Foi este mês reeditado em Portugal um muito útil ensaio do grande escritor austríaco Robert Musil (1880-1942). O título do livro é “Como reconhecer um estúpido (num mundo cheio deles)”, sendo que, nas edições anteriores em português dessa mesma obra, os tradutores optaram por lhe dar títulos diferentes, como por exemplo, “Da Estupidez” ou “Sobre a estupidez”.
Robert Musil escreveu esse ensaio, partindo de uma conferência que proferiu em Viena em 2 e em 17 de março de 1937. O que o escritor nos tenta fazer compreender, é o que é ser-se estúpido. Dizemos tenta, porque como de seguida veremos, a estupidez não é algo que seja fácil de explicar no que consiste.
Normalmente associa-se a estupidez à falta de inteligência, contudo, não é isso que Robert Musil faz. Para o autor, a inteligência e a estupidez não são coisas antagónicas, pois segundo ele diz, ambas andam frequentemente de mãos dadas.
Uma pessoa pode ser bastante inteligente quando considerada individualmente, todavia, essa mesma exacta pessoa, quando se associa a um colectivo, ou seja, a uma religião, a um partido político ou a um clube de futebol, pode começar a agir de forma completamente estúpida e a dizer as maiores imbecilidades.
É uma experiência comum, conhecermos alguém cujo nível de inteligência é elevado, mas que quando age ou fala em defesa do seu grupo, seja este uma igreja, um partido, uma equipa desportiva ou qualquer outro tipo de colectividade, comece a dizer autênticas barbaridades e a agir como um perfeito idiota.
Como nos diz Musil, em certas circunstâncias, a inteligência e a estupidez não se excluem uma à outra, ou seja, e em conclusão, qualquer pessoa pode estúpida, mesmo as mais inteligentes.
Para além da escassez de inteligência, uma outra característica que vulgarmente se associa à estupidez, é a falta de competência. No entanto, Robert Musil descarta esta associação, uma vez que a competência é um conceito muito variável.
Seja lá em que actividade for, uma pessoa pode ser considerada muito competente em determinado contexto, mas colocada num enquadramento diferente ser tida como um autêntico incapaz. Nem vale a pena dar exemplos de situações em que alguém tem uma excelente reputação num certo ambiente, mas num cenário distinto desse, é visto como sendo um incontestável inapto e um inquestionável obtuso, desses de papel passado e tudo.
Em síntese, a competência também não pode ser o critério definitivo para se reconhecer um estúpido, uma vez que o conceito de competência varia muito conforme as circunstâncias e os contextos.
Robert Musil tem então por base estas duas premissas, a primeira a de que a estupidez e a inteligência não são incompatíveis, pois qualquer um quando integrado num grupo pode agir de forma estúpida, e a segunda a de que a competência não é um critério para distinguir a estupidez, pois a competência depende sempre da conjuntura envolvente. Dito isto, como se distingue então um estúpido?
Robert Musil distingue dois tipos de estupidez, uma é a estupidez honesta, que consiste pura e simplesmente numa honrada falta de inteligência. Há indivíduos, que os há, que na verdade são limitados. Eles sabem-no, os outros sabem-no e não há dúvidas nenhumas quanto isso.
Tais indivíduos reconhecem-se facilmente pois que possuem um vocabulário pobre e diminuto e não sabem muito bem como se servir dele. Uma outra característica do estúpido honesto é a sua preferência por ideias banais, por lugares comuns e por tudo o mais que seja fácil de assimilar. Por fim, refira-se ainda que o estúpido honesto, quando consegue assimilar uma qualquer ideia, agarra-se a ela como se fosse um tesouro, não permitindo que a analisem, que a ponham numa outra perspectiva ou que haja qualquer tipo de ambiguidades.
Como o estúpido honesto tem dificuldade em assimilar ideias, quando porventura consegue assimilar uma delas, odeia que sobre ela haja qualquer espécie de nuances, “tá dito, tá dito, pão, pão, queijo, queijo”.
O estúpido honesto por norma não é perigoso, sabe os seus limites e age em conformidade.
O segundo tipo de estúpido de que Robert Musil nos fala, esse sim é que constitui uma ameaça à sociedade.
O segundo é o estúpido inteligente que se caracteriza por ser errático, pretensioso e por ter abdicado voluntariamente do pensamento crítico.
Reconhecemos um estúpido inteligente quando verificamos que alguém tem opiniões muito firmes acerca de todo e qualquer assunto. Fala-se sobre política, sobre educação, sobre saúde, sobre futebol, sobre poesia, sobre tecnologia, sobre migrações ou seja sobre o que for, e é certo que o estúpido inteligente vai emitir uma sentença.
