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Nesta Páscoa, época de reuniões familiares, sejamos anti-famílias (mas em abstrato)


Nós nada temos contra nenhuma família em concreto, nem sequer contra a nossa em específico, temos sim muito, contra o uso abusivo que se faz do conceito abstrato de família.

É próprio da época pascal que as famílias se reúnam, que as gentes vão à terra, que haja mesas fartas e comezainas à larga, até aí, tudo bem. 

Por cá, os valores familiares são muito populares e bastante acarinhados, mas no mundo político-mediático faz-se deles um uso, que nos irrita. Assim sendo, vamos contra-corrente e lançamos nesta Páscoa algumas dúvidas sobre o quão benignas são efetivamente as famílias, mas isto em termos de conceito abstrato, claro está.

Com excepção dos muitos que não suportam a sua própria família, toda a gente gosta da sua família. Mas mesmo quem não aprecie particularmente a sua família, ainda assim lá vai fazendo uns sacrifícios de vez em quando para ir vendo a parentela, sobretudo em festas de aniversário, no Natal e na Páscoa.

No entanto, gostar ou não se gostar não é aqui o nosso ponto, como já dissemos, o que nos move neste texto é o conceito abstrato em si e o uso que dele se faz no mundo político-mediático e na sociedade em geral.

Não há dia nenhum em que liguemos a televisão para ver notícias, e logo não ouçamos alguém a jurar a pés juntos, que tudo fará para melhorar a vida das famílias. Com a mesma inusitada frequência, há sempre uma reportagem sobre como vai ser a vida das famílias caso desçam ou subam as taxas de juro, ou sobre como estas se aguentarão face à inflação, ou quanto pagarão de IRS, ou quais serão os seus destinos de férias, ou sobre o que pensam acerca deste assunto, daquele e mais daqueloutro. Em síntese, o conceito abstrato de família dá para tudo e mais um par de botas.


Não queremos ser sérios, longe de nós termos tal intenção, todavia, vimos nas notícias que a maior parte dos abusos sobre crianças e jovens, acontecem no seio das respetivas famílias. Com uma enorme regularidade, vemos nas TV’s certos grupos sociais e políticos mais conservadores sempre com a palavra família na boca, contudo, quando saem notícias deste tipo, aí nem um pio.

Como dissemos, não queremos ser sérios, vamos por isso aligeirar a conversa e deixar de parte tão tristes notícias. O que na verdade nos irrita é esta ideia de que “a família” é o conceito essencial pelo qual uma sociedade se deve reger. A nosso ver, não é, é tão-somente um conceito entre muitos outros.

Ponhamos um exemplo em concreto, que é o que mais nos interessa. De há uns anos a esta parte, não raras vezes ouve-se por aí dizer, que as famílias têm o direito de decidir que educação escolar querem para os seus filhos. Tal noção parece ter-se estabelecido como sendo uma verdade absoluta, quando na realidade é tudo menos isso.

Só para abrir a conversa, citemos um recente artigo de um prestigiado colunista do jornal Publico, António Guerreiro: “Os pais já entraram demasiado na escola, já lhes foi concedido o direito de se sentirem legítimos habitantes dessa casa cujo ideal fundador é pô-los à distância.”

A citação é só para dar o tom e se perceber que nada é menos óbvio, do que as famílias terem direito a escolher que educação escolar querem para os seus filhos. Vejamos o que nesse contexto acontecia no berço da civilização ocidental, a Grécia antiga. Para isso recorramos a Platão, o primeiro que se pôs a pensar sobre o que é a educação.

No sua mais célebre obra, “A República”, Platão diz-nos que na cidade ideal por si concebida, a educação ficaria exclusivamente ao encargo do Estado, não tendo nela as famílias a menor participação. O Estado seria o único responsável por educar os indivíduos, direcionando-os para as atividades mais adequadas ao seu tipo de alma.

