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O hipercapitalismo emocional, ou, como transformar a solidão num negócio de milhões




Em termos muito prosaicos, digamos que a expressão hipercapitalismo emocional se refere ao modo como as grandes empresas usam as emoções humanas para obter enormes lucros. Sendo que, actualmente, e como sempre, a mais rentável das emoções humanas é a solidão. Haver muita gente que se sente só, é uma autêntica mina para quem quer ganhar uma pipa de massa.

Há muito que se mercantilizam as emoções humanas, e em particular a solidão, pense-se por exemplo no clássico da literatura francesa “Au Bonheur des Dames”, romance escrito por Émile Zola em 1883.

Independentemente das venturas e desventuras dos seus principais personagens, o que romance de Zola retrata é a Paris de meados do século XIX, quando apareceram na capital francesa Les Grands Magasins, os antecessores dos nossos actuais centros comerciais.

Ergueram-se nesse tempo pelos boulevards de Paris grandes edifícios, como por exemplo as Galerias Lafayette, o Le Bon Marché, o Le Printemps e outros mais. Assim sendo, a felicidade (le bonheur) das damas estava assegurada. A partir desse momento as senhoras tinham à sua disposição gigantescas catedrais exclusivamente dedicadas ao consumo, não havendo portanto razões para se sentirem tristes ou infelizes.

Os dramas e melancolias das românticas e sonhadoras senhoras parisienses do século XIX, que deambulavam langorosamente pelos seus salões sem nada terem com que se entreterem nem ninguém com quem falar, estava resolvido, a solução era o consumo.

Desde esse instante, caso se sentissem solitárias e tristonhas, bastava-lhes pedir aos seus prósperos consortes, dinheiro para irem às compras aos Les Grands Magasins, estabelecimentos onde encontrariam as suas melhores amigas com as quais trocariam umas quantas ideias sobre vestidos, sapatos, reposteiros, bibelots e demais elegantes produtos que por ali se vendiam (e vendem).

Abaixo uma foto de uma loja de esquina em Lisboa, que se situa ali para os lados do Chiado, na qual em tempos idos se vendia felicidade em forma de frascos de perfume, e onde agora se vende café. O produto comercializado mudou, mas a fachada original, para nossa felicidade, permaneceu igual.


Se é certo que o capitalismo sempre se serviu da solidão para obter bons lucros, a novidade de agora é que os procedimentos são diferentes. Actualmente o modo mais rentável para se obter excelentes rendimentos já não é vender coisas, mas sim relacionamentos.

Em determinado momento, Mark Zuckerberg percebeu que havia muita gente que se sentia só e que ansiava por ter amigos, mas que não estava para se maçar a tentar encontrá-los. Vai daí, Zuckerberg inventou o Facebook, a primeira das redes sociais a transformar a amizade num serviço comercial.

Em pouco tempo não houve quem não passasse a ter milhares de amigos que não conhecia de lado nenhum e uns outros que conhecia, mas com os quais não dava jeito ir tomar um café. Ter milhares de amigos passou a ser visto como uma coisa boa, já ter apenas dez amigos passou a ser algo próprio de fracassados.

O que o Facebook e depois todas as outras redes sociais que lhe seguiram demonstraram, foi que a amizade é o melhor negócio do mundo. Zuckerberg tornou-se o homem mais rico do planeta.

Todavia, as pessoas podem sentir-se sós, mesmo que porventura tenham dez mil amigos digitais, por consequência disso, foram surgindo muitos outros serviços para nos arranjar companhia.

Com as chamadas Dating Apps acabou por normalizar-se a ideia de que é necessário pagar-se para se poder conhecer alguém com quem sair, com quem namorar ou quem ir para a cama e, assim sendo, apenas se sentiriam sós quem assim o quisesse, ou então quem fosse forreta e não estivesse disposto a gastar uns tostões para encontrar o seu par ideal.


O problema do Facebook, assim como das redes sociais que se lhe seguiram, é que são pessoas quem efectivamente tecla nos seus computadores e telemóveis e, assim sendo, rapidamente começaram a haver chatices.

As pessoas são como são, há quem ache isto e quem, pelo contrário, ache aquilo. Há gente que tem uma opinião e gente que tem a opinião exactamente oposta. Há quem pense A e quem pense Z, e há também os que dizem que é 8, os que juram que é 80 e os que afirmam as pés juntos que nem 8 nem 80.
Em síntese, as redes sociais, ao invés de serem como inicialmente anunciavam um local privilegiado para se fazer e manter amizades, tornaram-se com o passar do tempo num sítio propício a grandes discussões e um autêntico vazadouro de ódios vários.

Tal como as redes sociais, também as Dating Apps vendiam relações sem atrito, sem risco e sem desgaste. Os algoritmos prometiam match’s perfeitos, ou seja, vendiam um escape à solidão e o encontro com alguém com quem jamais teríamos arrelias e conflitos.
Todavia, com o passar dos anos, verificou-se que os serviços digitais de venda de amizades indestrutíveis e amores perfeitos não eram lá muito eficazes, pois que, e em última instância, quem tecla nos computadores ou telemóveis e quem aparece aos encontros amorosos pré-cozinhados são na realidade pessoas e não algoritmos.

As relações humanas, sejam estas de que tipo forem, tem um inconveniente, são complexas e sujeitas às mais diversas incertezas, coisas essas péssimas para qualquer negócio.
Quem investe o seu capital em serviços digitais que vendem eternas amizades e amores sublimes aos solitários quer ter certezas e lucros, não sendo portanto uma boa aposta financeira estar dependente dos instáveis humores humanos. Para que o negócio seja mesmo uma mina estável e duradoura, é necessário eliminar o factor humano e arranjar algo de mais seguro.

É precisamente por causa disso, que está a crescer uma nova economia cuja mercadoria é o afecto artificial. Nesse contexto, o que se vende agora são companheiros emocionais simulados, que nos respondem e conversam connosco sem exigir nada em troca, e que estão programados para não nos causarem o mais leve desgosto ou incómodo.

É uma companhia que não nos contradiz, não nos cansa e não nos abandona. Se porventura adquirirmos uma versão premium, teremos sempre alguém que se lembra dos nossos problemas, que nos envia mensagens empáticas e que nos dá amor e carinho com mais entusiasmo de que a nossa própria mãe.

As relações humanas estão a ser substituídas por simulacros e isso, por mais conveniente, prático e agradável que possa parecer ser, não é mesmo uma relação, é sim um consumo.

Porém, o hipercapitalismo emocional não quer tão-somente vender-nos companhia, quer igualmente convencer-nos de que as verdadeiras relações humanas são demasiado exigentes, pois que nestas por vezes existem conflitos e desentendimentos, e que é muito mais vantajoso e certo para nós, relacionarmo-nos com seres digitais.

Em síntese, as grandes plataformas digitais querem persuadir-nos de que a humanidade é uma coisa obsoleta, sobretudo em termos emocionais.


É um facto que os humanos às vezes são incómodos, noutras circunstâncias chatos e em determinadas ocasiões irritantes, mas dito tudo isso, são sempre mais reais e verdadeiros do que qualquer máquina, mesmo que nos mintam descaradamente.

A optimização emocional e relacional através de sistemas digitais irá com certeza convencer muita gente num futuro próximo, será sem dúvida um negócio próspero, ainda assim, nós vamos continuar a preferir as relações humanas, não porque sejam perfeitas, mas precisamente por não o serem.

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