Quem tem medo do escuro? Sugestões para se viver um apagão com sofisticação e sensibilidade estética e artística
Nos noticiários televisivos e nas redes sociais dizia-se que a situação era gravíssima, que as pessoas estavam assustadas, apreensivas, desorientadas e ansiosas com a súbita falta de electricidade, todavia, ao percorrermos a cidade via-se uma enorme quantidade de gente a divertir-se e a passear, como se estivem num dia feriado.
De modo oposto ao dos noticiários televisivos e ao das redes sociais, a imprensa escrita optou por retratar os factos, ao invés de fantasiar com devaneios apocalípticos e com gente aterrorizada.
Vejamos como descreveu o jornal Público a situação: “Os jardins e os parques encheram-se de crianças com famílias. Os vizinhos até trocaram mais do que cumprimentos no vão das escadas. Por um dia, num apagão que escureceu todo o país, a vida pareceu regressar à rotina antes do advento das redes sociais e os pais tiveram de encontrar forma de ocupar as crianças até à hora de dormir. No final do dia, regressada a electricidade e a normalidade, o balanço é quase positivo: as crianças adoraram e até se esqueceram dos ecrãs.”
Abaixo a imagem que ilustra uma reportagem do Jornal I relativa ao apagão, intitulada do seguinte modo: ”Se for o fim do mundo, o que vamos fazer? Vamos conviver!”
Uma coisa é certa, os noticiários televisivos e as redes sociais alimentam-se do exagero e do drama, sendo por isso que conseguem descobrir apocalipses a cada esquina. Sem desastres em catadupa, catástrofes aos montes, contínuos escândalos, urgências imensas, indignações constantes, alarmes a toda a hora e perigos iminentes de todos os tipos, os noticiários televisivos e as redes sociais pouco ou nada teriam para nos dizer.
Por assim ser, esses dois meios de comunicação(?) são o local privilegiado para os que ostentam permanentemente uma cara grave e séria, para os que só proferem frases sisudas e para os que vivem o dia a dia de uma forma preocupada, austera e carrancuda, vislumbrando a cada instante conspirações, tramóias, riscos, perigos e ameaças por todo o lado.
O que na verdade falta a toda essa gente é leveza e graça, pois carregam consigo um peso infindável e veem com maus olhos que haja quem viva de um modo despreocupado e vá andando pela vida cantando e rindo. Por tal razão, pelam-se por espalhar o pânico, por divulgar preocupações, por propagar desconfianças e por difundir medos e receios.
A “todos, todos, todos” esses, contamos a seguinte história, que teve como protagonista o recentemente falecido Papa Francisco. Corria o ano de 2021, quando o papa se deslocou a Valladolid em Espanha, para participar nas celebrações da Semana Santa. Nisto, com um ar grave e sério, um jovem aproxima-se do papa e diz-lhe com voz sóbria e em tom solene, “Santo Padre, sou um seminarista de Valladolid". A tal alocução, o pontífice respondeu prontamente e de modo humorístico, “E que culpa tenho eu disso?”
São Thomas More (1478-1535) chegou a santo depois de morrer, mas antes, quando ainda estava vivo, foi chanceler do Reino de Inglaterra, tendo também sido ele que escreveu o famoso livro “A Utopia”, mas para além disso e de muito mais, escreveu igualmente “A Oração do Bom Humor”.
Numa cerimónia oficial em dezembro de 2014, o Papa Francisco informou a Cúria Romana que era essa oração de São Thomas More, que todos os dias rezava ao amanhecer. Aqui a deixamos:
Posto isto, voltemos ao apagão da passada segunda-feira. A parte do bom povo português que não aproveitou a falta de electricidade para ir passear por avenidas, ruas, praças e jardins, assustou-se com o que se dizia nos noticiários e redes sociais, e correu em direção aos supermercados, no intuito de aí adquirir velas, enlatados, garrafões de água, papel higiénico e outros produtos de primeira necessidade.
Ao anoitecer, já abrigados no remanso do lar, à trémula luz das velas, muitos foram os que se tendo antes precavido com tais mantimentos e estando portanto bem abastecidos, deglutiram uma bela posta de atum Bom Petisco, acompanhada por um apetitoso feijão frade enlatado.
