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Aventuras e desventuras da vida de um professor


Não há assim muitos personagens docentes na ficção portuguesa. De vez em quando lá aparece um ou outro numa qualquer série televisiva juvenil, mas tirando isso, é raro. Nalguns casos, as figuras de docente que nos surgem na ficção são assim a atirar para o cómico, como era o caso na série “As lições do menino Tonecas”.


Noutros casos, na ficção nacional, o professor é um personagem bem intencionado que acompanha e se envolve nos problemas dos seus alunos, sejam estes de ordem académica, social ou emocional.

A imagem ficcional do professor como um ser bom, dedicado e empenhado, mesmo que corresponda ao que se passa na realidade, é ainda assim limitada, pois que os professores são outras coisas para além de docentes.
Nesse contexto, tal como toda a gente, também têm as suas frustrações e arrelias, os seus desejos e anseios, amores e desamores e aventuras e desventuras. Como é evidente, as suas vidas cruzam-se com as das escolas, dos colegas e dos alunos, mas cruzam-se igualmente com muitas outras coisas mais.

Abaixo o corpo docente de uma das temporadas da série juvenil “Morangos com açúcar”.


Se genericamente na ficção televisiva portuguesa, os professores aparecem quase sempre unicamente como se fossem seres unidimensionais, ou seja, exclusivamente docentes, na literatura já não é bem assim.

O nosso texto de hoje centra-se precisamente num autor português cujos muitos dos personagens que criou, exercem a função de professor, o seu nome é Vergílio Ferreira, mas para além disso, o escritor foi professor de liceu (depois ensino secundário) durante toda a sua vida profissional.

Abaixo uma foto de 1981 de Vergílio Ferreira com os seus alunos, no Liceu Camões em Lisboa.


Comecemos por falar no romance “Manhã Submersa”, obra de 1954. Na história António Lopes, o personagem principal, é um professor que recorda os seus tempos de criança e jovem, à época em que durante anos frequentou um pequeno Seminário da Diocese da Guarda, junto ao Fundão.

“Manhã Submersa” é um romance sobre educação. Nele se demonstra como a educação das crianças e jovens se baseava num regulamento implacável que impunha a todos respeito, muito sofrimento e um constante sentimento de culpa.

Como escreveu Vergílio Ferreira, nesse paradigma educativo o importante não era o conhecimento ou amar as coisas belas da vida, mas sim inculcar a prudência, a disciplina e a obediência como valores supremos.

O Seminário é descrito como um casarão pobre, frio, com grandes janelas. No rés-do-chão estavam a cozinha, o refeitório e as salas de aulas. No primeiro andar encontravam-se as camaratas, a capela e uma enfermaria há muito destruída durante um qualquer dia de tempestade. No exterior, para o lado de uma encosta, “a fila de retretes, em frente, acocoradas sobre um rego de água”.

O Padre Lino era professor de latim, um homem funesto e agressivo, “de olhares curtos como bicadas”, que era “Meio padre de Deus, meio padre de bruxas e do Demónio”. Era terrível com a palmatória e o Lopes temia-o, receava, diz ele, que “O Padre Lino me desfizesse à pancada”.

O Padre Tomás era o professor de português, pouco simpático pois “que sofria do fígado, malhou neles paternalmente”. Esse docente aparece-nos no romance como uma “vasta sombra que se projecta em todo o seminário, irascível e temível”. Estes dois padres eram ferozes, terríveis e os alunos guardaram deles tristes recordações.

Como consequência da sua educação enquanto criança e jovem, o Lopes tinha em si imensas ânsias de sair dali para fora, de fugir, de se ir embora e de procurar a liberdade. Desejava um outro caminho para si, um que passasse pelo seu desenvolvimento pessoal e pela descoberta da vida e do mundo.


Um outro romance de Vergílio Ferreira, em que o protagonista é um jovem professor, intitula-se “Aparição” e foi publicado em 1959. O nome do personagem central é Alberto Soares, que na narrativa rememora o ano em que deu aulas em Évora, onde foi colocado no liceu da cidade.

