Peggy era uma mulher completamente diferente das do seu tempo. Nasceu em 1898, no seio de uma família de multimilionários norte-americanos de origem judaica, os Guggenheim. O seu pai morreu no naufrágio do Titanic e Peggy viu-se desde cedo dona de uma fortuna imensa. Decide então dedicar a sua existência a colecionar arte, a ir festas excêntricas e ao sexo.
Peggy não era mulher bela, para muitos a sua aparência definia-se pelo grande e carnudo nariz que herdara do seu avô, ainda assim, possuía várias armas de sedução massiva, a saber, dinheiro, cultura, inteligência e carisma.
Durante toda a sua vida adulta, Peggy foi ávida e convictamente promíscua. Entre os seus muitos amantes, conta-se gente tão importante como o autor de “À Espera de Godot”, o escritor irlandês Samuel Beckett, o pintor surrealista Yves Tanguy, o fundador da arte contemporânea, o famoso criador Marcel Duchamp e, por um breve período, o músico norte-americano John Cage, autor da peculiar composição para piano “4’33”, cuja duração é de quatros minutos e trinta e três segundos, durante os quais não se ouve uma única nota musical e apenas se escuta o silêncio.
Peggy esteve ainda casada com o pintor surrealista alemão Max Ernst, tendo o matrimónio durado quatro anos. Consolou-se do desgosto pela união desfeita, convivendo com uma longa série de outros amantes, para além daqueles cujo nome já destacámos.
Peggy era uma mulher valente, aqui a vemos na imagem abaixo, feliz e contente da vida, refastelada ao sol, no terraço da sua casa de Veneza.
Em 1942 o mundo estava em guerra. Peggy preferia viver na Europa, todavia, na altura a América era mais segura, sobretudo para alguém como ela, de origem judia. Peggy andava então por Nova Iorque sem nada de especial para fazer, por consequência disso, decidiu fundar uma galeria de arte, à qual deu o nome Art of This Century. Foi um momento que ficou para a história.
Na galeria Art of This Century, Peggy expôs muitas das obras da sua coleção, que incluía coisas estranhíssimas, às quais o público norte-americano não estava habituado. Durante vários anos, Peggy mostrou à América arte cubista, abstrata e surrealista, expondo também trabalhos de muitos jovens americanos à época desconhecidos, gente como por exemplo Jackson Pollock, Mark Rothko ou Clyfford Still.
Peggy foi uma pioneira da arte moderna, no entanto, não se ficou por aí. Em 1943, na sua galeria Art of This Century, em Nova Iorque, organiza a primeira exposição dedicada exclusivamente ao trabalho de mulheres artistas. Com o título Exhibition by 31 Women, Peggy pretendeu dar destaque a obras de mulheres artistas, que ela considerava não terem a devida visibilidade.
As artistas expostas por Peggy eram quase totalmente desconhecidas, e entre as trinta e uma mulheres presente nessa mostra do ano de 1943 em Nova Iorque, encontram-se nomes hoje muito conhecidos como Frida Kahlo, Leonora Carrington ou Maria Helena Vieira da Silva.
O mundo dá muitas voltas, e volta não volta, também passa por Portugal. Mais de oitenta anos depois de ter sido exibida em Nova Iorque, a exposição Exhibition by 31 Women é agora recreada tal e qual a original de 1943, na capital da nossa nação, Lisboa.
Aqui fica a folha de sala da mostra atualmente presente no Centro Cultural de Belém, que em português se chama “31 Mulheres. Uma exposição de Peggy Guggenheim”:
Finda a guerra, Peggy não foi de modas e fez o que há muito queria, partiu de vez para a Europa. Adquiriu um palácio em Veneza, mesmo à beira do Grande Canal, e mudou-se de armas, artes e bagagens para essa cidade, trazendo consigo toda a sua coleção.
Nas fotos que antes apresentámos, é precisamente nesse seu novo lar, que haveria de ser o de todas as suas restantes décadas de vida, onde a vemos banhando-se ao sol no terraço de casa.
O imóvel que Peggy adquiriu foi o Palazzo Venier dei Leoni, um edifício projetado pelo arquiteto Lorenzo Boschetti em 1749, mas que nunca foi totalmente terminado. Em Veneza é conhecido como o palácio inacabado, e mal o teve na sua posse, Peggy decidiu fazer-lhe uns pequenos acrescentos e umas quantas alterações. Para isso, trouxe para Veneza um mural de Jackson Pollock, dando assim um outro brilho à sua sala de estar. Abaixo uma foto do homem com a referida obra.
Mesmo tendo Peggy armas e artes de sedução massiva, Pollock resistiu aos seus libidinosos avanços, ter-lhe-á dito que “he would make love to her only if she were covered up with towels”. Ficaram amigos na mesma, pois Peggy era uma profunda admiradora do trabalho de Pollock, tendo-lhe encomendado depois disso muitos outros quadros.
