Avançar para o conteúdo principal

De um jardim vê-se a cidade e o mundo, um Pavilhão Branco e também a 2ª circular



A cidade fala-nos a várias vozes, pois tem uma personalidade polifónica. Mas a cidade não só nos fala a várias vozes, como são também muitas as linguagens que ela usa, umas entendíveis, outras nas margens de mundos incognoscíveis.
Imaginemos que estamos junto a uma grande via de circulação rodoviária, pensemos por exemplo na 2ª circular em Lisboa. Aí, a cidade diz-nos o mesmo de sempre e usa a linguagem do quotidiano, ou seja, a do intenso trânsito, da contínua agitação, e das deslocações casa trabalho e vice-versa. Aí a cidade disserta sobre ter pressa, correrias, obrigações e afazeres, tudo coisas do mundo diário e perfeitamente entendíveis.
Essa cidade junto à 2ª circular fala-nos de gente cansada pelo seu labor, de gente que perde tempo porque o trânsito é muito e lento, e de constantes idas e vindas de cá para lá e depois ao contrário, essa cidade fala-nos de corpos que trabalham e se afadigam.

Mas basta andarmos uns poucos metros e a cidade começa logo a dizer-nos coisas distintas e a expressar-se numa linguagem diferente. É num lugar não muito distante da dita 2ª circular, que se situa o Palácio Pimenta, um edifício de veraneio que nos veio do século XVIII, e que se encontra enquadrado pelos jardins que restam de uma antiga quinta senhorial que o circundava.
A lenda atribui a construção do Palácio Pimenta a D. João V, que o teria encomendado de modo a aí instalar Paula Teresa da Silva, madre superiora do Mosteiro de Odivelas, que o monarca tornara sua amante. O palácio terá sido portanto o cenário para os encontros amorosos do rei, no entanto, aos dias de hoje, quem lá encontramos instalado é o Museu da Cidade de Lisboa.

É curioso passearmos pelos jardins do antigo Palácio Pimenta e observarmos a apenas umas poucas dezenas de metros, o trânsito automobilístico que lentamente desfila pela 2ª circular. Visto dessa perspectiva, parece-nos até um absurdo contra senso todo aquele contínuo ir e vir das gentes.
Circulamos pelos jardins e adentramo-nos nos seus espaços, sendo que, ao fazê-lo, logo nos deparamos com um pequeno lago artificial no qual encontramos esculturas de sereias e de tritões. Ao centro vemos um obelisco.
Aqui a cidade usa uma outra linguagem e fala-nos de outras coisas que não da labuta quotidiana e de idas e vindas constantes. Aqui a cidade usa a linguagem da arte para nos falar de seres imaginários originários de mares que jamais vimos.

Mesmo que cansativa, a linguagem do dia a dia é facilmente compreensível. Percebemos sem dificuldade o que temos para fazer, aonde temos de ir, e que obrigações há para cumprir. Olhamos para os automóveis que passam na 2ª circular e, ainda que vistos daqui nos pareçam um contra senso, sabemos o que nos dizem: há que trabalhar, há que ir às compras, há entregas a fazer, mercadorias a transportar e há tudo o mais de que se faz a vida diária.

Já a linguagem da arte não é tão imediatamente perceptível. Ela fala-nos nos jardins do Palácio Pimenta de seres imaginários originários de mares que nunca vimos, e por assim ser, é natural que nos interroguemos sobre o que estes nos dizem.
Os automóveis que passam dizem-nos coisas evidentes, a sua linguagem é clara, contudo, com a arte e com os seres imaginários através dela criados, já não se passa o mesmo. A sua mensagem não é de modo algum tão óbvia.

Se continuarmos a circular pelos jardins do palácio e nos formos ainda mais neles adentrando, teremos pela frente exuberantes pavões, muitos. Mais do que isso, escutaremos o seu permanente grasnar. Os sons e os tons coloridos dos bichos nada têm de vulgar ou comum, o que nos dizem não pertence ao nosso quotidiano. Percebemos então o quanto estranha, surpreendente e fascinante pode ser a linguagem da natureza, e mais ainda quando se expressa e manifesta bem no centro de uma cidade.

Mesmo que não compreendamos a linguagem da natureza, porventura não a estranharíamos tanto se estivéssemos como turistas num qualquer safari, na selva ou numa floresta tropical, mas aqui, no meio da cidade, onde os automóveis passam ali mesmo ao lado e as pessoas se dirigem apressadamente para os seus compromissos, as cores dos pavões e os seus grasnares são incompreensíveis, coisas profundamente bizarras.  