Mais lá para a noitinha, uma vez tudo alimentado, com o normal desenrolar do processo digestivo, um procedimento orgânico que a falta de eletricidade certamente não perturba, igualmente muitos hão de ter sido os que deram um uso adequado ao papel higiénico, que prévia e avisadamente tinham adquirido em grandes quantidades nos supermercados.
Tudo por junto, mesmo com o susto, também para esses o apagão acabou por proporcionar uma noite serena e agradável, ainda que tenha sido um tanto ou quanto mais rústica e bucólica do que o costume.
Bem vistas as coisas, o mais arreliante do dia de segunda-feira, foi o período nocturno, no qual estava tudo bastante mais escuro do que é habitual e não havia nada de especial para se fazer.
Se porventura no futuro houver um novo apagão, durante o período diurno já todos sabemos o que fazer, a saber, passear por avenidas, ruas, praças e jardins, mas dito isto, o que fazer à noite, quando tudo fica negro e escuro?
Nós temos a resposta a essa questão, pois a negridão pode ser tema para exercícios místicos e espirituais, e também para sofisticadas conversas, daquelas plenas de sensibilidade estética e artística. Em resumo, no escuro há arte e cultura!
A imagem que acima vemos é a de uma obra do artista norte-americano Ad Reinhardt (1913-1967). Data de 1963 e pertence à coleção do Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque.
Na verdade, é Ad Reinhardt quem nos vai iluminar o caminho sobre o modo como poderemos passar uma noite com sofisticação intelectual e sensibilidade estética e artística, num eventual futuro apagão.
Só para que tenhamos mais alguma luz sobre este assunto, abaixo fica mais uma obra de Ad Reinhardt. Esta intitula-se “Ultimate Painting n° 6”, é de 1960, e faz parte da coleção do Centre Pompidou em Paris.
Como todos já terão certamente adivinhado, Ad Reinhardt tinha uma particular predileção pela escuridão e pelo negrume. A razão pela qual ele tinha tais preferências, é de ordem mística e espiritual. Haverá certamente entre quem nos lê, quem não tenha ficado lá muito fascinado pelo estilo pictórico de Ad Reinhardt e diga de si para consigo, que pintar quadros todos de negro, era coisa que também conseguiria fazer.
Todavia, o que nós aqui propomos, é que se eventualmente houver um novo apagão, e isto após jantarmos uma posta de atum acompanhada por feijão frade enlatado, miremos em nosso redor e vejamos o mundo circundante como Ad Reinhardt o via. Sem eletricidade e com tudo às escuras. Se olharmos com atenção, veremos que a realidade é tal e qual uma tela de Ad Reinhardt.
É natural que a obra de Ad Reinhardt tenha um significado obscuro para os não iniciados em arte moderna e contemporânea, contudo, se porventura aproveitarem um futuro apagão para contemplarem a escuridão, certamente que vislumbrarão um sentido e uma luz nas suas pinturas que antes não teriam visto. Na verdade, o sentido da arte de Ad Reinhardt torna-se claro às escuras.
Aqui fica mais uma pintura de Ad Reinhardt, o título desta é “Black Painting, 1960–1966” e encontra-se exposta em Düsseldorf, na Alemanha.
Passar por um apagão com Ad Reinhardt, traz benefícios que se prolongam para o dia seguinte, quando a electricidade já tiver regressado. Imaginem que na manhã imediata após esse eventual futuro apagão, encontram um qualquer vizinho à saída de casa e ele vos diz assim:
- Então vizinho, ontem à noite lá estivemos todos outra vez às escuras. Que estucha!
A isto, vós, ao invés de responderem com um vulgaríssimo “pois foi”, respondem antes com a seguinte alocução:
- Ó vizinho, para mim não foi maçada nenhuma, aproveitei para olhar a realidade e nela vislumbrar o profundo significado da obra do pintor norte-americano Ad Reinhardt.
Perante tal resposta, é certo e sabido que o vizinho em questão ficará absolutamente impressionado com o vossa extrema sofisticação intelectual e ainda mais com a vossa delicada sensibilidade estética e artística, sendo muito provável que vos responda do seguinte modo:
- Olhe lá ó vizinho, a propósito disso, não quer marcar uma reunião de condomínio para falarmos acerca de Ad Reinhardt? Uma reunião de ponto único, isto a não ser que sobrasse tempo e, caso assim fosse, falava-se também das infiltrações que me puseram o tecto da sala todo negro.