Platão propõe que todos os indivíduos recebam uma educação geral baseada nos valores da cidade, sendo que com tal, moldaria o caráter de cada um dos alunos, de modo a que estes tivessem plena consciência de qual o seu papel dentro da sociedade. Assim sendo, a partir dos dez anos de idade, as crianças ficariam a cargo do estado, de modo a que os progenitores não as deseducassem e pudessem evoluir e crescer de acordo com os seus dons, e com os nobres e altos ideais da cidade.


Ao contrário do que se possa pensar, as ideias de Platão no que à educação diz respeito, não se limitaram a ser platónicas, e houve muitas e diversas tentativas de as aplicar, umas vezes com mais sucesso, outras nem por isso. No entanto, o ponto a reter, é que desde os primórdios da civilização ocidental, houve uma clara noção, que não competia às famílias dar bitaites sobre a educação escolar das suas crias.

É claro que as famílias não só têm o direito, como até têm o dever, de acompanhar as vidas escolares dos seus filhos, mas daí às escolas terem de se reger por aquilo em que as famílias acreditam ou querem, vai uma enorme distância.

Esta atual crença de que as famílias têm o direito de escolher, que educação escolar querem para os seus filhos, é relativamente recente e, a sua configuração contemporânea tem origem nos Estados Unidos da América.

No ano letivo de 2023/24 verificou-se que nas escolas públicas norte-americanas há mais de 10.000 livros proibidos, isto porque cada um deles ofende os valores desta ou daquela família. Há de tudo, desde clássicos da literatura, passando por BD’s e por livros que tenham a mínima referência a questões sexuais ou raciais, sendo que, nalguns sítios, até a Bíblia foi proibida. Em síntese, qualquer família pode sentir-se ofendida com um livro presente na biblioteca escolar e por assim ser, requerer que esse seja banido.


Nos Estados Unidos da América, as famílias conseguiram ter um peso decisivo na educação escolar dos seus filhos, mas que valores familiares trazem muitas crianças e jovens norte-americanos para dentro das escolas?

Vejamos uma estatística surpreendente, pelo menos para nós. Fomos consultar alguns dados e ficámos espantados. Vejamos dois factos absolutamente assombrosos. O primeiro deles é que desde 2020, a cada dia, em média, praticamente uma dezena de crianças ou jovens (dos 0 aos 18 anos de idade) morrem em consequência da violência armada.


O segundo facto assombroso, é que desde 2020, as armas de fogo são a principal causa de morte entre crianças e jovens nos Estados Unidos, superando qualquer outro tipo de motivo, como por exemplo, doenças ou acidentes.


Comparem-se agora os números dos Estados Unidos com os de alguns outros países da OCDE, nos quais as famílias não têm tanto poder, nem de perto nem de longe, no que concerne à educação escolar dos seus filhos:


Se acrescentarmos a estes dados, o facto das armas usadas nestas matanças serem propriedade das famílias, a conclusão é por demais evidente, ou seja, muitos dos valores familiares devem ser deixados à porta da escola.

Há muito quem na América defenda que as escolas devem ter detectores de metais, mas talvez fosse mais útil, as escolas norte-americanas terem à entrada detectores de valores familiares.

E posto isto terminamos por aqui esta nossa diatribe contra o conceito abstrato de família, tal como ele é usado pelo mundo político-mediático e igualmente por certos sectores mais conservadores da nossa sociedade.

Findamos com um conhecido poema do grande poeta inglês, Philip Larkin (1922-1985):

They fuck you up, your mum and dad.   
    They may not mean to, but they do.   
They fill you with the faults they had
    And add some extra, just for you.

But they were fucked up in their turn
    By fools in old-style hats and coats,   
Who half the time were soppy-stern
    And half at one another’s throats.

Man hands on misery to man.
    It deepens like a coastal shelf.
Get out as early as you can,
    And don’t have any kids yourself.

P.S. - A foto de capa deste texto é de Philip Larkin em criança.

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