Se a linguagem da arte e a da natureza, por si só já contrastam fortemente com a linguagem diária e habitual da cidade, mais contrasta ainda a linguagem específica da chamada arte contemporânea.
Percorrendo o jardim do Palácio Pimenta até ao seu extremo sul, encontraremos escondido por entre a vegetação o Pavilhão Branco, um espaço expositivo dedicado à arte actual.
O pavilhão foi desenhado pela arquitecta italiana Daniela Ermano em 1995. O seu traço é neomoderno e as fachadas maioritariamente transparentes, permitindo desse modo o contacto com o exterior e causando no visitante uma sensação de estar dentro e fora ao mesmo tempo.
 
Ao entrarmos no Pavilhão Branco, deparamo-nos com uma mostra da jovem artista portuguesa Lúcia Prancha, à qual ela deu o título “Hilda”.
Através de filmes, tecidos, cabelos e objetos de natureza diversa, “Hilda” mergulha nos territórios do corpo, do desejo e da linguagem, tendo por inspiração a escritora e poeta brasileira Hilda Hilst (1930–2004).
O corpo, tal como a cidade, fala-nos igualmente a várias vozes. Há o corpo de todos os dias, esse que nos fala com a linguagem dos afazeres, dos compromissos, das tarefas, das deslocações e das obrigações, mas há uma outra voz e uma outra linguagem com que o corpo nos fala, e é a essa voz que a mostra “Hilda” se refere.
Em boa verdade, essa outra voz e outra linguagem com que o corpo nos fala, vem de um lugar indeterminado, que parece até estar no exterior da linguagem. É dito na exposição que se acede a tal sítio por rumores, desejos, buracos, pulsões, tesões e temores. Provavelmente D. João V e a Madre Superiora do Mosteiro de Odivelas conheciam essa linguagem.
Dir-se-ia que essa é uma estranha linguagem, uma que é repetidamente voltada e revirada do avesso, e que nesse contínuo desalinho se vai rasgando e esburacando. Palavras e frases rasgadas e esburacadas essas, que nos remetem para mares imaginários no interior dos nossos corpos. Corpos que quando falam nessa linguagem distinta da quotidiana, se metamorfoseiam em seres incompreensíveis e jamais vistos.

Pavões grasnam com suas cores por entre as árvores de um jardim, num lago veem-se sereias, diz a lenda que estamos num palácio barroco erguido a mando de um rei para a sua amante, a madre superiora de um mosteiro. Uma madre superiora e um rei cujos corpos falam uma linguagem diferente da que falam no dia a dia nas importantes funções que exercem. Uma linguagem onde palavras e frases se rasgam, transportando-nos para um lugar fora da linguagem, um sítio onde a gramática é feita de rumores, desejos, buracos, pulsões, tesões e temores. Não muito longe, logo adiante, automóveis rolam transportando corpos que vão e vêm de e para os seus lares e ofícios, onde a linguagem é a de todos os dias.
Tudo isso e muito mais são as diversas linguagens da cidade, as suas múltiplas vozes, a sua polifonia, que é feita de histórias de agora e de antigamente, de corpos que trabalham e de outros que se desejam, assim como de seres imaginários, de obras de arte e, por fim, de segundas circulares e de jardins.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Os professores vão fazer greve em 2023? Mas porquê? Pois se levam uma vida de bilionários e gozam à grande

  Aproxima-se a Fim de Ano e o subsequente Ano Novo. A esse propósito, lembrámo-nos que serão pouquíssimos, os que, como os professores, gozam do privilégio de festejarem mais do que uma vez num mesmo ano civil, o Fim de Ano e o subsequente Ano Novo. Com efeito, a larguíssima maioria da população, comemora o Fim de Ano exclusivamente a 31 de dezembro e o Ano Novo unicamente a 1 de janeiro. Contudo, a classe docente, goza também de um fim de ano algures no final do mês de julho, e de um Ano Novo para aí nos princípios de setembro.   Para os nossos leitores cuja agilidade mental eventualmente esteja toldada pelos tantos comes e bebes ingeridos na época natalícia, explicitamos que o fim do ano letivo é em julho e o início em setembro. É disso que aqui falamos, esclarecemos nós, para o caso dessa subtil alusão ter escapado a alguém.   Para além da classe docente, são poucos os que têm esta oportunidade, ou seja, a de ter múltiplas passagens de ano num só e mesmo ano...