O estúpido inteligente não é destituído de capacidades cognitivas, todavia, é errático porque vagueia por todos os temas, e não tem qualquer pudor em expelir os seus pontos de vista sobre assuntos que só conhece de forma superficial.
O estúpido inteligente não é destituído de capacidades cognitivas, todavia, é pretensioso porque quando manda as suas “postas de pescada” põe uma cara séria e eleva a voz como se estivesse a revelar uma profunda verdade à humanidade.
Não há nenhuma área do conhecimento e da vida sobre a qual o estúpido inteligente não saiba discorrer, ele move-se em todas as direções e veste todas as roupagens com as quais nos revela a verdade.
O estúpido inteligente é altamente perigoso porque ele influencia e condiciona outros à sua volta, de tal modo que muitos começam a repetir as suas sentenças e a replicar as suas “postas de pescada”, e de repente estamos num mundo em que todos têm fortíssimas convicções acerca de matérias das quais pouco ou nada sabem.
Para Robert Musil, a estupidez inteligente nasce do pânico. O estúpido inteligente sabe que não é um imbecil, que possui capacidades cognitivas, contudo, olha para o mundo em seu redor e descobre realidades novas e complexas às quais não estava habituado, vai daí entra em pânico e reage abdicando do seu pensamento crítico, refugiando-se em supostas verdades absolutas que reproduz com enorme vigor.
A fuga cega ao que é novo e complexo e a consequente pressa em entrincheirar-se em dogmas indiscutíveis, são comportamentos altamente perigosos, que não raras vezes conduzem a violências extremas. Em conclusão, o estúpido inteligente é um ser ameaçador e maligno, sendo que, quando se junta com uma série de outros estúpidos inteligentes, a prazo provocam catástrofes imensas.
Em 1937, quando Robert Musil proferiu a sua conferência sobre a estupidez em Viena, tinha como objectivo alertar os seus concidadãos para os perigos do nazismo, ou seja, para as terríveis consequências que adviriam para a sociedade do poder estar entregue a estúpidos inteligentes. Como se veio a verificar posteriormente, Musil tinha razão.
Um dos conselhos que Robert Musil nos deixou caso não queiramos ser estúpidos foi o seguinte: “Abstém-te de julgar e decidir cada vez que te faltam informações”.
Como todos sabemos, caso nos abstivéssemos sempre de julgar e decidir de cada que nos faltam informações, o mais certo era estarmos quase permanentemente imobilizados, e isto também Musil o disse. Não raras vezes temos de julgar e decidir mesmo sem dispormos de todas as informações necessárias, porém, o que o conselho de Musil na realidade nos diz, é que sejamos humildes e que tenhamos presente que não somos os donos da verdade.
Robert Musil era um romancista, um homem da literatura, a sua análise do conceito de estupidez é feita nesse contexto, no entanto, houve outros que se dedicaram a estudar a estupidez cientificamente, um deles chamava-se Carlo M. Cipolla (1922-2000) e era historiador e economista.
Carlo M. Cipolla escreveu um livro intitulado “As leis fundamentais da estupidez humana”, que segundo ele são as seguintes:
1ª - Todos subestimamos, sempre e inevitavelmente, o número de indivíduos estúpidos.
2ª - A probabilidade de determinada pessoa ser estúpida é independente de qualquer outra característica dessa mesma pessoa.
3ª - Uma pessoa estúpida é uma pessoa que prejudica outra pessoa ou grupo de pessoas, não obtendo nenhum ganho para si mesma, e possivelmente incorrendo em perdas.
4ª - Pessoas inteligentes subestimam o poder de causar danos dos indivíduos estúpidos. As pessoas inteligentes esquecem-se constantemente de que em qualquer momento ou lugar, e sob qualquer circunstância, lidar e/ou associar-se com pessoas estúpidas resultará infalivelmente num erro.
5ª - Uma pessoa estúpida é o tipo mais perigoso de pessoa.
Para terminarmos este nosso texto sobre a estupidez, referimos outros cientistas, os norte-americanos Justin Kruger e David Dunning, que em 1999 conduziram o maior estudo científico alguma vez feito sobre as pessoas estúpidas. Muito embora as conclusões sejam bastante complexas, Dunning e Kruger conseguiram resumi-las de forma simples. Assim sendo, os estúpidos reconhecem-se pelas seguintes características:
- Culpam os outros pelos seus próprios erros;
- Acham sempre que estão certos;
- Reagem a conflitos agressivamente e incitam, mais ou menos diretamente, a violência;
- Ignoram as necessidades e os sentimentos dos outros;
- Pensam que são melhores que toda a gente;
- Complicam o que é simples;
- Concluem demasiado com muito pouca informação, são preconceituosos.
E pronto, terminamos por hoje, deixando um último alerta, nunca se esqueçam que a estupidez é proativa e orgulhosa, e que os estúpidos são pessoas altamente motivadas...
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