Continuamos a nossa série dedicada a fitas de Verão e vamos a Roma, a cidade eterna, o título original do filme de hoje é “Caro Diario”. ´
A história desta película, se porventura tal história existe, é simples, num primeiro momento Nanni Moretti, que é simultaneamente o realizador, o actor e o principal personagem do filme, passeia-se numa Vespa por uma Roma escaldante e deserta, durante os quentes dias do Verão de 1994.
Mais tarde, viaja com um amigo pela Sicília, e na terceira e última parte do filme consulta médico atrás de médico, à procura de solução para uma irritação cutânea que lhe provoca muita comichão.
Vejamos a primeira parte de “Querido Diário”, na qual Nanni Moretti se passeia por diversos locais de Roma. Quem espera ver na tela o Coliseu, o Panteão, a Fontana di Trevi, a Piazza Navona ou as escadarias da Piazza di Spagna, desengane-se, a Roma de Moretti é outra.
“Il quartiere che mi piace più di tutti è la Garbatella”, o bairro de que mais gosto é da Garbatella, diz-nos Nanni. A Garbatella é um bairro operário que nasceu na segunda década do século XX e que possui um aspecto peculiar, há inúmeras pequenas hortas, roupas que secam ao sol em varais improvisados e imensos pires com comida nos passeios para alimentar os muitos gatos vadios que habitam nas suas ruas e becos. O que também não falta são as típicas trattorie romanas, que são muito diferentes das do centro da cidade, que estão concebidas para turistas.
“Il quartiere che mi piace più di tutti è la Garbatella”, é com estas simples e belas palavras, que Nanni Moretti começa a sua ode a Roma, à sua leveza, humildade e alegria. Uma Roma longe do esplendor do Império, das fontes barrocas, das imensas basílicas e dos esplêndidos mármores dos seus templos. Ao som de "I'm Your Man" de Leonard Cohen, Moretti passeia-se na sua Vespa dizendo que "...eu percorro os lugares populares".
Em determinado momento do seu passeio pela Garbatella, Moretti entra na casa de um habitante do bairro e este questiona-o sobre o que faz por aqueles lados. Nanni responde-lhe que está a fazer um filme, ao que o habitante do bairro lhe pergunta qual é o tema do filme. A esta pergunta Nanni diz não saber responder, mas depois acrescenta que a fita talvez possa vir a ser um musical sobre um pasteleiro trotskista na Itália conformista dos anos 50.
Um musical sobre um pasteleiro trotskista na Itália conformista dos anos 50, é provavelmente uma das melhores ideias de sempre para um filme, que infelizmente nunca chegou a ser realizado, pois nunca ninguém quis financiar a sua produção. Em síntese, fica como uma espécie de utopia cinematográfica.
Nanni lá vai continuando a deambular pelas ruas na sua vespa e reflecte brevemente sobre a especulação imobiliária, depois detém-se num semáforo. Ao seu lado, também parado, está um automóvel descapotável. Ocasião óptima para Moretti descer da sua motoreta, se dirigir ao desconhecido condutor e lhe fazer uma palestra sobre o facto de que, por mais que tentemos, nunca conseguiremos ter afinidades com a maioria das pessoas, mas sim e apenas com uma minoria.
“Sai cosa stavo pensando? Io stavo pensando una cosa molto triste: cioè che io, anche in una società più decente di questa, mi troverò sempre con una minoranza di persone. Io credo nelle persone, però non credo nella maggioranza delle persone: mi sa che mi troverò sempre a mio agio e d'accordo con una minoranza.”
De facto é muito triste, mas ainda assim verdade. Provavelmente, tal e qual como Nanni, também nós jamais conseguiríamos ter a mínima afinidade com alguém que conduz um automóvel descapotável de alta cilindrada, no entanto, certamente que nos entenderíamos bem com um pasteleiro trotskista da Itália conformista dos anos 50.
Dito isto, é o momento certo para vermos um excerto do filme, aquele que se inicia com Nanni Moretti a passear pelo bairro de Garbatella e finda com a palestra ao feliz proprietário da magnífica viatura descapotável.
Na segunda parte de “Caro Diario” Nanni Moretti encontra-se numa longínqua ilha italiana com um velho amigo. Passeiam-se junto ao mar e deixam-se estar em esplanadas enquanto conversam sobre filósofos esotéricos, como por exemplo, Hans Magnus Enzensberger.
Hans Magnus Enzensberger, grande escritor e intelectual alemão, dedicou uma vasta parte da sua obra à televisão e ao seu papel na sociedade. A propósito da TV explorou o conceito de "analfabeto secundário", termo que descreve pessoas que, apesar de alfabetizadas, são incapazes de interpretar criticamente os meios de comunicação, como por exemplo, a televisão.
Além disso, Enzensberger escreveu também sobre a televisão definindo-a como sendo um "meio nulo" e com "absoluta falta de conteúdo". Argumentou que muitas das críticas à televisão são irrelevantes, porque não levam em consideração, que mesmo quando aborda temas sérios, profundos ou graves, a televisão mais não é que um meio de entretenimento e de mero consumo passivo de informação.
Era toda esta teoria, que o amigo explicava a Nanni Moretti enquanto estavam numa esplanada, mas esse mesmo amigo, acrescentou ainda que ele próprio não podia passar um dia que fosse sem ver televisão, que a TV tem algo de mágico.
Nisto, Nanni levanta-se e entra no interior do bar, um aparelho de TV transmite um filme antigo onde se vê a grande Silvia Mangano a dançar um mambo. Moretti entusiasma-se e entra na dança, e por aí vemos com toda a evidência, como de facto a televisão é uma caixa mágica.
A terceira parte do filme trata das estranhas comichões de Nanni Moretti e das suas idas aos médicos, todavia, tudo isso já se passa no Inverno, e como estes nossos textos se dedicam a fitas de Verão, vamos ignorar essa secção de “Caro Diario”.
Deixámos de parte a terceira parte, mas não vamos finalizar sem voltarmos ao início, ou seja, à primeira parte. Nas suas deambulações por Roma com a sua Vespa, a dado momento Nanni Moretti vai até à praia.
Aparentemente não é uma viagem despropositada, pois esse é um destino comum durante o Verão, todavia, o objectivo de Nani não é banhar-se nem apanhar sol. Nanni vai à praia como quem vai a um cemitério prestar homenagem a alguém que já partiu.
A praia situa-se em Óstia, um bairro periférico de Roma, onde na madrugada de 1 de novembro de 1975, o realizador italiano Pier Paolo Pasolini foi brutalmente assassinado em condições nunca completamente esclarecidas.
A morte de Pasolini teve uma massiva cobertura televisiva, e nessa ocasião vieram ao de cima todos os piores instintos sensacionalistas das TV’s, que não lhe perdoaram o facto de ao longo dos anos Pasolini lhes ter tecido inúmeras críticas sobre o modo como tudo transformavam num espectáculo degradante.
Segundo Pasolini, a única missão das televisões era imporem “la leggerezza, la superficialità, l’ignoranza e la vanità” como as formas de vida dominante.
Nanni Moretti passeia-se na sua Vespa por Óstia ao som do lendário The Köln Concert de Keith Jarrett.
Para finalizarmos num tom mais alegre, temos de falar do filme que mudou a vida de Nanni Moretti, a saber, “Flashdance”, cuja protagonista, Jennifer Beals, aparece em “Caro Diario” a bailar numa típica tarde de Verão romana, é ver:
E pronto, porque aqui terminamos, agora é só aguardar pela próxima fita de Verão neste blog.
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