Aqui abaixo fica uma imagem, para que adivinhem se ela é uma outra obra de Ad Reinhardt, ou se eventualmente é uma fotografia de um tecto completamente coberto por uma contínua, extensa e negra mancha de humidade.
Claro que todos terão imediatamente visto que a imagem acima é de uma outra obra de Ad Reinhardt e não de uma grande e negra mancha de humidade. Trata-se na verdade de uma pintura de 1964, pertencente à coleção da Tate Modern em Londres, cujo título é “No Title”.
Desconfiamos que neste momento, haverá quem nos leia e diga para si próprio que sim senhor, que estas nossas sugestões são de facto muito úteis e culturais para a eventualidade de um novo apagão, mas que pecam por se limitarem tão-somente à pintura. Nós antecipámos esse reparo, e por isso temos também sugestões relacionadas com outras disciplinas artísticas.
Comecemos pelo cinema. Estávamos no ano 2000, quando estreou “Branca de Neve”, um filme do realizador português João César Monteiro. À estreia, no já extinto cinema King em Lisboa, compareceram grandes personalidades, tendo todas as televisões estado presentes. Durante os 75 minutos que durou a película, o que os espectadores viram foi um ecrã completamente negro. Mesmo no fim do filme aparece o próprio João César Monteiro, que murmura umas quantas palavras inaudíveis.
Abaixo uma das cenas de “Branca de Neve”:
Nessa estreia houve um repórter da RTP que entrevistou o realizador, transcrevemos o diálogo entre os dois:
Repórter RTP: Por que é que resolveu fazer o filme assim?
César Monteiro: Porque não o pude fazer assado.
Repórter RTP: Quem é que não o deixou fazer assado?
César Monteiro: Eu não posso permitir-me certas coisas. Não estamos a brincar com coisas sérias.
Repórter RTP: O que é que aconteceu durante o filme?
César Monteiro: O que é que queriam? Queriam telenovela era?
Repórter RTP: Isso são acusações ao produtor do filme?
César Monteiro: Não. São acusações para o serviço público de televisão (a RTP), que aliás nem devia existir. Não serve para nada. Não serve a nada nem a ninguém. Não gosto de televisão. Dispenso.
Depois chega uma repórter da SIC e continua a entrevista:
Repórter SIC: Está a receber muitos parabéns?
César Monteiro: Hã?
Repórter SIC: Ainda agora uma senhora lhe deu os parabéns.
César Monteiro: Deu-me os parabéns porque era o meu aniversário.
Repórter SIC: Faz anos hoje?
César Monteiro: Faço.
Repórter SIC: E acha que esta foi uma boa prenda? Esta estreia?
César Monteiro: Vocês é que sabem.
Repórter SIC: Dizem as más línguas que deixou um sobretudo esquecido em cima da câmera…
César Monteiro: Eu quero que as más línguas se fo…ponto final.
Repórter SIC: Acha que o público português recebeu melhor o filme…
César Monteiro: Eu quero que o público português se fo…e assim sucessivamente.
À época houve quem dissesse que “Branca de Neve” era um óptimo filme para invisuais, mas a isso nós podemos acrescentar que é também um excelente filme para uma noite de apagão.
Monteiro decidiu fazer um filme sem imagens, obrigando os espectadores a ver coisa nenhuma num ecrã vazio. Não se vê actores, nem guarda roupa, nem adereços, nem décor, apenas se ouvem os diálogos ditos de um modo monocórdico e arrastado. Em certo sentido, “Branca de Neve” é como um drama radiofónico, poderia perfeitamente assistir-se a esse filme através de um transistor, sendo também por isso perfeito para uma futura noite de apagão.
Para terminarmos, a nossa sugestão musical para um apagão, Rock and Roll, e mais concretamente os Rolling Stones com o clássico “Paint It Black”, tema que se inicia assim:
I see a red door
And I want it painted black
No colors anymore
I want them to turn black
Comentários
Enviar um comentário