Nós conhecemos o Professor António Castro Caeiro quando ele era ainda um rapaz novo, estávamos lá quando ele deu a sua primeira lição na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Depois disso tivemos umas quantas breves conversas, quando por mero acaso nos encontrávamos à noite à porta de certos lugares de um Bairro Alto que já não existe.
Tudo isso foi há muito tempo. A noite de outrora era um local onde sucediam coisas espantosas, a noite de agora é um sítio para se dormir e se descansar, pois no dia seguinte há que ir trabalhar. Em boa verdade, também isso é espantoso, pois dá-nos a ver como o tempo passou num ápice e o outrora como por magia se transformou no agora.
O que no Professor António Castro Caeiro vislumbrámos logo nesse primeiro dia em que o vimos, foi o seu intenso entusiasmo pela filosofia e a sua imensa crença no pensamento. Pela frente não tínhamos portanto um docente que vinha dar a matéria, mas sim alguém num estado de espanto contagiante.
Se pensarmos bem nisso, tudo o que existe é causa de espanto, tanto faz que seja o vasto universo, como uma migalha de pão no chão. Se pensarmos bem nisso, foi isso que nos ensinou e nunca mais esquecemos, por muito que tudo tenha acontecido há já tanto tempo.
Talvez disso possamos retirar uma definição do que é ser professor, um professor é alguém espantado que no seu espanto contagia e convida outros a espantarem-se com tudo o que existe.
Questionado numa entrevista sobre quem pode fazer filosofia, António Castro Caeiro respondeu assim: “Aqueles de entre nós que forem surpreendidos com o espanto da improbabilidade de estar vivos, os que forem susceptíveis de um amor que leva aos votos. Estes vêem surgir a promessa que vem do possível. Mas nenhum de nós esquece os momentos em que a vida nos tornou em nós. Quem não sente a ânsia do azul do verão eterno? Todos, talvez!”
Há algo que muitos professores esquecem, mas que se sabe desde o início dos tempos, ou seja, que é o espanto que nos faz querer saber e aprender. É o espanto o que nos desperta a curiosidade e o entusiasmo pela aprendizagem. É o espanto que faz com que tenhamos dúvidas, com que queiramos fazer perguntas e com que vamos em busca de respostas. Respostas essas que por sua vez suscitam outras perguntas e a consequente procura por novas respostas e assim sucessivamente até ao fim dos tempos.
Fazer uma pergunta pode ser a sua resposta. E perceber isto leva uma vida inteira.
“O vagar dos sacerdotes egípcios deu-lhes tempo livre para olhar as estrelas no céu. Ou terá sido porque a vida lhes corria de feição? E espantaram-se com fenómenos extraordinários, as fases da lua e o movimento aparente do sol. Depois, foi com assombro que se surpreenderam por tudo parecer estar na mesma. E, contudo, o tempo passa, e estamos a ser levados consigo para sempre.”
O espanto é parente do emaravilhamento e do fascínio, e para que todos esses sentimentos surjam é preciso haver tempo. Um tempo livre e detido em que haja espaço para que uma súbita presença apareça.
O espanto não se planeia nem está na página 54 de um qualquer manual escolar. O espanto dá-se mal com quem se agita e corre para cumprir à risca prazos e calendarizações. O espanto não gosta de deveres e de exigências, surge antes nesses momentos em que parecemos distraídos, em que andamos com a cabeça nas nuvens ou então naqueles instantes em que, por uma qualquer razão incompreensível, pressentimos algo de mágico e inabitual em nosso redor.
Não raras vezes, como que nos envergonhamos quando alguém nos chama a atenção por estarmos distraídos, por andarmos com a cabeça nas nuvens ou por parecermos estar num outro lugar que não aquele em que efetivamente estamos. No entanto, também não raras vezes, esses são momentos de espanto.
O espanto está por todo o lado mas para se o sentir é preciso não se ter vergonha. Não se ter vergonha de perder tempo distraídos a olhar para uma mera pedra até ver nela algo de espantoso. Não se ter vergonha de andarmos com a cabeça nas nuvens e com elas nos espantarmos. Não se ter vergonha de nos determos espantados por sentirmos um qualquer deus passeando na brisa da tarde.
