Será que a série de TV “Adolescência” se destina à juventude, ou é tão-somente para pregar um susto a pais e professores?
Muito se tem falado por esse mundo fora da série “Adolescência”. De repente, toda a minha gente ficou em pulgas, assustada com o que os adolescentes supostamente andam por aí a fazer. Subitamente, as mentes iluminaram-se e constataram que os smartphones são um perigo terrível.
Pais, avós, tios, padrinhos e demais parentela, oferecem alegremente aos adolescentes, isto quando não logo a crianças de tenra idade, os melhores smartphones à venda no mercado, quer por altura de Natal, quer nos seus aniversários, e agora, assim como de improviso, ao assistirem à série televisiva “Adolescência”, ficaram todos aturdidos.
O espanto é tanto, que o governo britânico até decretou que a série iria ser exibida nas escolas. É uma medida preventiva, tipo assim como se fosse uma vacina contra a varicela.
Tudo isto a nós, que ainda não vimos a dita série e nem sequer usamos smartphone, parece-nos ser algo exagerado. Apetece-nos citar o poeta Manuel António Pina: “Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde”.
Ao dia de hoje, o jornal espanhol El Pais, apresenta como tema de reportagem, um assunto que parece não interessar a muita gente, ou seja, o que pensam afinal os adolescentes reais acerca dos adolescentes ficcionais da referida série.
Vejamos o que dizem uns quantos miúdos espanhóis, que frequentam atualmente o ensino secundário. Um deles fala-nos de amplificação propositada dos problemas existentes com o intuito de fidelizar audiências, “Es muy anglosajona y exagera para mantener el interés…”, um outro relativiza a situação, “La violencia no es tan grave ni tan generalizada como se muestra, pero aquí que se peguen dos chicos en el patio es hasta normal”, há um que define qual o público-alvo da série, ”Es un fenómenos de los padres, que no ha llegado tanto a los hijos adolescentes”, e um outro concorda com isso, “Sí, es más para los padres, para los adultos…”, por fim, há também uma rapariga que gosta de ver o que os influencers dizem, mas que está consciente que são “burradas” e não coisas que se levem a sério, “En las redes yo he visto, por ejemplo, un vídeo de dos hombres hablando de que las mujeres tienen que estar en la cocina. Te quedas viéndolo hasta el final a ver si suelta una burrada más”.
Aqui fica uma foto do grupo de estudantes e do professor, durante o debate sobre a série 'Adolescência' numa escola de Valência.
O que as opiniões destes adolescentes nos mostram, é que se calhar, na vida real, não se passa exatamente o mesmo que acontece na série. É evidente que o uso excessivo dos smartphones não será uma coisa lá muito saudável e poderá até ser perigosa, mas daí a pensar-se que a adolescência caminha para o apocalipse do qual tem de ser salva o quanto antes, vai uma grande distância.
Uma das poucas vantagens de se ir envelhecendo, é saber-se que de vez em quando estamos a assistir a reprises e nos perguntarmos onde é que nós já vimos isto. Na verdade, a perdição da adolescência é um filme que está continuamente a repetir-se. A juventude está sempre perdida, até que começa a crescer, se torna adulta, arranja um emprego e tem filhos. Filhos esses, que atingindo a idade da adolescência, estão por sua vez perdidos e assim sucessivamente até ao fim dos tempos.
Temos idade para nos recordarmos, que no nosso tempo de adolescentes ver televisão fazia mal à vista, que ler banda desenhada era estupidificante, que os jogos de computador alienavam as mentes, e que com tudo isso por junto, a juventude dessa altura estava definitivamente condenada. No entanto, muitos anos depois, aqui estamos, quase na terceira idade.
Décadas antes de nós sermos jovens, já outros jovens anteriores a nós estavam desgraçados, nós não vivemos esses tempos, mas lemos sobre o que então sucedeu. Nessa época, já um tanto distante, era o Rock and Roll que iria destruir a juventude. Há muitos estudos e livros sobre isso, um dos melhores é “The Devil’s Music”, que até à presente data não tem tradução portuguesa.
