Um dos mitos fundadores da cultura ocidental é o de Penélope, a esposa de Ulisses, mulher que aguarda pacientemente pelo regresso do seu homem da Guerra de Tróia, durante largos anos. Enquanto espera, Penélope tece.
Penélope tece, para logo em seguida desfazer o que antes teceu. Na verdade trata-se de um ardil. Tendo Ulisses há muito ido para a Guerra de Tróia e decorrido já bastante tempo desde a sua partida, todos querem que Penélope escolha um noivo, pois já não seria previsível que o seu marido regressasse. Todavia, ela resiste, crê firmemente que Ulisses voltará.
Os anos passam e de Ulisses notícias não há, nem sequer se sabe se vivo ou morto estará. O pai de Penélope pressiona-a para que se volte a casar, mas Penélope, fiel ao seu esposo, recusa.
Diante da insistência do pai, Penélope decide então aceitar a corte dos seus pretendentes, estabelecendo porém uma condição, a de que o novo casamento somente aconteceria depois que ela terminasse de tecer um sudário para Laerte, o pai de Ulisses. Durante o dia, quando todos a viam, Penélope tecia, à noite, secretamente, desfazia todo o trabalho antes feito.
“Penélope” — um poema de Sophia:
Desfaço durante a noite o meu caminho.
Tudo quanto teci não é verdade,
Mas tempo, para ocupar o tempo morto,
E cada dia me afasto e cada noite me aproximo.
Poder-se-ia dizer que Penélope é um símbolo de quem tece, de quem entrelaça linhas ou fios repetida e alternadamente, construindo assim uma trama ou estrutura. No entanto, Penélope é mais do que isso, é na verdade um símbolo de quem faz e logo desfaz. As tramas e estruturas que tece e entretece só são por um breve momento, para desde logo o deixarem de ser.
Fazer, desfazer e voltar a fazer é parte da condição humana, condição essa, que no fundo, é essencialmente um constante recomeço. As aranhas parecem estar convencidas que tecem firmes teias, todavia, mesmo um leve sopro, uma suave brisa, chega por vezes para as desfazer.
Sendo as teias de aranha tão frágeis, pensar-se-ia que são inofensivas, porém, para os seres que nelas se deixam enredar, são praticamente mortais. As teias de aranha são também assim uma bela metáfora para a condição humana, pois não raras vezes deixamo-nos emaranhar em situações que quase nada são, mas cujos leves fios nos prendem de tal forma, que acabamos por não nos conseguirmos libertar e terminamos por ser vítimas das circunstâncias.
Talvez seja disso que a artista Louise Bourgeois nos fala nas suas obras de arte, sendo que muitas das quais retratam aranhas que parecem capazes não de tecer leves fios, mas sim autênticas prisões com grades de duro ferro.
Ana Hatherly, é uma outra artista cuja obra é feita de emaranhados. Só que, no seu caso, as linhas que tece não parecem ser mortíferas, mas sim letras e frases cujo significado nos é desconhecido.
Digamos que, em Ana Hatherly as teias são benignas, ou seja, são tramas e estruturas por decifrar e não redes malignas onde fenecer. O entrelaçado de Hatherly não é um local do qual se possa dizer, que quem nele cai, tem o destino traçado, são antes linhas e traços que não nos encerram, que não nos prendem, mas sim que nos sugerem caminhos que se prolongam para lá do emaranhado.
Se olharmos bem para a gravura abaixo, vemos que na sua parte superior tudo é muito denso, mas que à medida que vamos descendo o olhar, tudo se vai deslindando. Podemos adivinhar, que se a gravura se prolongasse mais para baixo, nós iríamos deparar-nos com um espaço em branco, onde livremente poderíamos começar a tecer as nossas próprias teceduras, estruturas e tramas.
Se a tecedura de Hatherly não se nos apresenta como fatal, como a de uma aranha, menos ainda se nos apresentam as tramas e estruturas tecidas pela pintora Vieira da Silva. Nesta artista tudo é benigno, nada aqui nos sugere mortais teias nem linhas e traços que são grades. Muito pelo contrário, as suas tramas e estruturas como que nos libertam o olhar, permitindo-nos ver muito para além das figuras que traçam.
Em certo sentido, é como se nas obras de Vieira da Silva conseguíssemos ver para além de tudo o que é visível. É como se o nosso olhar não estivesse preso e limitado ao que é real, e se conseguisse ver para lá de tudo o que se vê, ou seja, é como se na sua pintura vislumbrássemos uma estrutura que se nos apresenta como uma espécie de infinito em permanente metamorfose.
Não por acaso, o Museu Vieira da Silva situa-se no edifício onde antigamente existia uma fábrica de seda, e onde os bichos da dita continuamente teciam os seus casulos e neles se metamorfoseavam.
Também os casulos e a subsequente metamorfose que neles se dá, são uma metáfora da condição humana. Com efeito, é quando nos recolhemos no interior de nós mesmos, que descobrimos que temos engenho e arte para nos transformarmos.
É precisamente esses momentos de recolhimento, que muitas das esculturas de Rui Chafes parecem retratar. Pressente-se nas suas obras um anseio por quererem ser uma coisa diferente, ou seja, por serem mais do que são.
Dito de outra forma, há nelas uma sede de infinito, um imenso desejo de que do seu âmago, algo saia cá para fora, uma ânsia de metamorfose. Há um ímpeto de querer ser que se tece no interior das suas esculturas de ferro, que de algum modo são tão íntimas como o é um casulo.
A partir do próximo dia 8 de maio, e até julho, estará patente no Museu Vieira da Silva a mostra intitulada “Histórias de bichos da seda”. Como já terão adivinhado, a exposição não nos fala dos ditos bichos, os da seda, mas sim de artistas, que tal como eles, tecem.
Entres esses, claro está, que estão os artistas de aqui falámos, Vieira da Silva, Louise Bourgeois, Ana Hatherly, e Rui Chafes, mas também muitos outros de quem nada agora dissemos.
Comentários
Enviar um comentário