Foi esta semana anunciado em França, que a próxima aventura de Astérix será na Lusitânia. Desde o início da sua existência, jamais o intrépido gaulês pisou terras de Portugal, vai ser desta vez. Como é evidente, consigo virá o seu eterno companheiro, o valoroso Obelix.
Já há uma capa provisória para este novo álbum, na qual se vê Astérix e Obelix a pisar uma calçada portuguesa.
Não é vulgar que falemos de BD neste blog, acontece por vezes, mas não com muita frequência. Todavia, a 9.ª arte acompanha-nos desde tenra idade, aprendemos muito com ela, e é de uma enorme ingratidão da nossa parte, não lhe dedicarmos mais tempo. Assim sendo, hoje vamos centrar-nos nos nossos álbuns de BD favoritos de sempre.
Apesar de sempre termos achado imensa graça ao Astérix, de entre os personagens de BD mais populares, preferimos o Tintim. É certo que Astérix e Obelix são uns cómicos e que nunca deixam escapar uma oportunidade para largar uma frase irónica ou uma expressão sarcástica, porém, gostamos mais das aventuras do Tintim pois estas têm uma maior densidade, sem com isso nada perderem de comicidade.
A complexidade de Tintim é tanta, que o personagem tem sido acusado de racismo, de anti-semitismo, de sexismo e de outras coisas mais. Há também quem diga que Tintim é homossexual e quem diga que, pelo contrário, é sim homofóbico. Em síntese, teorias não faltam e há-as para todos os gostos, sendo prova mais do que suficiente que o Tintim tem algo de profundo e obscuro.
Independentemente de tudo isso, o certo é que Tintim nos levou de viagem pelos mais exóticos sítios do mundo, isto enquanto as histórias do Astérix se passam sempre no tempo e nos territórios do Império Romano.
Com Tintim fomos aos Andes, no Peru, e conhecemos a civilização Inca. Passamos pela Índia e pelos seus mistérios, vivemos o misticismo do Tibete e inclusivamente chegámos à lua.
Mesmo gostando nós imenso que Tintim nos tenha levado a viajar pelo mundo, o que mais apreciamos é a densidade, complexidade e profundidade presente nas suas aventuras, bem como nos personagens que o acompanham, que nos levam de viagem aos lados mais obscuros da alma humana.
Só a título de exemplo, refira-se os irmãos Dupond e Dupond, personagens que repetem obviedades a todo e qualquer momento, mas que o fazem como se dissessem grandes verdades, que só a eles tivessem sido reveladas.
Se logo de pequenos não tivéssemos conhecido Dupond e Dupond, talvez em adultos não identificássemos com tanta facilidade aquelas pessoas da vida real que só dizendo banalidades, o fazem com uma grande pomposidade.
Se as aventuras do Tintim nos transportam até ao lado profundo e obscuro da alma humana, há outras BD’s que o fazem com ainda maior intensidade, mas não têm o mesmo nível de popularidade.
É esse o caso daquela que muitos consideram a melhor BD de sempre, “Maus” de Art Spiegelman. A história apresenta-nos o autor entrevistando o seu pai relativamente às suas experiências enquanto judeu polaco e sobrevivente do Holocausto. A obra retrata os personagens judeus como ratos, os alemães como gatos, e os polacos como porcos.
Os gatos são os maus, os nazis, os porcos são os que por vezes tiveram uma atitude colaborante com os primeiros, e os ratos são os judeus polacos, que simplesmente foram perseguidos, torturados e mortos, apenas por ser quem eram.
A BD “Maus” começou a ser publicada em 1980 em capítulos numa revista, tendo chegado ao fim em 1991. Depois disso foi publicada em álbuns por todos os sítios do mundo, tendo obtido prémios que até a esse momento só tinham sido atribuídos a obras literárias, como por exemplo, o Pulitzer. A sua influência foi tão determinante que em 1992 o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) dedicou-lhe uma mostra.
A escolha de Art Spiegelman em representar os judeus polacos como ratos, causou alguma perplexidade, contudo, essa ideia veio-lhe do facto de os nazis assim os retratarem.
Na década de 30 do século XX, existiam até nazis que diziam que o Mickey Mouse era instrumento ao serviço do judaísmo, como prova este excerto de um artigo de jornal dessa época: “Mickey Mouse é a ideia mais miserável alguma vez concretizada. Qualquer jovem e honrado rapaz que seja emocionalmente saudável, sabe que o verme sujo e coberto de imundície, o maior portador de bactérias no reino animal, um rato, não pode ser um tipo ideal de animal. Fora com a brutalização judaica do povo! Abaixo Mickey Mouse! Viva a cruz suástica!"
Em síntese, “Maus” leva-nos a viajar pelos abismos da alma humana, pelo mal absoluto, mas por outro lado, também nos provoca emoções tão densas e profundas como compaixão e piedade.
Existe uma outra BD, que apesar do seu personagem ser bastante popular, também se aventura pelos profundos e obscuros desfiladeiros da alma humana, “The Dark Knights Returns”.