Manuel Fernández Navas é professor de Didática da Universidade de Malága, viu a série e gostou, depois pôs-se a refletir sobre as reações que a mesma provocou, e foi nessa ocasião que lhe começaram a surgir umas quantas dúvidas.
No seu entender, relativamente à série, “uma análise superficial do que estamos a ver, sem recorrer a conceitos educativos, pode ser mais prejudicial do que benéfica para as famílias, os professores, os alunos e a sociedade em geral.”
Na perspectiva de Manuel Fernández Navas, poderá haver uma tentação de responder de forma reacionária às questões levantadas pela série. Tentação essa que consiste em reagir de um modo impulsivo e autoritário, proibindo os ecrãs per se, exigir mais disciplina, autoridade dos professores e apertada vigilância.
Citemos o professor Navas: “Como tentava explicar, o visionamento superficial desta série é suscetível de ser até, em algumas ocasiões, contraproducente. Enquanto a via, não pude deixar de me colocar na pele e na perspetiva educativa de algumas famílias e de alguns professores que aderem aos discursos mais reacionários da educação. Destas perspetivas, a conclusão a que se chega quase diretamente ao ver a minissérie é uma velha conhecida: é preciso mais disciplina. Controlar o que os alunos estão a fazer a todo o momento, proibir toda a tecnologia, ser duro com as infrações. Nada de distrações para, individualmente, aprender a lição, fazer alguns exercícios do manual e depois reproduzi-la o mais fielmente possível num exame.”
Em boa verdade, sabemos que a série, e mesmo não a tendo nós ainda visto, apresenta uma ideia de escola como um sítio onde só se dá a matéria. Num dos episódios vê-se que a primeira hora é dedicada à Língua, e estudam-se sintagmas, na segunda hora temos a Matemática, e leciona-se as raízes quadradas, e na terceira, o Francês. É uma ideia restrita de escola a que está aqui presente, havendo inclusivamente uma cena em que o filho do polícia lhe explica como foi o seu dia de escola e o pai lhe diz para falar com ele em francês.
Nesse contexto, nessa ideia restrita de escola, ou seja, a que serve exclusivamente para dar a matéria, a escola vive totalmente à margem de todas as questões vitais pelas quais os adolescentes regem as suas vidas e modelam o seu pensamento, e vive também à margem dos problemas do mundo atual.
O objetivo da escola, agora como sempre, deve ser o de que os alunos apreendam conhecimentos de diversas disciplinas, para que estes os ajudem a conhecer, a pensar e a construir o mundo em que vivem e viverão, e também quem neles são e querem ser. Caso assim não seja, a escola só dá matéria morta, daquela que se enterra em testes e exames.
Há docentes na série que dizem coisas como “eu venho dar a matéria, a educação dá-se em casa” ou “sou professor, não sou assistente social ou psicólogo”. Compreende-se assim, que existam enormes problemas de convivência e educação na escola da série, pois que nunca são tratados, uma vez que não são a matéria.
Posto isto, aqui fica o artigo do Professor Manuel Fernández Navas, em que ele nos fala de tudo isto. É um texto extenso, mas cremos que vale a pena lê-lo do princípio ao fim:
Quanto aos pais e professores que ficaram assustados com que viram na TV, talvez não fosse má ideia conversarem com os adolescentes acerca do que se passa pelo mundo e do que lhes vai na alma.
Talvez também, ao invés de os pais lhes oferecerem smartphones e dos professores lhes darem apenas a matéria, ambos os pudessem levar a ver filmes, museus, palácios, castelos, teatros ou então, pura e simplesmente levarem-nos a passear pela cidade ou pelos campos, para que os adolescentes sentissem o vento, vissem as gentes nos seus afazeres, as nuvens lá no alto, o rio que corre para o mar e tudo o mais que faz com que a vida real seja muito mais bela e fascinante do que a dos ecrãs.
Que a vida real é muito mais bela e fascinante que a dos ecrãs, que sair de casa e ir para a rua é bom, se calhar são coisas que se alguém alguma vez lhes disse ou demonstrou, os adolescentes parecem já ter esquecido, urge por consequência mostrar-lhes e dizer-lhes outra vez.
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