Na imagem, junto ao mar, tendo o horizonte como pano de fundo, duas mulheres. Uma é moderna e sente-se independente, a outra é tradicional e depende totalmente do seu marido e respectiva família. São ambas personagens japonesas, do início dos anos cinquenta, época das grandes transformações surgidas do pós-guerra.
É fácil de perceber se um país tem ou não um espírito inovador, é só irmos ver dez minutos de anúncios na televisão e constatar o tipo de publicidade que nele se faz.
Nos países inovadores, a publicidade faz apelo aos valores da modernidade e da contemporaneidade, propõe rupturas com o passado, e promove o ser-se livre e independente como um ideal de vida.
Já nos países mais tradicionalistas, sucede o exacto oposto, pois nesses casos, a publicidade fomenta antes os valores de sempre, os que já vêm do tempo dos nossos avós. Para além disso, nos países menos dados à inovação, a independência é pouco valorizada, e são os sempre iguais rituais grupais, e muito particularmente os familiares, que são apregoados como sendo os momentos que dão sentido e significado à vida.
Se estivermos num qualquer país, virmos dez minutos de publicidade na TV, e nos aparecerem muitos anúncios com avôs e avós, ou então com muitas famílias felizes, reunidas e unidas, sabemos imediatamente que estamos num sítio cujo espírito é essencialmente tradicionalista.
É esse o caso de Portugal, e acerca disso não há dúvida alguma. Repare-se no anúncio abaixo, em que até para se publicitar as mais recentes e avançadas tecnologias, é necessário recorrer-se à imagem de uma reunião e união familiar.
Os valores familiares e tradicionais, por cá, tanto servem para se discutir a sexualidade nos currículos escolares, como servem também para se vender megabytes e pacotes de telecomunicações, como servem ainda para se vender sumos de fruta, no fundo, dão para tudo.
Mas que tem toda esta nossa conversa a ver com fitas de Verão, perguntará quem nos lê. A resposta é simples, é porque hoje vamos falar-vos do Japão, e mais concretamente, do realizador Yasujiro Ozu (1903-1963).
O Japão aparenta ser permanente contradição, por um lado, é um país onde se dá uma importância enorme às tradições e aos rituais grupais e familiares, por outro lado, é também um país altamente moderno e inovador, onde ser-se livre e independente é algo que se leva efectivamente a sério.
Yasujiro Ozu foi o homem que contou as melhores histórias acerca desta contradição que parece habitar no centro da alma japonesa. Contou-as num tempo em que o Japão ainda estava atordoado pelos terríveis efeitos da Segunda Grande Guerra Mundial, e em que o país não sabia bem quem era e o que queria ser.
A imagem abaixo é do filme de Ozu “Verão prematuro”, observando-a vemos imediatamente a contradição que aparenta atravessar o Japão. Na foto, uma família tradicional, ao centro avós, vestidos com os tradicionais trajes nipónicos. Atrás, à esquerda, o filho mais velho, à sua direita a irmã, e ainda mais à direita, a esposa do filho, todos os três com indumentárias que se situam algures entre o tradicional e o moderno. À frente, nos extremos, os netos, vestidos com roupas e bonés iguais aos dos seus contemporâneos ocidentais daquela época, ou seja, com trajes nada tradicionais.
O filme “Verão prematuro” é de 1951 e o seu título original é 麦秋 (nós não dominamos o idioma nipónico, mas estamos em crer que os tradutores terão feito um bom trabalho).
Numa casa não muito longe de Tóquio, vivem três gerações da mesma família, os seus elementos são os que constam na foto acima, a personagem principal da narrativa é a que se encontra ao centro, na fila de trás, de seu nome Noriko.
Na primeira cena do filme, constatamos como todos no lar familiar têm as suas práticas quotidianas extremamente afinadas. O grupo familiar funciona com a precisão de um relógio. Vemos as actividades matinais, os bons hábitos de higiene, a toma de um excelente pequeno-almoço e a pontual partida dos vários elementos da família para o emprego, ou para a escola no caso dos mais novos.
