam que houvesse menos gente vinda da Ásia em território nacional, considerando também, que a atual política de imigração permite uma entrada demasiado facilitada a quem vem desse lado do mundo.

Não raras vezes, quem assim pensa, vê-se a si próprio como um patriota e um defensor da identidade nacional, contudo, a nosso ver, o que provavelmente mais será é um profundo desconhecedor da História de Portugal e da sua alma, de cuja Ásia é uma componente essencial.

Portugal e a Ásia têm uma relação de largos séculos, sendo que, precisamente por causa dessa história cruzada, há bem pouco tempo abriram as portas ao público dois espaços que dão testemunho da riqueza, beleza e intensidade desse encontro. Um desses espaços situa-se em Lisboa e o outro em Sintra.

Comecemos pelo primeiro, que se localiza bem no centro da capital, a uns poucos metros do Chiado: a Casa da Ásia.


A Casa da Ásia apresenta uma extensa variedade de artefactos oriundos das mais diversas regiões do longínquo continente. Há peças chinesas, bem como japonesas, e ainda indianas, tailandesas, nepalesas e de muitos outros locais. Está instalada num antigo palácio que foi totalmente remodelado para agora ser um museu.

Mas não é sobre esse espaço que agora nos queremos alongar, tal ficará para uma outra ocasião. Por ora, aqui fica apenas um vídeo, que é uma espécie de aperitivo para quem quiser ir à Casa da Ásia experimentar saborear os seus exóticos objetos artísticos.



Hoje queremos fundamentalmente centrarmo-nos num sítio em Sintra, a Fundação Albuquerque. Situa-se numa quinta do século XVII, e é aí que foi há pouco aberto um espaço museológico com valiosas e raríssimas peças artísticas asiáticas.

Trata-se de uma preciosa coleção cujas peças foram adquiridas ao longo de seis décadas. O colecionador que o fez chamava-se Renato Albuquerque e era brasileiro. Mesmo sendo nacional do país do outro lado do Atlântico, escolheu Portugal para expor o seu espólio de forma permanente.

Muitas dessas peças já andaram pelos melhores museus do mundo, como por exemplo o Metropolitan Museum of Art (Nova Iorque) ou o Victoria & Albert Museum (Londres), entre muitas outros, no entanto, foi na romântica vila de Sintra que encontraram um poiso definitivo, permitindo-nos assim que seja em Portugal, o local onde se pode apreciar o melhor da cultura asiática.


Se ao longo da história do Ocidente sempre foram a escultura e a pintura os suportes favoritos para a expressão artística, no Oriente os materiais preferidos são outros, a saber, a cerâmica e a porcelana.

A coleção da Fundação Albuquerque alberga obras criadas ao longo de seis séculos, com ênfase na porcelana das dinastias chinesa Ming (1368-1644) e Qing (1644-1912). Todavia, a história inicia-se muito antes dessas dinastias, mais concretamente a partir da dinastia Tang (618-906).

Com efeito, foi nessa já muito distante época que o Budismo e o Islão viajaram da Ásia Central e Ocidental até à China, assim como o vidro e a metalurgia. Tudo por junto, modificaram profundamente a cultura chinesa e, por consequência, a sua arte.


No século XVI, quando os europeus, e nomeadamente os portugueses, começaram a chegar pelo mar, esse facto teve um enorme impacto na cultura chinesa. Muitas das peças que fazem parte da coleção Albuquerque falam-nos dessa fascinante mistura e desse encontro de povos distantes.

São bastantes as cerâmicas da coleção onde vemos representados aspetos da vida quotidiana com hábitos comuns quer a asiáticos, quer a europeus. Mesmo sendo diferentes as culturas, há experiências humanas iguais em qualquer lado do mundo.

O modo como essas experiências se manifestam é distinto, mas seja aqui, seja na China, a arte é sempre um retrato da vida espiritual e religiosa, uma celebração do poder real, económico ou político, uma figuração de ócios e prazeres como a caça, a dança, a música ou o amor, e também um reflexo da natureza e das suas criaturas, como as árvores, as flores, os animais ferozes, os pássaros e os peixes.

Todos estes interesses atravessam a história ocidental, assim como a oriental, e são a prova inequívoca de que apesar das profundas diferenças culturais entre o Oriente e o Ocidente, há experiências humanas comuns que nos unem.


Apesar da Fundação Albuquerque ter uma grande coleção de peças oriundas da China, há outras regiões da Ásia que também são contempladas, como por exemplo o Japão.

Em Sintra pode-se apreciar um precioso biombo Namban da primeira metade do século XVII, sendo que no espaço exterior há também um jardim de inspiração nipónica.


As histórias contadas pelas peças da coleção Albuquerque não se limitam a falar-nos do passado, pois colocam-nos interrogações que são bem do nosso presente. Lançam-nos questões relacionadas com temas como o colonialismo, a globalização, os meios de produção ou a dominação tecnológica. 

Nesse contexto, a Fundação Albuquerque não expõe só peças de séculos passados, mas também de artistas contemporâneos, e muito particularmente daqueles que trabalham em cerâmica ou porcelana. A primeira dessas exposições, é do artista norte-americano Theaster Gates (Chicago, EUA, 1973).

Theaster Gates expressa nas suas obras o poder resultante da combinação de diferentes tradições criativas, mistura a estética da África negra com as tradições cerâmicas chinesa, coreana e principalmente japonesa. Gates põe também em relevo a beleza silenciosa e imperfeita de objetos utilitários, que possuem funções comuns em Portugal, em Goa, na China, em África ou em Chicago.

Em Sintra, para além de obras de Gates, a exposição inclui também um conjunto de peças da coleção Albuquerque, escolhidas pelo artista para conversarem com as suas.


Theaster Gates, através da sua arte, não se limitou a criar peças para serem expostas em galerias e museus. Interveio nos bairros mais pobres de Chicago com criações artísticas que impulsionaram a vida desses sítios, dando a muita gente uma nova esperança e fazendo com que as suas obras constituíssem a base sobre a qual se construíram e renovaram comunidades.

Comunidades, é essa a palavra-chave da obra de  Theaster Gates. Comunidades, ou seja, gente que veio de África, de Goa, da China ou de Chicago, mas que encontram entre todos algo em comum. Comunidades, na verdade foi isso o que mais ficou da grande gesta marítima lusitana, ou seja, as gentes de Portugal perceberam o que têm em comum com as de Goa, com as de Macau, com as do Japão, com as do Nepal e com todas as outras dos mais variados sítios da Ásia. O problema agora é que existem uns quantos patriotas, um tanto ou quanto ignorantes, que não sabem que a alma de Portugal é caril e arroz chau-chau.
Para finalizar, um vídeo em que se mostra a obra de Theaster Gates. 

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