Sá de Miranda, poeta português da Renascença, dizia “m'espanto às vezes, outras m'avergonho”, no caso dele não era sobre pedras ou nuvens que detinha o seu olhar, era antes sobre uma mulher.
Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma a si
e vou tresvaliando, como em sonho.
Isto passado, quando me desponho,
e me quero afirmar se foi assi,
pasmado e duvidoso do que vi,
m'espanto às vezes, outras m'avergonho.
Convidar e contagiar outros com o espanto, o mesmo é dizer, despertar noutros a curiosidade e a vontade de aprender. Tal é uma tarefa delicada. É evidente que há quem ensine num estilo fabril, transformando o processo de aprendizagem numa espécie de linha de montagem, onde a uma matéria se segue uma outra, e depois mais outra e ainda outra, até tudo o inicialmente previsto estar cumprido. Para se ser um eficiente funcionário do ensino, não se precisa estar espantado nem contagiar ninguém com o espanto, no entanto, não é de bravos e esforçados funcionários escolares de aqui falamos, mas sim de algo mais subtil e frágil.
Um fio de lã é a metáfora que Platão usou para falar de educação. A educação é como um fio de lã que se vai a pouco e pouco desenrolando, revelando a cada momento as novas e espantosas coisas contidas nesse novelo sem fim que é o mundo.
“Oxalá entre cada pessoa houvesse aquele fio de lã, de que nos fala Platão, por onde os pensamentos pudessem escorrer como gotas de água de pessoa para pessoas, para assim nos sintonizarmos uns pelos outros”.
Abaixo um mosaico do século I onde vemos Platão ensinando astronomia na sua academia.
Há um poema do britânico William Martin (1925-2010) que nos fala de espanto, é este:
Não peçam aos vossos filhos
que aspirem a ter vidas extraordinárias.
Tal aspiração poderá parecer admirável,
mas é a via dos tolos.
Ajudem-nos, em vez disso, a descobrir o espanto
e a maravilha de uma vida banal.
Mostrem-lhes o gozo de saborear
tomates, maçãs e pêras.
Mostrem-lhes como chorar
aquando da morte de animais de estimação e pessoas.
Mostrem-lhes o prazer infinito
que há no toque de uma mão.
E façam que, para eles, o banal se encha de vida.
O extraordinário encarregar-se-á de si mesmo.
Os gregos antigos inventaram a palavra "entusiasmo" que, traduzida à letra, significa "ser tomado por Deus, por dentro, pelo lado de dentro." Sendo que, esses mesmos antigos gregos, diziam que o entusiasmo por se aprender nasce do espanto.
Questionado numa entrevista sobre o ensino, a profissão de professor e a preparação dos alunos, António Castro Caeiro respondeu do seguinte modo: “Não estão preparados para discutir, não têm aquele treino que os jesuítas antigamente tinham. Ou os jogos florais em que uma pessoa era bombardeada por ataques, não pessoais mas teóricos, a uma tese e vice-versa, mudavam as teses e uma pessoa tinha de defender duas teses contraditórias. O princípio do contraditório está aí encerrado. As pessoas não sabem pensar em voz alta, é muito difícil exporem oralmente um problema. Sinto que têm muita dificuldade em fazer uma pergunta que exprima um problema que se lhes põe. A preparação média das pessoas é má, não estão habituadas a ler um livro de uma ponta à outra. Tenho uma enorme dificuldade porque estão à espera da matéria. Um professor meu dizia: aqui não há matéria, só há espírito.”
António Castro Caeiro fez recentemente uma série de conferências no Centro Cultural de Belém sobre os sentimentos, numa delas dedicou-se a falar sobre o espanto, que tal como as outras pode ser ouvida em podcast, a partir do link abaixo:
E com isto, finalizamos, tão espantados como sempre.
Comentários
Enviar um comentário