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Cristo, vem cá abaixo ver isto...


Estando em Lisboa, é com frequência que vemos Cristo do lado de lá, na outra margem do Tejo, junto à Ponte 25 de Abril, no alto de Almada. Em termos estéticos, não é uma visão particularmente bela, pois a enorme estátua é um tanto ou quanto desengraçada, e a sua única virtude, se isso lhe podemos chamar, é a de ser grande. Em resumo, o chamado Cristo Rei é grande, mas não é grande coisa.

Na verdade, se pensarmos bem nisso, cá pela nossa terra, há poucas imagens de Cristo que se possam considerar esteticamente extraordinárias. Há uma no Porto, na Igreja da Misericórdia, cujo título é “Fons Vitae” (Fonte de Vida).

Como poderão verificar mais abaixo, nessa imagem o sangue jorra tal e qual como a água o faz numa fonte. Das chagas de Cristo morto escorre o sangue que se acumula numa taça. Cristo na cruz está ladeado por Maria e por S. João, que choram a sua morte.

Em redor da taça ajoelham-se em oração várias personagens, das quais se destacam o rei D. Manuel I, a sua segunda esposa e os infantes e infantas nascidos desse casamento. Existem outras figuras, são nobres, burgueses e, à direita, mostra-se um conjunto de mulheres, algumas delas possivelmente religiosas.

Toda uma colectividade se encontra aqui espelhada e o simbolismo do quadro é por demais evidente. No fundo, “Fons Vitae” representa Cristo como a fonte que alimenta, nutre e explica toda a estrutura da sociedade portuguesa daquela época.


“Fons Vitae” é sem sombra de dúvida uma imagem excepcional, pois remete-nos imediatamente para o martírio de Cristo e para a sua mensagem. Mas dito isto, talvez não haja em toda a História da Arte imagem de Cristo mais pungente, do que aquela que se encontra na pequena e bonita cidade alsaciana de Colmar.

Colmar, que hoje é francesa, já foi alemã. Colmar é um daqueles sítios de fronteira, que conforme os ventos, ora bem que tem uma nacionalidade, ora bem que tem outra. Em 1673 a Alemanha é obrigada a ceder Colmar à França, em 1871 a cidade volta à Alemanha, em 1918 retorna a França, em 1940 regressa ao domínio alemão, e de 1945 até hoje é novamente francesa.

Em qualquer dos casos, por inícios do século XVI, o mestre alemão Matthias Grünewald terá andando pela região da Alsácia. É por assim ter sido, que nos dias de hoje, ao entrarmos numa antiga capela de Colmar, nos deparamos com um retábulo por si pintado.
No painel central do retábulo uma crucificação, uma como outra não existe. Nela vemos todo o imenso sofrimento de Cristo. A sua dor é quase insuportável à vista, todo o seu corpo, assim como o seu rosto, se retorce e parece estar totalmente coberto de feridas e chagas. Vejamos um pormenor.


Não menos expressivas que o seu rosto e corpo, são as suas mãos.


E, por fim, também os pés.


O retábulo de Colmar estava originalmente colocado numa enfermaria adjacente a um mosteiro, local onde os religiosos cuidavam dos doentes, sendo que, nesses distantes tempos, as doenças eram terríveis e as agonias dos enfermos atrozes.

Aos que eram internados pouca esperança lhes restava, no entanto, ao contemplarem a imagem de Cristo na sua dor, como que se identificavam com o Salvador no seu sofrimento, coisa que lhes traria algum consolo e confirmava a fé e a crença na vida eterna.

São incontáveis as imagens de Cristo existentes, mas o facto é que as melhores delas, o que sempre quiseram foi falar de forma significativa a quem as olhava, tal e qual a “Fons Vitae” falava ao Portugal quinhentista ou o retábulo de Matthias Grünewald falava aos que desta vida plenos de dores se despediam.

É certo que vemos imagens de Cristo por muitos sítios, sobretudo em locais religiosos, todavia, muitas delas pouco ou nada nos dizem, a sua mensagem não nos chega, ou porque as imagens não são grande coisa, ou porque perdemos a capacidade de as escutar.

