À partida dir-se-ia que conversar com o frigorífico não parece ser uma atividade particularmente interessante, no entanto, os dias que correm trazem-nos contínuas novidades e o que ainda há pouco tempo era simplesmente ridículo, passou neste entretanto a ser algo que vale a pena tomar em consideração.
Quem levantou tão exótica questão, “Será que queremos falar com o nosso frigorífico?” foi o engenheiro informático Luc Julia, que é um dos criadores da assistente digital Siri, da Apple. Apesar de ser um dos mais conceituados cientistas do mundo na área da robótica, Luc Julia tem muitas dúvidas relativamente à utilização que se fará dessas tecnologias e que efeitos terão na humanidade.
Na BD abaixo, temos a ilustração do que poderá vir a ser o futuro próximo, com uma possível conversa entre um frigorífico bem intencionado e o seu feliz proprietário.
Mas por qual estranha razão, quererão os humanos conversar com máquinas? A resposta é simples, porque se sentem sozinhos. A solidão tornou-se um problema nas sociedades atuais, e tanto assim é, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) expressam regularmente as suas preocupações com o aumento da solidão, estimando-se que esta afete já mais de um bilião de pessoas a nível global. É muita gente junta a sentir-se só!
“O Século da Solidão” é o título do último livro da economista e ensaísta inglesa Noreena Hertz, nele a autora explica-nos que a solidão tem atualmente repercussões mais severas e extensas do que alguma vez teve. Há muita gente sozinha, que não se sente apenas só em casa ou no trabalho, mas que se sente também abandonada pelos seus governantes e pela sociedade no seu todo.
Não por acaso, o governo britânico criou há uns anos um Ministério da Solidão, pasta governativa que também já existe no Japão desde 2020.
A BBC levou a cabo o maior estudo mundial sobre a solidão, “The loneliness Experiment”, sendo que chegou a algumas conclusões surpreendentes. A primeira das quais é que a solidão é um fenómeno próprio das sociedades desenvolvidas e individualistas, diminui com a idade e, ao contrário do que se poderia pensar, é maior nos homens do que nas mulheres.
Também contrariamente ao que normalmente se acredita, a solidão nada tem que ver com a velhice, nem é sequer coisa de senhoras já de uma certa idade, que veneram o seu gato, é sobretudo um problema de jovens, de trintões e quarentões.
Os dados recolhidos pelo extenso estudo da BBC trouxeram-nos uma nova visão sobre a solidão a nível global, sendo que após este estudo, têm sido muitos os países a desenvolver investigações mais detalhadas sobre a sua realidade nacional.
Há coisas em que a nação portuguesa nunca nos desilude e como seria de esperar, os dados existentes em Portugal sobre a solidão são pífios. O mais que houve foi um reduzido e preguiçoso inquérito feito pela linha SNS24, cujas conclusões estão disponíveis on-line, e que logo de início, mesmo a seguir ao título, nos anuncia que o seu tempo de leitura é de 4 minutos.
Não deixa de ser cómico, que a maior parte dos países desenvolvidos do mundo tenham dedicado vastos estudos ao tema da solidão, que alguns tenham inclusivamente criado ministérios ou departamentos governamentais para tratar desse tema, mas que por cá tudo se resuma a um estudo que se lê em 4 minutos.
Mais a mais, que o dito estudo chegou à brilhante conclusão que a solidão é uma condição que afeta sobretudo a população idosa, coisa que todos os mais aprofundados estudos internacionais desmentem categoricamente.
Das duas uma, ou em Portugal, contrariamente ao que sucede em todos os restantes países desenvolvidos do mundo, apenas os velhos se sentem sós, ou então o estudo foi mal feito. Fica à escolha de quem nos lê, em qual das duas hipóteses acreditar.
Aqui fica um link para o estudo da BBC, “The loneliness Experiment”:
Na verdade, o que podemos afirmar é que a solidão na sua configuração contemporânea é algo que afeta os filhos e filhas nascidos da idolatria pela competitividade e pelo sucesso individual como valor supremo. A solidão propagou-se e instalou-se nas sociedades modernas sobre os destroços da tribo, do grupo e do humano como sendo essencialmente um animal social e um ser colaborativo.
