Quem vê e compreende o mundo apenas pelas notícias da TV, deixa muito por ver e compreender. Deixa muito por ver e compreender, por exemplo, acerca de um dos sítios mais terríveis e fascinantes destes nossos tempos, o Irão, esse país que outrora foi a Pérsia.
Percebendo-se o Irão somente pelos noticiários televisivos, fica-se com uma percepção limitada do que por lá se passa. Todavia, há filmes, fotografias e BD’s, que nos dão uma imagem muito mais completa e complexa do Irão, do que aquela que nos é dada pelas notícias das TV’s. É de alguns desses filmes, fotografias e BD’s, que hoje vos vamos falar.
O Irão é um país com mais de 80 milhões de habitantes, com a segunda maior reserva de gás do mundo e a quarta maior reserva de petróleo. Religião e política são nessa nação uma e a mesma coisa, sendo que, o regime é altamente repressivo e não tolera o mínimo dos desvios aos preceitos e normas estabelecidas pelo Islão.
A temida Polícia dos Costumes, que também é conhecida como Patrulha de Orientação ou Polícia da Moralidade, tem como objectivo garantir o cumprimento do código de vestimenta islâmico e de outras normas sociais por todo o país, e para tal, vigia atentamente todos os cidadãos, havendo sanções bastante pesadas para quem quer que se atreva a não cumprir o regulamentado.
Marjane Satrapi nasceu em 1969 e cresceu em Teerão, mas atualmente vive em Paris. Obteve um enorme sucesso mundial com a Banda Desenhada “Persépolis”, que foi posteriormente adaptada ao cinema.
A BD, tal como o filme, conta-nos a história da própria Marjane Satrapi. Na cena abaixo vemo-la ainda, a jovem no Irão, a ser abordada pela Polícia dos Costumes devido a ter corrido pela rua afora por estar atrasada. Ao correr o seu traseiro movimentou-se de uma forma impudica e, por consequência disso, as autoridades tiveram de intervir para restabelecer a ordem pública/pudica.
No regime iraniano, as mulheres são as mais vigiadas e as autoridades estão particularmente atentas aos seus movimentos, não só aos dos seus traseiros, mas também a outros. Alertado pelas forças de segurança, o parlamento iraniano prepara-se para aprovar o "Projecto de Lei de Apoio à Cultura da Castidade e do Hijab", com o objectivo de "legalizar o ataque intensificado às mulheres e raparigas que desafiam o uso obrigatório do véu".
O que este Projecto de Lei propõe é que qualquer um possa atacar legalmente uma mulher, caso pense que ela esteja a ser imoral, impudica ou simplesmente não use o véu.
Apesar das mulheres serem as mais massacradas, que ninguém pense que não há igualmente homens bastante castigados. Entre esses, encontra-se o cineasta Jafar Panahi, que ontem mesmo foi galardoado com a mais alta distinção do Festival de Cannes, a Palma de Ouro.
Jafar Panahi tem tido uma vida difícil, foi detido em março de 2010, tendo passado longos meses encarcerado, foi depois condenado a seis anos de prisão domiciliária e proibido de filmar durante vinte anos. O espantoso é que, após essa dura condenação, Jafar Panahi conseguiu realizar ilegalmente vários filmes, entre os quais o que ontem mesmo foi premiado no Festival de Cannes.
A pergunta que se impõe é como é que Jafar Panahi realizou esses seus filmes, estando proibido de o fazer e não tendo podido sequer sair de casa durante uns anos. O primeiro desses filmes clandestinos intitula-se “Isto não é um filme” e data de 2011.
Estando em prisão domiciliária, Jafar Panahi realizou essa sua longa-metragem com um telemóvel. O filme teve sua estreia mundial no Festival de Cannes desse ano, tendo chegado até esse evento graças a uma arriscada operação secreta, em que se conseguiu contrabandear uma cópia da película gravada numa pen escondida dentro de um bolo.
O filme retrata o difícil quotidiano do próprio Jafar Panahi, continuamente vigiado e perseguido pelo governo iraniano, e sem poder sequer sair à rua. Aqui fica o trailer de “Isto não é um filme”:
Em 2015 Jafar Panahi fez ilegalmente um outro filme, “Táxi”, desta vez arriscou ainda mais e veio para a rua. Disfarçou-se de taxista, instalou uma câmara dentro do veículo e vai daí pôs-se a conduzir pelas ruas de Teerão.
Encontra clientes e leva-os ao seu destino, porém, durante o percurso conversa com esses seus companheiros de viagem. Os temas de que se vai falando como que criam uma espécie de mosaico da sociedade iraniana. Fala-se de política, dos costumes locais e até mesmo do que é a liberdade de expressão e o cinema.