Que bela vida a de professor

  Quem sendo professor já não ouviu a frase “Os professores estão sempre de férias”. É uma expressão recorrente e todos a dizem, seja o marido, o filho, a vizinha, o merceeiro ou a modista. Um professor inexperiente e em início de carreira, dar-se-á ao trabalho de explicar pacientemente aos seus interlocutores a diferença conceptual entre “férias” e “interrupção letiva”. Explicará que nas interrupções letivas há todo um outro trabalho, para além de dar aulas, que tem de ser feito: exames para vigiar e corrigir, elaborar relatórios, planear o ano seguinte, reuniões, avaliações e por aí afora. Se o professor for mais experiente, já sabe que toda e qualquer argumentação sobre este tema é inútil, pois que inevitavelmente o seu interlocutor tirará a seguinte conclusão : “Interrupção letiva?! Chamem-lhe o quiserem, são férias”. Não nos vamos agora dedicar a essa infrutífera polémica, o que queremos afirmar é o seguinte: os professores não necessitam de mais tempo desocupado, necessitam s...

Se a escola não mostrar imagens reais aos alunos, quem lhas mostrará?

  Que imagem é esta? O que nos diz? Num mundo em que incessantemente nos deparamos com milhares de imagens desnecessárias e irrelevantes, sejam as selfies da vizinha do segundo direito, sejam as da promoção do Black Friday de um espetacular berbequim, sejam as do Ronaldo a tirar uma pastilha elástica dos calções, o que podem ainda imagens como esta dizer-nos de relevante? Segundo a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, no pré-escolar a idade média dos docentes é de 54 anos, no 1.º ciclo de 49 anos, no 2.º ciclo de 52 anos e no 3.º ciclo e secundário situa-se nos 51 anos. Feitas as contas, é quase tudo gente da mesma criação, vinda ao mundo ali entre os finais da década de 60 e os princípios da de 70. Por assim ser, é tudo gente que viveu a juventude entre os anos 80 e os 90 e assistiu a uma revolução no mundo da música. Foi precisamente nessa época que surgiu a MTV, acrónimo de Music Television. Com o aparecimento da MTV, a música deixou de ser apenas ouvida e pa...

Avaliação de Desempenho Docente: serão os professores uns eternos adolescentes?

  Há já algum tempo que os professores são uma das classes profissionais que mais recorre aos serviços de psicólogos e psiquiatras. Parece que agora, os adolescentes lhes fazem companhia. Aparentemente, uns por umas razões, outros por outras completamente diferentes, tanto os professores como os adolescentes, são atualmente dos melhores e mais assíduos clientes de psicólogos e psiquiatras.   Se quiserem saber o que pensam os técnicos e especialistas sobre o que se passa com os adolescentes, abaixo deixamos-vos dois links, um do jornal Público e outro do Expresso. Ambos nos parecem ser um bom ponto de partida para aprofundar o conhecimento sobre esse tema.   Quem porventura quiser antes saber o que pensamos nós, que não somos técnicos nem especialistas, nem nada que vagamente se assemelhe, pode ignorar os links e continuar a ler-nos. Não irão certamente aprender nada que se aproveite, mas pronto, a escolha é vossa. https://www.publico.pt/2022/09/29/p3/noticia/est...

A propósito de “rankings”, lembram-se dos ABBA? Estavam sempre no Top One.

Os ABBA eram suecos e hoje vamos falar-vos da Suécia. Apetecia-nos tanto falar de “rankings” e de como e para quê a comunicação social os inventou há uma boa dúzia de anos. Apetecia-nos tanto comentar comentadores cujos títulos dos seus comentários são “Ranking das escolas reflete o fracasso total no ensino público”. Apetecia-nos tanto, mas mesmo tanto, dizer o quão tendenciosos são e a quem servem tais comentários e o tão equivocados que estão quem os faz. Apetecia-nos tanto, tanto, mas no entanto, não. Os “rankings” são um jogo a que não queremos jogar. É um jogo cujo resultado já está decidido à partida, muito antes sequer da primeira jogada. Os dados estão viciados e sabemos bem o quanto não vale a pena dizer nada sobre esse assunto, uma vez que desde há muito, que está tudo dito: “Les jeux sont faits”.   Na época em que a Inglaterra era repetidamente derrotada pela Alemanha, numa entrevista, pediram ao antigo jogador inglês Gary Lineker que desse uma definição de futebol...