Há uma enorme diferença entre estar-se só e sentir-se solidão. Há quem esteja só por opção e não seja assaltado pelo mínimo sentimento de solidão, assim como também há o contrário, ou seja, quem se sinta sozinho no meio de uma multidão. A solidão tem sobretudo a ver com o sentir-se desunido ou abandonado pelos restantes, pelos que nos rodeiam, seja tal a nível familiar, laboral, comunitário, político ou social.
Uma coisa é certa e os estudos comprovam-na, quem se sente só, desunido e abandonado, tende a perceber o mundo exterior como um local hostil e ameaçador, razão pela qual, tais pessoas são presas fáceis de políticos populistas que exploram o seu sentimento de isolamento.
A tal propósito, citemos a autora do “Século da Solidão”, a economista e ensaísta inglesa Noreena Hertz: “Os populistas cada vez mais exploram a solidão para ganhar consensos. Há estudos sobre o alto consenso que, por exemplo, Jean-Marie Le Pen obteve em França em 1992 entre as pessoas mais solitárias ou abandonadas. Mas o mesmo pode ser dito de muitos defensores do partido xenófobo da Holanda, dos apoiantes de Donald Trump nos EUA ou dos de Matteo Salvini em Itália. Os seguidores desses políticos têm menos amigos, menos conhecidos e passam mais tempo sozinhos. As redes sociais e a Internet levam ainda mais a extremos as posições dessas pessoas, também porque muitas vezes a sua comunidade não é real, mas sim online. Resultado: os populistas conseguem conquistá-los com muito mais facilidade do que outros políticos.”
A crescente solidão das sociedades atuais é explorada por políticos populistas, mas é também uma grande oportunidade para se fazerem óptimos negócios. O crescimento do mercado de tecnologias que combatem a solidão é notável. Estima-de que o mercado de companheiros virtuais de Inteligência Artificial possa alcançar lucros na ordem dos 140 bilhões de dólares até 2030. Além disso, estão em plena expansão plataformas como a BetterHelp ou a Talkspace que nos oferecem acesso a conversas on-line com especialistas em fazer-nos companhia.
A robótica de acompanhamento está em franca ascensão, com robôs concebidos para nos ajudar a combater a solidão. Aqui mesmo ao lado, na Galiza, em Espanha, a Universidade de Vigo lançou o robô Celia, que já conta com mais de 10 mil utilizadores.
Também no país vizinho, temos El loro Honorato, um papagaio criado com Inteligência Artificial para fazer companhia aos solitários e que, pelos vistos, está a preço de saldo.
Mas há mais, a aplicação The People Walker é um exemplo do tipo de negócios que estão a crescer com a solidão, sendo essa uma plataforma que nos arranja alguém com quem irmos dar uma volta à esquina ou um passeio ao quarteirão. Garante-nos companhia “segura e confiável” por preços que podem variar entre 6 e 19 euros.
Segundo o que anuncia a plataforma, os passeadores profissionais passam por “um extenso processo” de análise e seleção, e depois dos passeios são recolhidos os feedbacks das pessoas que contrataram os seus serviços para avaliação do seu desempenho.
Já o Rent a Local Friend permite-nos alugar um amigo para nos fazer companhia, seja só para trocar umas ideias sobre a vida, seja para ir a um evento social, tipo um casamento ou uma festa, ou também para ir ao cinema ou jantar fora.
Os preços do Rent a Local Friend variam em função dos países, em Paris, que é um sítio fino, alugar um amigo custa 120 euros se for para um dia inteiro, mas se for só para uma hora ou duas fica mais em conta.
No Japão alugar amigos é um negócio com mais especificidades, há um site, o Ossan Rental, que aluga amigos de meia-idade. Ossan significa em japonês “homem de meia-idade”, sendo que este site destina-se apenas a elementos do sexo masculino com idades entre os 45 e os 55 anos, ou seja, é para gente que quer falar de bola ou de política e não tem com quem. O preço ronda os 1.000 yen à hora, o que ao câmbio atual dá mais ou menos 10 euros.