Quem ficou seduzido por Peggy, mas num outro sentido que não o libidinoso, foi o governo italiano e a autarquia de Veneza. Ambos ficaram deliciados pela rica, carismática, inteligente e culta Peggy, se ter vindo instalar conjuntamente com a sua coleção na cidade veneziana.
Desde o século XIX, que o estado italiano organiza a mais prestigiada e antiga bienal de arte do mundo. Foi em 1895 que aconteceu a primeira “Esposizione Internazionale d'Arte della Città di Venezia”, que desde esse ano decorre num imenso e lindo jardim, onde largas dezenas de países têm o seu próprio pavilhão, para aí, de dois em dois anos, exporem os seus melhores artistas.
Nos jardins da bienal podemos encontrar belos edifícios, como por exemplo este abaixo, o Pavilhão do Japão…
…ou também este, o Pavilhão da Rússia…
…ou ainda mais este, o Pavilhão Crioulo…
…e por fim este, o dos países nórdicos.
Em 1949, foi nesses jardins da bienal, com Peggy a instalar-se em Veneza, que as autoridades italianas a decidiram tratar como se ela fosse um país. Nesse contexto, arranjaram-lhe um pavilhão para ela expor a sua coleção.
Durante os meses em que durou a bienal desse ano, o Pavilhão de Peggy foi o mais visitado de todos. Dezenas de milhares, vindos de várias partes do mundo, foram seduzidos pelas suas obras de arte.
No pavilhão de Peggy havia 136 obras de 73 artistas diferentes, que incluíam movimentos artísticos desde o Cubismo ao Surrealismo, sendo essa a primeira vez, que na Europa, obras de gente como Jackson Pollock, Arshille Gorky ou Mark Rothko foram exibidas.
Abaixo, Peggy Guggenheim, como se fosse um chefe de estado, a receber Luigi Einaudi, então Presidente de Itália, na abertura de sua exposição na Bienal de Veneza, em 1949.
Finalizada a bienal, a coleção foi para casa, para o palácio junto ao Grande Canal. A partir de 1951, Peggy decidiu abrir a sua casa e a coleção ao público em geral, várias tardes por semana, durante os meses de primavera, verão e início de outono.
Peggy faleceu aos 81 anos, em 23 de dezembro de 1979. As suas cinzas estão depositadas num canto do jardim da sua casa veneziana. Desde então, a Coleção Peggy Guggenheim abriu-se a todos, tendo a casa sido transformada num grande museu, que através da arte, seduz diariamente gente vinda de todo o mundo
Quem quiser saber mais sobre a vida de Peggy em Veneza, pode ler um artigo do jornal britânico The Guardian, intitulado “Sex and art by the Grand Canal: how Peggy Guggenheim took Venice”:
Quem porventura tiver ficado mesmo completamente seduzido pela vida de Peggy, poderá dedicar-se a uma leitura mais longa, ou seja, ao livro “The Unfinished Palazzo: Life, Love and Art in Venice”.
Como antes dissemos, o mundo dá muitas voltas e quem habita agora o palácio de Peggy, são as pinturas de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992). Durante a presente primavera e ao longo do próximo verão, apresenta-se em Veneza, na casa que outrora foi de Peggy, a exposição “Anatomia di uno spazio”, mostra na qual estarão expostas cerca de setenta das principais obras da artista portuguesa.
O jornal italiano L’Espresso num artigo dedicado à exposição intitulada “VIEIRA DA SILVA, LA POETESSA DEGLI SPAZI”, cita a artista: “Penso di aver vissuto tutta la mia vita nei labirinti. È il mio modo di vedere il mondo”. Mais à frente, no mesmo artigo, diz-se assim: “L’opera di Vieira da Silva si sviluppa tra astrazione e figurazione, ed è fortemente legata all’idea di spazio come entità viva e mutevole. Le sue tele, fatte di strutture labirintiche, ritmi cromatici e prospettive spezzate, trasformano l’architettura e il paesaggio urbano in visioni interiori, dove il confine tra realtà e immaginazione si dissolve”.
Em português não soa tão bem, mas ainda assim, aqui fica uma possível tradução: “A obra de Vieira da Silva desenvolve-se entre a abstração e a figuração, e está fortemente ligada à ideia de espaço como entidade viva e mutável. A suas telas são feitas de estruturas labirínticas, ritmos cromáticos e perspectivas quebradas, transformam a arquitetura e a paisagem urbana em visões interiores, onde a fronteira entre a realidade e a imaginação se dissolve.”
Vieira da Silva era uma mulher tranquila e pacata, pouco ou nada dada a aventuras e festas, quase o exato o oposto de Peggy, porém, cremos que as suas obras de arte são armas de sedução massiva suficientemente potentes, para encantar todos os venezianos e demais italianos. A ver vamos...
Nesse entretanto, aqui fica um breve vídeo, o teaser da exposição “Anatomia di uno spazio”:
Terminamos com uma vista do Grande Canal, em Veneza, quadro que faz parte da coleção do Museu Calouste Gulbenkian em Lisboa:
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