A cidade é Roma e o tempo é de Verão. Há um tímido estudante que se chama Roberto e há também um quarentão cujo nome é Bruno. Os seus destinos cruzam-se e, para o mais jovem, esse encontro vai ser fatal.
É esta a síntese da fita “A Ultrapassagem (il Sorpasso)” de 1962, mas depois há muito mais do que isso.
Bruno, o quarentão, é interpretado por Vittorio Gassman, que estava num dos momentos altos da sua carreira. Era muito respeitado pela seriedade intelectual do seu trabalho como actor, mas era simultaneamente visto como o galã de serviço na Itália daquele tempo.
Gassman interpretava Shakespeare, Dostoyevsky e os gregos nos mais eruditos teatros italianos, de modo que todos os intelectuais o aplaudiam de pé. No cinema participava em populares filmes de drama e de comédia, que atraíam autênticas multidões às salas só para o ver.
Em resumo, Gassman era uma estrela, e tudo em que se metia transformava-se num êxito. Em Itália, todos os conheciam como il mattatore. Aqui o vemos abaixo, como Bruno, numa cena do filme “A Ultrapassagem”.
O outro protagonista do filme é Roberto, que é interpretado pelo então juveníssimo Jean-Louis Trintignant, actor francês que também ele, uns anos mais tarde, se haveria de tornar célebre.
Num escaldante dia de Agosto, Bruno deambula com o seu belo automóvel pelos modernos bairros de Roma, e vê numa janela Roberto, que estava em casa a estudar para os seus exames finais em Setembro. Bruno mete conversa e incentiva-o a sair, a vir para a rua, a aproveitar o bom tempo e a passear. Roberto hesita, mas acaba por aceitar o convite de Bruno e decide partir à aventura.
E assim foi, Bruno, o exuberante quarentão, arrastou Roberto, o pacato estudante, e ambos partiram no belo carro desportivo do primeiro, para uma viagem sem rumo nem regresso marcado, por Roma e seus arredores.
Vejamos duas cenas que nos dão conta dessa evolução. Na primeira delas, ainda no inicio do filme, vemos Bruno e Roberto de viagem. Bruno conduz de um modo tão afoito, que Ricardo o chama constantemente à atenção.
Pelo caminho vão falando da poesia de Frederico García Lorca, de música e do cinema do realizador Michelangelo Antonioni, e mais concretamente do seu filme “O Eclipse”.
Bruno elogia Antonioni, diz que ele é um belo realizador e que o filme “O Eclipse” nos fala da alienação. Pergunta a Roberto se o viu. Antes que este completasse a sua resposta, Bruno diz que não o viu, pois dormiu todo o tempo que durou a fita. Seja como for, o certo é que se vê que Roberto se sente algo temeroso com a condução de Bruno.
Ao fim de apenas um breve tempo de viagem, Roberto já era outro. O antes tímido estudante sentia-se agora liberto, vivo. De pacato e recatado, tinha passado a audaz e destemido. No fundo, Roberto foi-se metamorfoseando de modo a transformar-se numa espécie de Bruno, o exuberante quarentão.
Na cena abaixo vemos Roberto e Bruno estrada fora, e agora, ao invés de como no início Roberto estar permanentemente a chamar atenção a Bruno, é exactamente ao contrário. Roberto incentiva Bruno a ir mais depressa e a fazer arriscadas ultrapassagens. Veja-se então, como nesta cena Roberto já não é o mesmo e como ele diz a Bruno que nunca na vida tinha sido tão feliz.
Em boa verdade Roberto é um bom moço, já Bruno é tão-somente un bon vivant. Bruno procura dissimular o seu vazio interior vivendo de um modo exuberante, mas não tem qualquer rumo ou destino certo a seguir, limita-se a ir em frente. No entanto, e apesar disso, Roberto admira-o e tenta transformar-se numa sua réplica.
O que nós espectadores da fita sabemos, é que Bruno e Roberto são seres completamente diferentes. Bruno é um ser vazio e superficial, e isso fica claro quando Roberto conhece a antiga mulher de Bruno e esta lhe pergunta “Si conoscono da molto Lei e Bruno? (Há muito que conhece o Bruno?)”, ao que Ricardo responde “No, ci siamo incontrati stamattina (Não, encontramo-nos esta manhã)”, dessa resposta a mulher conclui “Allora lo conosce bene: la prima impressione che si ha di lui è quella giusta (Então conhece-o bem: a primeira impressão que se tem dele é a certa)".
Se com Bruno está tudo visto logo à primeira vista, Roberto é mais denso. Mesmo sendo bastante mais jovem que Bruno, pressente-se que Roberto guarda mais, que as suas memórias são mais vastas e fundas.
Enquanto para Bruno tudo parece ser vivido num permanente presente, Roberto tem passado. Vimos isso quando ele deambula por um baile de Verão à beira-mar e toca o tema musical “Don’t play that song”, interpretado por Peppino di Capri.
Diz-nos a letra da canção “Don't play that song for me, It brings back memories, The days that I once knew, The days that I spent with you…”. Pressentimos que essas palavras reflectem o estado de espírito de Roberto, que vagueia por entre os que dançam.
Vemos bailar velhos, jovens, adolescentes e crianças, e sabemos que Roberto é um ser que deixou de ser criança, não terá sido um típico adolescente, e ainda é jovem mas já se sente como um velho.
Sentimos em Roberto a essência do tempo e das marcas que ele deixa e que jamais se apagam. Roberto é portanto o oposto de Bruno, o que vive somente na superfície do presente.
Em dado momento, Roberto telefona para uma tal Signorina Valeria, do outro lado alguém vai ver se ela pode atender. Enquanto espera pela resposta, Roberto ouve Peppino di Capri a cantar “Remember on our first date, You kissed me and you walked away? You were only Seventeen…”
Passado um bocado, a Signorina Valeria manda dizer que não está.
Mais tarde, Roberto conta a Bruno os seus planos para a sua vida. Pretende terminar os exames, encontrar um emprego seguro, casar com Valeria e cuidar dela. Faz que se esquece, que ela mandou dizer que não estava.
Não estava ela, nem os exames finais, nem o emprego seguro, nem sequer o futuro. A viagem acaba mal, uma ultrapassem mal calculada resulta num tremendo acidente. Para Roberto é o fim, Bruno, o que vive no presente, escapa ileso.
Poder-se-ia dizer, que assistindo ao filme, ficamos a saber que o futuro é incerto, mesmo para os que o planeiam com rigor. Poder-se-ia dizer que só o presente é certo, mesmo para os que vivem de forma audaz e destemida. Porém, não há efectivamente nenhuma mensagem óbvia nesta grande obra cinematográfica, que é tida como sendo uma comédia.
E talvez seja, pois apresenta-nos a comédia da vida, o seu risível sem sentido: “Se queres fazer Deus rir, conta-lhe os teus planos”.
Vittorio Gassman, o actor que encarnou Bruno em “A Ultrapassagem” foi um homem com um grande senso de humor. Nos seus últimos anos participou em programas de televisão nos quais, de um modo muito formal e sério, lia documentos como a conta de gás, as análises clínicas, o IRS ou o um menu de um restaurante. Efectuava tais récitas com a mesma intensidade e emoção com que declamava a “Divina Comédia” de Dante Alighieri.
E pronto, com esta conclusão terminamos mais um texto dedica às fitas de Verão. Outros se seguirão.
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