No já referido caso do Cristo Rei, a imagem não é grande coisa, é demasiado impositiva, pública, fria e rígida para nos despertar qualquer emoção ou sentimento, ou nos transmitir uma mensagem. O mais que faz é causar-nos um certo pasmo pelo seu tamanho. No entanto, o facto é que ao longo dos séculos nos fomos habituando às imagens de Cristo, e dada essa habituação, de algum modo também fomos perdendo a capacidade de as escutar, mesmo que estas tivessem uma mensagem a dar-nos.

Terá sido por isso, que em 1889, o artista belga James Ensor pintou um quadro que intitulou “A Entrada de Cristo em Bruxelas”. A pintura retrata um desfile de carnaval com máscaras, disfarces e figuras grotescas, onde Cristo se mistura com a multidão.

A obra é considerada uma crítica à sociedade hipócrita e falsa dessa época, em que publicamente todos advogavam viver segundo a moral cristã, mas em que na prática todos viviam segundo os seus próprios interesses e desejos.

A obra causou um enorme escândalo e a sua exposição pública foi proibida, sendo exibida apenas a partir de 1920. Na pintura Cristo quase não se vê, no entanto, ele está bem no centro do quadro, rodeado pela multidão e envolto numa auréola amarela.


Com “A Entrada de Cristo em Bruxelas” James Ensor não pretendia ser satírico, mas sim reactualizar a mensagem cristã, ou seja, reavivar-lhe o seu significado de modo a que as gentes do seu tempo a voltassem a escutar.

Depois de James Ensor, houve uns quantos outros artistas que tentaram renovar a iconografia cristã, um deles foi o norte-americano Chris Burden. Em 1974 realizou uma performance que ficaria para a história, “Trans-Fixed”.

Nessa performance Burden foi literalmente fixado a um carro por meio de pregos nas palmas das mãos. Depois de Burden pregado, o carro saiu de uma garagem e foi exibido ao público. O motor foi acelerado a toda velocidade, ouviam-se os gritos de dor do artista.

Segundo o que disse o artista, as imagens de Cristo crucificado são comuns na nossa sociedade e ninguém pensa verdadeiramente no que elas nos dizem, a sua performance terá sido a forma que encontrou de reavivar a mensagem cristã.


Mais recentemente, em 2010, o bispo francês de Gap e Embrun, Monsenhor Jean Michel di Falco, decidiu encomendar ao artista britânico Paul Fryer uma obra de arte para a sua catedral, mais concretamente, uma escultura de Cristo.

A obra foi colocada ao fundo da igreja, no entanto, o corpo de Cristo não estava pregado na cruz, mas abandonado numa cadeira eléctrica, com as amarras soltas como se tivesse sofrido a descarga fatal, os braços abertos e a coroa de espinhos ainda na cabeça.

O título dessa escultura é “Pietà” e acerca disso Paul Fryer disse o seguinte: “O significado está aberto à interpretação. Mas o significado original da palavra latina Pietà é piedade. Ter piedade é uma parte crucial da vida; verdadeiros seres humanos sentem piedade uns dos outros.”


Feita esta excursão por algumas imagens de Cristo que tentam reavivar a sua mensagem, regressemos a Lisboa, cidade onde iniciámos este nosso texto. 

Numa capela dessacralizada do século XVIII, que fica na Rua da Junqueira, mais para o lado de Alcântara que para o de Belém, foi onde o artista espanhol Carlos Aires instalou uma obra que renova a mensagem de Cristo.

Ao centro, no altar, vemos uma escultura do Cristo crucificado, igual a tantas outras que já vimos ao longo da vida. Contudo, na parte posterior do nicho onde a escultura de Cristo se encontra, vemos passar imagens do nosso tempo. Vemos gentes que atravessam estradas, imagens de explosões, fogos e guerras, e vemos também imagens geradas digitalmente. Cristo aparece-nos imerso no presente.


A obra "Trindade" sugere-nos uma multiplicidade de significados, mas independentemente disso, é um retrato simbólico da sociedade actual e das doenças que a atormentam. De algum modo consola-nos das desgraças que quotidianamente vemos pelo mundo e convida-nos à piedade diante da vida humana, apresenta-se-nos portanto como uma revitalização da mensagem de Cristo. 

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