Alguns dos passageiros que Jafar Panahi transporta no seu táxi são seus conhecidos, outros reconhecem-no, uma vez que o realizador é uma figura célebre por todo o Irão. No interior do táxi ninguém tem medo de falar, facto que prova que nem os mais rigorosos regimes conseguem totalmente abafar o pensamento e a liberdade. Aqui fica o trailer:
Jafar Panahi realizou outros filmes clandestinos, mas a sua película de que nós mais gostamos é uma prévia à sua condenação, “Fora de Jogo/Off-Side” de 2006, com uma história que se baseia em acontecimentos reais.
No Irão há milhares de mulheres que gostam de futebol, contudo, nesse país estão proibidas de entrar nos estádios. Apesar disso, algumas mais destemidas disfarçam-se de homens e tudo fazem para ludibriar a Polícia dos Costumes e assistir aos desafios.
Em “Fora de Jogo/Off-Side”, uma rapariga disfarçada de rapaz é descoberta e detida. Colocam-na num espaço cercado ao lado do estádio, conjuntamente com um grupo de outras moças, também elas disfarçadas de rapazes e igualmente descobertas pela polícia. Nesse sítio há uma abertura pela qual podem vislumbrar as bancadas e uma parcela do terreno do jogo, e é por aí espreitando que celebram a vitória da sua equipa, a seleção iraniana. Aqui fica o trailer:
Logo no início deste texto, e depois um pouco adiante, publicámos imagens da fotógrafa Iraniana Shadi Ghadiria, que nasceu em Teerão em 1974. Publicamos agora mais uma, esta abaixo.
“Qajar" é o título de uma série de fotografias de estúdio de Shadi Ghadirian, que se inspirou em retratos do período Qajar, que decorreu entre o século XVIII e início do século XX. Todas as mulheres que vemos nessas imagens estão vestidas com roupas típicas dessa época e pertencem à família da artista ou são suas amigas próximas.
Os cenários que servem de pano de fundo e o estilo das imagens são quase idênticos aos das fotografias originais do período Qajar, mas cada uma delas é complementada por um objecto pertencente aos dias atuais.
Nessas fotos Shadi Ghadirian joga um jogo de comparações e contrastes, levando o observador a refletir sobre a disputa entre tradição e modernidade. Reflexões sobre como a vida era naquela época e como o é agora, trazem igualmente reflexões sobre o papel da mulher e o quanto ele mudou (ou não) no Irão.
Neste entretanto, em Lisboa, e mais concretamente na galeria Narrativa, há uma mostra de uma outra fotógrafa originária do Irão, Newsha Tavakolian, nascida em 1981 em Teerão.
A exposição intitula-se “And They Laughed At Me”, apresentando-se como sendo um retrato íntimo de uma sociedade que batalha pela liberdade e por mudanças. A mostra foi construída a partir do arquivo pessoal de início de carreira da fotógrafa e do trabalho que tem vindo a desenvolver nos últimos anos. Abaixo um exemplo de uma das suas fotos:
Quem quiser conhecer melhor a fotógrafa iraniana Newsha Tavakolian é deslocar-se à galeria Narrativa, para além disso, pode também ler um artigo do jornal Público a propósito da referida exposição:
E pronto, por aqui terminamos este nosso passeio pelos filmes, fotografias e BD’s daquele país que era a Pérsia e hoje é o Irão. Mas ainda antes de finalizarmos, um último desvio para falarmos de Abbas Kiarostami, que nasceu em Teerão no ano de 1940 e faleceu em Paris em 2016.
Abbas Kiarostami dirigiu alguns clássicos recentes do cinema, como por exemplo,
“Onde Fica a Casa do Meu Amigo?” ou “O Sabor da Cereja”, foi também um fotógrafo raro, que nos deixou imagens de enorme beleza, mas, para além de tudo isso, foi ainda um poeta, e dos excelentes.
A sua poesia tem a brevidade e a leveza dum haiku japonês. É simples somente em aparência, foca-se em pormenores, concentra-se em momentos, em pensamentos passageiros, em ponderadas reflexões e em angústias profundas e alegrias súbitas.
Este meu dia
perdi-o
como todos os outros dias
metade pensando sobre ontem
metade pensando sobre amanhã
Na tua ausência
converso
contigo,
na tua presença
converso comigo.
Hesitante
estou numa encruzilhada,
o único caminho que conheço
é o caminho de volta.
O aroma das nozes
a fragrância do jasmim
o aroma da chuva sobre a terra.
Aos olhos dos pássaros
o ocidente
é onde o sol se põe
e o oriente
onde o sol nasce,
apenas isso.
Para além do bem e do mal
o céu
é azul
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