O protagonista desta história é o célebre Batman, só que a forma como ele aqui nos aparece é única. O álbum foi laçado em 1986 e o seu autor foi Frank Miller. A cidade onde se passa a história é uma autêntica distopia tecnológica e, em certo sentido, antecipa em décadas os receios que atualmente temos, com o crescente poderio dos grandes aglomerados digitais e com o advento da Inteligência Artificial.
Bruce Wayne, o Batman, tem na história 55 anos, ou seja, já não é o jovem de outrora. As dúvidas existenciais assaltam-no e, apesar de todos o verem como um super-herói, ele sente-se um ser decadente, depressivo e melancólico.
Age ainda em favor do bem, mas há algo de escuro que se move dentro de si que o consome. Dir-se-ia ser um homem desiludido com tudo e com todos, e fundamentalmente consigo mesmo.
Por outro lado, o seu eterno inimigo, o Joker, é agora vedeta da TV, o que faz com que Batman deixe verdadeiramente de acreditar que, “in the end” o bem possa triunfar.
No fundo é como se tudo fosse um entretenimento onde o bem e o mal já não se distinguem e tudo é vivido de modo completamente superficial. Batman interroga-se se também ele, que toda a vida combateu pelo bem, não será apenas mais um mero personagem da indústria do entretenimento, ou seja, se os seus feitos e glórias não foram apenas espectáculos. Essa dúvida atormenta-o ao longo de toda a história de “The Dark Knight Returns”, tornando-lhe a alma obscura e a existência amarga.
Todos vemos aos dias de hoje o que se passa em Israel e Gaza. Contudo, poucos sabemos na verdade o que sentem essas gentes. É certo que vemos nas TV’s os seus dramas, lamentações, desesperos e choros, mas apiedar-se é uma coisa, compreender é outra.
Compreender significa perceber o que vai pela alma doutros, e há BD’s que nos ajudam a perceber muito melhor o que se passa em Israel e Gaza do que qualquer noticiário ou comentário televisivo.
A primeira chama-se “Palestina”, sendo o seu autor Joe Sacco. Se alguém pensa que as imagens jornalísticas da Palestina são terríveis e brutais, mudará de ideias quando ler a BD “Palestina”.
Não que as pranchas e quadradinhos de Joe Sacco sejam excepcionalmente gráficas e violentas, mas sim porque percebemos ao lermos a sua BD os profundos estragos que causam à alma humana aquela situação inumana.
Ainda no que concerne ao médio-Oriente, há uma outra BD que é imprescindível ler, “Crónicas de Jerusalém” de Guy Delisle. O álbum é de 2012 e nele o autor relata-nos a sua experiência de como foi viver um ano em Jerusalém.
O personagem de “Crónicas de Jerusalém” passeia-se pelas ruas dessa cidade, visita as suas ancestrais igrejas, e passa o tempo em esplanadas de café. Ao longo da história, o autor explora questões fundamentais da sociedade, mostrando-nos uma urbe imprevista, e de um modo perspicaz e divertido, mostra-nos um palco de conflitos e paixões, que não é simples de explicar nem fácil de entender sem ser numa BD.
Guy Delisle também foi a um sítio, onde praticamente ninguém consegue ir, à Coreia do Norte. Muito se fala como será esse país, o mais fechado do mundo. Nas TV’s e jornais há raras imagens e, mais ou menos são sempre as mesmas. Mas para além disso, nunca ouvimos o que as pessoas que por aí vivem dizem e nem sequer suspeitamos, os que estamos no ocidente, o que lhes vai pela alma.
Dito isto, há uma obra de Guy Delisle, “Pyongyang”, que nos diz quase tudo sobre como seria viver sob um regime tão autoritário e fechado, como é o da Coreia do Norte. Por sorte, o autor conseguiu viajar para esse país, ver como por lá se vive e relatar-nos numa BD o que viu.
Quem quiser perceber o que é viver numa ditadura extrema, não saber nada do que passa no mundo e como é não ter quase nada, é ler “Pyongyang”.
Podíamos continuar a elencar álbuns de BD que nos mostram o lado mais denso, obscuro e profundo da alma humana, contudo, não queremos ser exaustivos, e cremos que aqueles de que falámos são mais do que suficientes para uns bons tempos.
Terminamos com um dos melhores álbuns portugueses de BD de sempre, “Balada para Sophie”. A história conta-nos a vida de Julien Dubois, um pianista de sucesso. Desencantado e misantropo, vive retirado numa velha casa, tendo por companhia tão-somente um gato e a governanta.
Um dia, Julien recebe a visita de uma jovem jornalista que o incita a contar a sua história . Nas paredes da casa, impregnadas de fumo de cigarro e de memórias, ressoa o relato de uma vida feita de desamor e arrependimento.
Os autores de “Balada para Sophie” são o português Filipe Melo e o argentino Juan Cavia, e o álbum foi editado em 2021 . O que temos são ilustrações de sonho, um prazer para ler, ouvir e desfrutar e uma história imensa...
“Balada para Sophie” é uma BD, que para além de nos levar de viagem pelo lado mais obscuro e profundo da alma humana, leva-nos também a passear pelo seu lado poético e musical. É por isso que Sophie é a nossa heroína…
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