Em síntese, a dinâmica familiar é perfeita, funciona tudo impecavelmente, com uma espécie de rigor geométrico, tal e qual as coisas normalmente funcionam nos anúncios portugueses em que se publicitam leite, queijo, manteiga, flocos, sumos, café ou outros produtos alimentares que se consomem à primeira refeição do dia, o pequeno-almoço, que como sabemos, é a mais importante de todas as refeições existentes, ou pelo menos, é isso que os publicitários e nutricionistas nos dizem.
No entanto, o que vamos descobrir mais à frente na fita, é que esta família tem um problema, há algo que faz com a maquinaria não esteja a 100%. Noriko, a filha, já vai com 28 anos de idade e permanece solteira.
No Japão dá-se uma tremenda importância às tradições e aos rituais grupais e familiares, por consequência disso, é importantíssimo para a família de Noriko, que ela encontre um marido, e que o ritual que a unirá ao seu futuro esposo seja convenientemente celebrado por toda a comunidade.
Noriko deve casar, e para isso, toda a família, assim como amigos, colegas e vizinhos, não se vão poupar a esforços para lhe encontrar um noivo. Ela é que não se esforça lá muito.
Com tanta gente a porfiar, lá lhe encontram o noivo perfeito. Todos estão de acordo, apesar dos seus 28 anos de idade, Noriko teve imensa sorte, arranjaram-lhe o homem ideal.
O pretenso noivo já tem 42 primaveras, mas é filho de uma família respeitável e com boas condições financeiras, o que certamente possibilitará a Noriko uma vida calma, estável e feliz.
Mas dito isto, Noriko é que não está pelos ajustes. Não é que rejeite completamente a ideia, avalia-a com racionalidade, pesando os prós e contras da situação, mas isto sem nunca chegar a qualquer conclusão definitiva.
A verdade é que Noriko é uma mulher independente, trabalha num escritório na cidade e pode dar-se a certas liberdades, que não estão acessíveis à maioria das mulheres casadas. Noriko sente-se livre e não tem a certeza que queira trocar essa liberdade, pela tradicional vida matrimonial.
Noriko representa a contradição do Japão, tem ideias modernas e age de forma livre, todavia, as tradições e a pressão do grupo familiar e da sociedade, não são coisas que lhe sejam completamente indiferentes. Tal como o país nessa época, Noriko não sabe bem quem é e o que quer ser.
Na imagem abaixo vemos Noriko com umas amigas num moderno café de Tóquio. Discutem as vantagens e desvantagens do casamento, e igualmente as ganhos e perdas de se permanecer solteira, livre e independente.
Yasujiro Ozu coloca as mulheres à conversa, diante de um painel onde se vê um ser híbrido que toca uma flauta, ao seu lado, uma mulher que parece escutar a melodia do flautista de uma forma indecisa.
Dir-se-ia que Noriko e as amigas sentem uma espécie de tentação para serem diferentes do que foram as suas mães e avós, contudo, ainda não sabem bem se hão de ir atrás do flautista que as encanta com sons e tons de liberdade, ou se porventura deverão permanecer no mesmo exacto sítio onde as mulheres tradicionalmente sempre estiveram.
Noriko e as amigas personificam a modernidade, no filme estão associadas aos comboios, à cidade, aos escritórios, aos grandes edifícios e aos cafés. No entanto, quando regressam às respectivas casas familiares, tudo sucede a um ritmo diferente, e as tradições e rituais impõem-se.
Noriko hesita longamente sobre o casamento que lhe arranjaram, e essa sua hesitação faz com que toda a tradicional dinâmica familiar fique em suspenso, paralisada numa expectativa intensa enquanto nada se decide, num desses momentos da vida em que não se ata nem se desata.