Aos professores, exige-se o impossível: que tomem conta do elevador

Independentemente de todas as outras razões, estamos em crer que muito do mal-estar que presentemente assola a classe docente tem origem numa falácia. Uma falácia é como se designa um conjunto de argumentos e raciocínios que parecem válidos, mas que não o são.   De há uns anos para cá, instalou-se neste país uma falácia que tarda em desfazer-se. Esse nefasto equivoco nasceu quando alguém falaciosamente quis que se confundisse a escola pública com um elevador, mais concretamente, com um “elevador social”.   Aos professores da escola pública exige-se-lhes que sejam ascensoristas, quando não é essa a sua vocação, nem a sua missão. Eventualmente, os docentes podem até conseguir que alguns alunos levantem voo e se elevem até às altas esferas do conhecimento, mas fazê-los voar é uma coisa, fazê-los subir de elevador é outra.   É muito natural, que sinta um grande mal-estar, quem foi chamado a ensinar a voar e constate agora que se lhe pede outra coisa, ou seja, que faça...

Pode um saco de plástico ser belo?

  PVC (material plástico com utilizações muito diversificadas) é uma sigla bem gira, mas pouco usada em educação. A classe docente e o Ministério da Educação adoram siglas. Ele há os os QZP (Quadros de Zona Pedagógica), ele há os NEE (Necessidades Educativas Especiais), ele há o PAA (Plano Anual de Atividades), ele há as AEC (Atividades de Enriquecimento Curricular), ele há o PASEO (Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória), ele há a ADD (Avaliação do Desempenho Docente), ele há os colegas que se despedem com Bjs e Abc, ele há tantas e tantas siglas que podíamos estar o dia inteiro nisto.   Por norma, a linguagem ministerial é burocrática e esteticamente pouco interessante, as siglas são apenas um exemplo entre muitos outros possíveis. Foi por isso com surpresa e espanto, que num deste dias nos deparámos com um documento da DGE (Direção Geral de Educação) relativo ao PASEO, no qual se diz que os alunos devem “aprender a apreciar o que é belo” .  Assim, sem ...

Luzes, câmara, ação!

  Aqui vos deixamos algumas atividades desenvolvidas com alunos de 2° ano no sentido de promover uma educação cinematográfica. Queremos que aprendam a ver imagens e não tão-somente as consumam. https://padlet.com/asofiacvieira/q8unvcd74lsmbaag

És docente? Queres excelente? Não há quota? Não leves a mal, é o estilo minimal.

  Todos sabemos que nem toda a gente é um excelente docente, mas também todos sabemos, que há quem o seja e não tenha quota para  como tal  ser avaliado. Da chamada Avaliação de Desempenho Docente resultam frequentemente coisas abstrusas e isso acontece independentemente da boa vontade e seriedade de todos os envolvidos no processo.  O processo é a palavra exata para descrever todo esse procedimento. Quem quiser ter uma noção aproximada de toda a situação deverá dedicar-se a ler Franz Kafka, e mais concretamente, uma das suas melhores e mais célebres obras: " Der Prozeß" (O Processo) Para quem for preguiçoso e não quiser ler, aqui fica o resumo animado da Ted Ed (Lessons Worth Sharing):   Tanto quanto sabemos, num agrupamento de escolas há quota apenas para dois a cinco docentes terem a menção de excelente, isto dependendo da dimensão do dito agrupamento. Aparentemente, quem concebeu e desenhou todo este sistema de avaliação optou por seguir uma de...

Dar a matéria é fácil, o difícil é não a dar

  “We choose to go to the moon in this decade and do the other things, not because they are easy, but because they are hard."   Completaram-se, no passado dia 12 de setembro, seis décadas desde que o Presidente John F. Kennedy proferiu estas históricas palavras perante uma multidão em Houston.  À época, para o homem comum, ir à Lua parecia uma coisa fantasiosa e destinada a fracassar. Com tantas coisas úteis e prementes que havia para se fazer na Terra, a que propósito se iria gastar tempo e recursos para se ir à Lua? Ainda para mais, sem sequer se ter qualquer certeza que efetivamente se conseguiria lá chegar. Todavia, em 1969, a Apolo 11 aterrou na superfície lunar e toda a humanidade aclamou entusiasticamente esse enorme feito. O que antes parecia uma excentricidade, ou seja, ir à Lua, é o que hoje nos permite comunicar quase instantaneamente com alguém que está do outro lado do mundo. Como seriam as comunicações neste nosso século XXI, se há décadas atrás ninguém tive...