No site Cuddle Up To Me disponibilizam-se Abraçadores Certificados. Estes especialistas oferecem não só abraços, mas ainda um ombro amigo para quem eventualmente necessite de desabafar. O custo é de 80 dólares à hora, ou seja, sensivelmente 70 euros. O Cuddle Up To Me também promove um Programa de Certificação Profissional de Abraçadores que custa 30 dólares por mês, mas que pode ser pago de uma só vez, sendo que nesse caso são 1500 dólares. Por fim, fornece igualmente materiais de formação e apoio ao longo da vida.
Para finalizar esta lista, temos a plataforma Need a Mom, que possibilita a quem se sente carente, ter acesso a uma mãe, que tanto cozinha e ajuda a arrumar a casa, como conversa e dá bons conselhos, tudo isto por 40 dólares à hora.
Aqui chegados, veem-nos à mente a questão com que iniciámos este texto, “Será que queremos falar com o nosso frigorífico?”. Em boa verdade, lá querermos não queríamos, todavia se num futuro próximo começar a ser preciso pagar-se para se ter companhia, nesse caso então sim.
Tendo como única opção passeadores, abraçadores, amigos e mães profissionais e com certificado, preferimos o frigorífico, que ainda assim é capaz de ser mais engraçado.
Imaginemos que nos dirigimos ao frigorífico e o cumprimentamos com um amigável “Então como é que vai isso?”. Ao que ele provavelmente nos responderia que ficou abalado com os acontecimentos da passada semana. Quais acontecimentos, questionaríamos nós. O apagão, pois claro, responderia ele. Acrescentaria ainda que desde esse momento tem andado como uma ansiedade terrível, constantemente cheio de medo de ficar desligado durante horas seguidas. Perante tal receio, dir-lhe-íamos que não se preocupasse, que isso são coisas que acontecem, que não vale a pena fazer dramas.
O mais certo era o frigorífico insistir que não era assim, que ele é que sabia pelo que tinha passado e para nós era muito fácil desdramatizar pois que não funcionamos a eletricidade. Com uma resposta destas, com certeza que não nos iríamos ficar, pois se houve alguém que foi prejudicado com o apagão fomos nós e não um mero frigorífico.
Aqui chegados, claro que o bicho nos iria atirar à cara que quando queremos água fresca ou congelar um produto do supermercado não lhe chamamos “mero frigorífico”, nessas ocasiões damos-lhe o seu devido valor. A resposta a tal era direta, pois claro que lhe damos valor, até porque o andamos a pagar a suaves prestações mensais, uma vez que nos custou um bom dinheiro. Nesse momento seria expectável que o frigorífico amuasse e se pusesse a descongelar, coisa que não dava jeito nenhum pois que a comida se iria estragar.
Posto isto, o mais aconselhável era pedirmos desculpa e dizer-lhe que gostamos dele desde o primeiro momento em que o vimos na loja de eletrodomésticos. Talvez aí o frigorífico arribasse um pouco, mas ainda assim com certeza que nos diria em tom magoado, que estávamos a fazer conversa fiada, que a torradeira também foi amor à primeira vista, a máquina lavar loiça foi a mesma coisa, e até o esquentador…
Nós diríamos que não senhor, que os outros eletrodomésticos são só úteis, nada mais do que isso, que não são como ele, o frigorífico, que é uma autêntica paixão. O problema de toda esta conversa, é que a torradeira que estava mesmo ao lado e o esquentador que também não estava longe, ouviram este discurso, e agora recusam-se a funcionar, acabaram-se as torradas com manteiga e os banhos de água quente.
Feito este exercício de imaginação, a resposta à questão “Será que queremos falar com o nosso frigorífico?” só pode ser uma: não. Nem com o frigorífico, nem com a torradeira, nem com passeadores, abraçadores, amigos e mães profissionais e com certificado, o que nós queríamos era que apesar das novas tecnologias, o mundo continuasse a ser um local normal, e não um sítio onde se passam coisas cada vez mais ridículas.
Terminamos com uma imagem do novo modelo de frigoríficos da Samsung, que pode ser adquirido pela módica quantia de 5290 Euros.
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