A arte cinematográfica de Ozu dá-nos bem conta dessa situação de forma implícita. Em determinado momento, o pai de Noriko sai de casa para tratar de um qualquer afazer. Sabemos que também ele se sente em suspenso, nisto, ao percorrer o seu caminho, depara-se com uma passagem de nível.
Nessa passagem de nível há um aviso em que se diz “Cuidado, o alarme não funciona de forma automática”. Na verdade trata-se de uma metáfora que alerta o pai de Noriko para o facto de que naqueles novos tempos de então no Japão, as passagens já não se fazerem automaticamente.
Durante imemoráveis gerações, a passagem do lar onde se tinha nascido e crescido para a vida de casado era automática, todavia, à época tal assim já não sucedia. O pai sabia que Noriko, a sua filha, era prova evidente disso mesmo.
Na passagem de nível, o pai de Noriko senta-se, aguarda, e vê o comboio passar. O comboio passa e ele continua sentado. Pressentimos que esse comboio simboliza o tempo que passou e que estes novos tempos já não são os tempos de sempre, aqueles em que o pai de Noriko cresceu e viveu.
Na última etapa do filme, de súbito, faz-se luz a Noriko e esta recusa o seu pretendente. Vê ao mesmo tempo, que poderá ser feliz com um rapaz que conhece desde pequena, um que vive mesmo ao lado, numa casa vizinha à da sua família.
O dito rapaz é agora um homem viúvo com uma filha pequena, mas Noriko acredita que com ele será feliz. A sua família está cheia de dúvidas, mas mais não lhes resta, do que aceitar a decisão de Noriko.
O título "Verão prematuro" refere-se ao conceito de um casamento apressado e à súbita decisão de Noriko se casar com o vizinho do lado, fazendo assim uma brusca passagem para uma nova fase da sua vida, de um modo um tanto ou quanto à margem das tradições familiares, e também sem seguir os preceitos e rituais habituais.
“Verão prematuro”, tal como todos os filmes de Ozu, centra-se em crises na vida dos personagens. Crises cuja causa são as modernas formas de vida, e o modo como entram em conflito com as tradições, o que acaba por se traduzir em dilemas familiares e geracionais. No entanto, nos filmes de Ozu, essa aparente contradição acaba por se solucionar, mesmo que por vezes de uma forma algo melancólica.
Na cena final da película, Noriko e a sua cunhada conversam junto ao mar. Noriko representa o Japão moderno, inovador e sem medo do futuro, a sua cunhada representa o Japão tradicional, que demonstra imensos receios sobre o que tantas mudanças trarão ao mundo. Contudo, as duas mulheres entendem-se perfeitamente e caminham juntas, tendo o horizonte como pano de fundo.
A imagem das duas mulheres indo em frente pela beira-mar, reflecte a convicção de Ozu, que no Japão, passado e futuro, tradição e modernidade, e inovação e estabilidade, não são necessariamente pares de termos contraditórios.
Ou seja, é possível construir num país, uma ponte entre o tempo que passou e que ainda há de vir, a essa ponte poder-se-ia chamar inovação, mas também se poderia chamar Noriko, ou quiçá, melancolia.
Na realidade, inova-se e anda-se sempre para frente, caminhando sobre os restos do passado, e apesar de se progredir, não deixa ainda assim, de ser um percurso pleno de melancolia. Aqui fica a conversa entre Noriko e a sua cunhada:
Se um dia Portugal for um país que queira ser como o Japão e conciliar tradição e modernidade, então vai ter de apostar na inovação, essa ponte entre passado e futuro. Se porventura quiser continuar a ser um pais de cariz tradicionalista, enredado em discussões bacocas acerca da presença da sexualidade nos currículos escolares, e com famílias felizes por ter mais megabytes e melhores pacotes de telecomunicações, assim como ilusórios avozinhos e avozinhas todos contentes por beberem sumos de fruta com os seus netinhos, então é continuar tal como está e não perder tempo a ver fitas de Yasujiro Ozu.
E pronto, foi mais uma fita de Verão, em breve outra virá.
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