Alberto Soares é um ser melancólico e descrente, que entra numa cidade católica, branca e luminosa, com a qual não terá uma relação fácil. É nessa localidade do Alentejo que conhece as pessoas que, de alguma modo, contribuíram decisivamente para que formasse as suas teorias filosóficas sobre a existência em geral, e acerca da sua em específico.
Em Évora conhece a família Moura, cuja casa frequenta. Foi aí que encontrou Sofia, a filha mais velha, com quem manteve uma relação erótica tumultuosa. É igualmente aí onde conhece também as irmãs mais novas, Ana e Cristina.

Sofia sobressai pela sua "loucura e rebeldia", Ana pela sua inteligência e Cristina pela forma mágica como toca piano. Um outro personagem que frequenta a casa dos Moura é Carolino, um aluno de liceu que, consumido por ciúmes, tenta matar Alberto Soares, o seu professor. Não é bem sucedido, mas com essa ação desencadeia uma série de reações cujo fim é trágico.

Alberto e Sofia são como uma aparição um para o outro, cada um deles descobre quem é, qual o seu eu mais íntimo e profundo na relação com outro, contudo, no fim, o mundo em volta acabou por engoli-los e Sofia reflete de um modo entre o desencantado, o maravilhado e o filosófico sobre tudo o que lhe sucedeu:

“Este «eu» solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse «eu» e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo! Reconhecê-lo é dar-lhe razão. Que ignore isso o que ignora que é. Que o despreze e o amordace o que vive no dia-a-dia animal. Mas quem teve a dádiva da evidência de si, como condenar-se a si ao silêncio prisional? Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuitidade deste milagre de sermos. Que ao menos nós lhe demos, a isso que somos, a oportunidade de o sermos até ao fim. Gritar aos astros até enrouquecermos. Iluminarmos a brasa que vive em nós até nos consumirmos. Respondermos com a absoluta liberdade ao desafio do fantástico que nos habita. Somos cães, ratos, escaravelhos com consciência? Que essa consciência esgote até às fezes a nossa condição de escaravelhos.”


Provavelmente, o melhor romance de Vergílio Ferreira será “Para Sempre”, obra de de 2008. Paulo é um homem solitário. Encaminhando-se para o final da sua vida lembra-se de Sandra, a mulher que em tempos amou. Sandra morrera de cancro.
Recorda também Xana, a filha falecida nos abismos da droga. Vem-lhe ainda à memória a sua mãe que há muito morrera, assim como as tias, os padres que o atormentaram no seminário e o tentaram aprisionar com uma religião beata na qual não encontrou resposta para nada.

“Para Sempre” leva-nos pelos momentos marcantes da vida de Paulo, ao tempo em que era um menino triste. Apresenta-nos as suas tias, mulheres beatas e castradoras, avessas a qualquer desordem. Recorda-nos a sua ida para o liceu, que ficava longe da aldeia onde nasceu, e mais tarde para a universidade, já em Lisboa.
Depois fala-nos de Sandra e da distância de que sempre foi feita a sua relação. Casa-se com uma outra mulher, uma filha nasce. Quando a filha sai de casa, marido e mulher acusam-se mutuamente: “Tu é que tiveste a culpa”.

Neste constante deambular entre o presente e o passado, o Paulo velho confronta-se com o jovem Paulo acabado de sair do liceu e a entrar na universidade. Reflete sobre tudo o que viveu e sentiu, as palavras que disse e ouviu e onde estão todas elas agora: “Quantos milhões de palavras eu disse durante a vida. E ouvi. E pensei. Tudo se desfez. Palavras sem inteira significação em si, o professor devia ter razão. Palavras que remetiam umas para as outras e se encostavam umas às outras para se aguentarem na sua rede aérea de sons. Mas houve uma palavra - meu Deus. Uma palavra que eu disse e repercutiu em ti, palavra cheia, quente de sangue, palavra vinda das vísceras, da minha vida inteira, do universo que nela se conglomerava, palavra total. Todas as outras palavras estavam a mais e dispensavam-se e eram uma articulação ridícula de sons e mobilizavam apenas a parte mecânica de mim, a parte frágil e vã. Palavra absoluta no entendimento profundo do meu olhar no teu, palavra infinita como o verbo divino. Recordo-a agora - onde está? Como se desfez?” 


E pronto, por aqui terminamos esta viagem pelas aventuras e desventuras do escritor e professor Vergílio Ferreira. Quem quiser continuar o percurso, mais não tem que fazer do que ler os seus romances. 

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