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A última bifana de Lisboa




Corre pela cidade um boato, segundo o qual o Presidente da Câmara Municipal iria proibir a venda ao público de bifanas, por respeito para com a cultura muçulmana, na qual não se consome carne de porco.
 
Há uns anos, toda a gente saberia imediatamente que esta história das bifanas só poderia ser um boato, ou, quando muito uma graçola, no entanto, aos dias de hoje há muito quem tenha acreditado piamente em tal parvoíce.
 
Perante isto, a questão que se nos impõe, é como é que em tão pouco tempo deixámos de ser pessoas sensatas, que sabiam perfeitamente fazer a distinção entre baboseiras e verdades, para chegarmos a este ponto, em que bastantes parecem ter perdido essa capacidade.


Como é evidente, este não é um fenómeno nacional, muito longe disso, no entanto, nós vamos limitar esta nossa profunda reflexão sobre tal situação ao território português, que a bem dizer, é o que melhor conhecemos.


Nós não somos sociólogos nem temos pretensões científicas, mas a nosso ver tudo isto terá começado algures pela década de 90 do século XX, quando chegaram a Portugal as televisões privadas.

Com esses canais televisivos surgiram um tipo de reportagens que até então nunca tinham existido. Com efeito, foi por essa data que as TV’s começaram a ir para as ruas perguntar a quem quer que fosse, o que pensava disto e daquilo.
 
Não é que antes já não houvesse reportagens de rua nas quais se interrogavam os passantes, todavia, as questões que então lhes eram colocadas, centravam-se em assuntos que as pessoas conheciam bem, como por exemplo, o aumento da carestia de vida.
 
A diferença que então surgiu, foi que as perguntas feitas às gentes que andavam pela rua nos seus afazeres, passaram a ser sobre todo e qualquer tema, mesmo sobre aqueles acerca dos quais as pessoas pouco ou nada sabiam.
 
Vejamos um caso exemplar. No ido ano de 1992, os países da então chamada CEE assinaram o Tratado de Maastricht, que criou as regras para a livre-circulação de produtos, pessoas, serviços e capitais na União Europeia.
Nesse contexto, uma equipa de reportagem de uma qualquer TV foi para a rua perguntar ao bom português o que pensava sobre tal tema. “Para si, o que é Maastricht?”, perguntou um repórter de então, a uma senhora que ia de caminho para a sua vida, questão essa a que ela prontamente respondeu o seguinte: “Para mim mais triste é uma filha bater na mãe”.
 
Aos questionários de rua seguiram-se os fóruns, programas que consistiam em ouvir a opinião de todo e qualquer cidadão sobre os mais diversos temas, tanto os mais básicos, como os da mais alta complexidade.
O conceito era simples, quem quer que estivesse em casa, no emprego ou em qualquer outro sítio, pegava no telefone e entrava em directo para dizer à nação o que lhe ia na alma, fosse lá sobre que assunto fosse.
 
De repente toda a gente opinava sobre educação, mesmo quem mal tinha a escolaridade mínima, subitamente ouviam-se coisas como “os alunos agora nem a tabuada sabem, dantes é que era, que até as linhas férreas sabiam”.
De repente toda a gente opinava sobre saúde, mesmo quem nunca tinha tido sequer uma gripe, subitamente ouviam-se coisas como “isto das vacinas só faz é mal. Foi o que me disse a minha vizinha de cima, que tem uma prima, que tem uma conhecida, que tomou uma vacina, e ficou coitadinha, entrevadinha.”
De repente toda a gente opinava sobre impostos, mesmo quem jamais tinha pedido ou passado um recibo no qual constasse o valor do IVA, subitamente ouviam-se coisas como “isto dos impostos é uma roubalheira, só servem é para eles se encherem.”
De repente toda a gente opinava sobre justiça, mesmo quem tinha um largo cadastro, subitamente ouviam-se coisas como “isto era mas é tudo metido na choldra, a ver se isto não se endireitava.”
Em síntese, de repente toda a gente opinava sobre tudo, mesmo quem não sabia nada de nada, subitamente ouviam-se barbaridades como se fossem verdades.
Se é certo que vozes de burro não chegam ao céu, não é menos certo que a partir dessa época passaram a chegar a toda a nação através da televisão.


Uma vez estabelecido o hábito de questionar quem quer que seja sobre o que quer que fosse, tornou-se aceitável em muitos e variados contextos, que qualquer um opinasse como entendesse, mesmo que fosse absolutamente óbvio que não sabia nada de nada do que estava a dizer.
Mas após isto surgiu uma outra situação, apareceram nas TV’s uns programas, que consistiam simplesmente no seguinte, uns quantos maduros a gritarem uns com os outros durante horas, a discutir se tinha sido penálti, falta e se porventura um jogo da bola tinha sido bem arbitrado ou era tudo uma grande trafulhice.
Tais programas tiveram enormes audiências, sendo que se vulgarizou no espaço público uma forma de discutir que antes nele não existia. Tal forma de discutir consistia em negar aos berros aquilo que toda a gente via.
 
Nesses programas não havia dia algum, em que um ou mais dos convidados não negassem uma falta mais do que evidente ou contestassem uma decisão arbitral certíssima.
 
O que nesses programas se vulgarizou, foi o puro sectarismo, ou seja, defender-se sempre a nossa facção contra tudo e contra todos, mesmo que para isso tenha de se recorrer a gritos e afirmar algo que se sabe ser falso ou incorrecto.


Por ter sido esta a história, quando entrámos no século XXI e as redes sociais se começaram a popularizar, por cá estava tudo mais do que pronto para iniciar as hostilidades.
E de facto não foi preciso muito tempo para toda a gente começar a elevar a voz e a debitar nas redes sociais as mais absolutas alarvidades sobre todo e qualquer assunto.
Mas, para além disso, formaram-se exércitos opinativos, sendo que uns gritam bem alto X, outros vociferam Y e há ainda mais uns quantos que clamam aos berros Z. Em resumo, ninguém se entende nem quer entender-se.
 
A coisa tomou tais proporções que as fileiras cerraram-se e quem está com X acredita em tudo o que X diz, quem está com Y jura por tudo o que Y afirma, e quem anda com Z em nada mais acredita que não seja o que Z advoga.
 
Aqui chegados, se eventualmente X, Y ou Z diz que o Presidente da Câmara Municipal vai proibir as bifanas ou outra coisa qualquer, como por exemplo, que há porcos voadores, logo milhares se seguem para afirmar o mesmo, pois acreditam piamente no que foi dito e são incapazes de fazer uso do mais elementar bom senso.
E pronto, com isto terminamos, que são horas de irmos comer, talvez optemos por mandar vir um kebab, ou não, pois se calhar alguns dos nossos compatriotas considerar-nos-iam traidores da pátria. Com efeito, hoje em dia o que se come também é uma questão nacional, como se pode verificar por estes bravos portugueses que apoiam a nossa selecção, e simultaneamente, o bacalhau.


Mas para que se veja que estas coisas não são só nossas, repare-se também no cartaz que a rapaziada húngara traz, aquando de um jogo contra a Irlanda. 



Agora é que vamos mesmo terminar, e com mais um cartaz. Neste caso, o dito foi visto num jogo entre a Georgia e Portugal, repare-se no grande compatriota da imagem abaixo, que defende convictamente o produto nacional em desfavor do estrangeiro. Força Portugal que a Georgina tem umas belas bifanas!


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